{"id":10151,"date":"2023-12-19T08:48:42","date_gmt":"2023-12-19T08:48:42","guid":{"rendered":"https:\/\/eurodefense.pt\/?p=10151"},"modified":"2023-12-19T08:48:59","modified_gmt":"2023-12-19T08:48:59","slug":"a-perenidade-da-soberania","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/eurodefense.pt\/a-perenidade-da-soberania\/","title":{"rendered":"A perenidade da soberania"},"content":{"rendered":"\n

\u201cA sem\u00e2ntica da soberania e a defesa da Uni\u00e3o Europeia\u201d<\/strong><\/p>\n\n\n\n

Introdu\u00e7\u00e3o<\/strong><\/p>\n\n\n\n

O discurso da soberania esteve, durante muito tempo, reservado aos c\u00edrculos nacionalistas. A soberania, nascida na modernidade, foi um conceito fulcral na consolida\u00e7\u00e3o da ideia de Estado, na autodetermina\u00e7\u00e3o governativa de um Povo e na sua isen\u00e7\u00e3o e autonomia face \u00e0s interfer\u00eancias externas. Contudo, em raz\u00e3o da sua ess\u00eancia, tamb\u00e9m serviu a perpetua\u00e7\u00e3o de confrontos b\u00e9licos mediante movimentos de afirma\u00e7\u00e3o \u00e9tnica e nacional. A soberania presta-se a tudo isto porque \u00e9 um conceito muito pr\u00f3ximo das ideias de poder e de autoridade. Ser soberano, seja atrav\u00e9s de um processo de delega\u00e7\u00e3o democr\u00e1tica ou atrav\u00e9s da usurpa\u00e7\u00e3o totalit\u00e1ria dos aparelhos do Estado, significa possuir a autoridade para emitir uma ordem e o poder para a executar. Tamb\u00e9m por isso, enquanto exerce o poder e a autoridade que lhe cabem, o soberano torna-se o respons\u00e1vel pela defesa, prote\u00e7\u00e3o e seguran\u00e7a da respetiva popula\u00e7\u00e3o e territ\u00f3rio.<\/p>\n\n\n\n

\u00c9 sabido que a forma\u00e7\u00e3o da UE – Uni\u00e3o Europeia requereu a partilha de parcelas da soberania nacional dos Estados membros. A dita indivisibilidade da soberania tornou-se um artefacto poeirento. Os pr\u00f3prios processos de globaliza\u00e7\u00e3o e interdepend\u00eancia econ\u00f3mica – tamb\u00e9m militar atrav\u00e9s da participa\u00e7\u00e3o em alian\u00e7as, – n\u00e3o eliminou o facto da seguran\u00e7a e da defesa permanecerem como responsabilidades centrais do Estado. Na UE, o poder e as suas diversas manifesta\u00e7\u00f5es passassem a ser exercidas num sistema multin\u00edvel sustentado em negocia\u00e7\u00f5es espec\u00edficas entre os Estados membros e as respetivas institui\u00e7\u00f5es, ag\u00eancias e comit\u00e9s, consoante o assunto e o n\u00edvel de integra\u00e7\u00e3o. Assim, a UE definiu-se como um esfor\u00e7o para a paz e para integra\u00e7\u00e3o dos povos europeus e, em suma, como a ant\u00edtese do hard<\/em> power<\/em>. A meu ver, foi um esfor\u00e7o bem-sucedido.<\/p>\n\n\n\n

N\u00e3o \u00e9 que a UE e a soberania sejam no\u00e7\u00f5es que se excluem mutuamente, mas, postas as observa\u00e7\u00f5es anteriores, afigura-se pertinente, para esta reflex\u00e3o, considerar as consequ\u00eancias da recente prolifera\u00e7\u00e3o da sem\u00e2ntica da soberania para a \u00e1rea da defesa.<\/p>\n\n\n\n

A sem\u00e2ntica da soberania e a defesa da UE<\/strong><\/p>\n\n\n\n

A European sovereignty<\/em> popularizada por E. Macron, atrav\u00e9s do discurso da Sorbonne de 2017, representa um compromisso com o processo de integra\u00e7\u00e3o europeu. A sua origem est\u00e1 relacionada com os enormes desafios da \u00e9poca. A n\u00edvel interno, a UE vivia, por exemplo, a cat\u00e1strofe da crise dos refugiados, a consolida\u00e7\u00e3o de movimentos pol\u00edticos euroc\u00e9ticos, os reveses ao princ\u00edpio do Estado de direito e o primeiro processo de sa\u00edda de um Estado membro. A n\u00edvel externo, a tomada de posse de D. Trump comprometia a posi\u00e7\u00e3o estrat\u00e9gica da UE, uma vez que os E.U.A. optavam por uma conduta mais protecionista. Estas e outras coisas indicam que a escolha da palavra \u201csoberania\u201d n\u00e3o foi fortuita. Por um lado, a European sovereignty<\/em> procurava desmitificar a voca\u00e7\u00e3o euroc\u00e9tica e nacionalista do conceito, combatendo a crescente ret\u00f3rica populista no interior da UE, especialmente, na v\u00e9spera das elei\u00e7\u00f5es europeias de 2019. Por outro lado, na conting\u00eancia da perda de um dos seus membros militarmente mais poderosos e perante o comprometimento da defesa europeia no seio da NATO, a aproxima\u00e7\u00e3o discursiva da UE \u00e0 soberania representava a necessidade de atingir uma desej\u00e1vel autossufici\u00eancia, n\u00e3o s\u00f3 na dimens\u00e3o da seguran\u00e7a e da defesa, mas em todos os dom\u00ednios de proje\u00e7\u00e3o externa. Isto, como mais tarde se ouvir\u00e1, chama-se a necessidade de reaprender a linguagem do poder. Nada melhor para exprimir essa linguagem do que um conceito que, desde T. Hobbes a C. Schmitt, est\u00e1 associado \u00e0s ideias de afirma\u00e7\u00e3o una e indivis\u00edvel de poder.<\/p>\n\n\n\n

O primeiro dos seis pontos de a\u00e7\u00e3o tra\u00e7ados pela Iniciativa para a Europa de E. Macron admitia a import\u00e2ncia da seguran\u00e7a e da defesa. Partindo desse facto, l\u00ea-se: \u201cIn defence, Europe needs to establish a common intervention force, a common defence budget and a common doctrine for action<\/em>\u201d. O apelo \u00e0 cria\u00e7\u00e3o de um ex\u00e9rcito europeu procurava dar um novo f\u00f4lego a uma ideia antiga. Por\u00e9m, na imin\u00eancia de falta de vontade pol\u00edtica e, principalmente, de uma vis\u00e3o de futuro comum entre Estados membros, continua, em 2023, um projeto de dif\u00edcil execu\u00e7\u00e3o. De resto, at\u00e9 ao momento, todas as iniciativas para a defesa s\u00e3o escassas e n\u00e3o reproduzem o car\u00e1cter de urg\u00eancia em que a UE se encontra, sabendo, claro est\u00e1, que n\u00e3o \u00e9 f\u00e1cil chegar a um consenso entre 27 participantes.<\/p>\n\n\n\n

Noutro lugar ainda, E. Macron disse, perentoriamente: \u201cSome will tell you it\u2019s not the right moment. <\/em>But it\u2019s never the right moment<\/em>\u201d. A bem ou a mal, a guerra entre a R\u00fassia e a Ucr\u00e2nia \u00e9 esse momento certo que materializa aquilo que, em 2017, era, para muitos, uma grande abstra\u00e7\u00e3o. O pr\u00f3prio conceito de European sovereignty<\/em> que, em raz\u00e3o do seu tom pol\u00edtico, foi ofuscado pelo conceito mais tecnocr\u00e1tico de strategic autonomy<\/em>, voltou a recuperar alguma proemin\u00eancia.<\/p>\n\n\n\n

Verdadeiramente, n\u00e3o h\u00e1 discord\u00e2ncias sobre a necessidade da UE garantir a sua autossufici\u00eancia nas \u00e1reas da seguran\u00e7a e da defesa. No entanto, a quest\u00e3o principal parece ser os termos da rela\u00e7\u00e3o entre uma UE militarmente ativa e a NATO. Em compara\u00e7\u00e3o com 2017, os contornos desta discuss\u00e3o alteraram-se bastante, visto que a presid\u00eancia de J. Biden contribuiu para a reafirma\u00e7\u00e3o do compromisso atl\u00e2ntico dos E.U.A, o que diminuiu, temporariamente, a preocupa\u00e7\u00e3o com a posi\u00e7\u00e3o americana. Todavia, apesar de n\u00e3o estar em causa o alinhamento geral com os E.U.A., existem diferen\u00e7as na maneira de pensar a European sovereignty<\/em>, especialmente, no que toca \u00e0s suas implica\u00e7\u00f5es para a \u00e1rea da defesa.<\/p>\n\n\n\n

A saber, num cen\u00e1rio internacional definido pela rivalidade sino-americana, E. Macron ambiciona afastar a UE de uma l\u00f3gica de blocos, estabelecendo-a como uma terceira alternativa \u00e0 predomin\u00e2ncia da China e dos E.U.A. Seria como uma esp\u00e9cie de fortalecimento do pilar europeu da NATO, deixando em aberto os termos da rela\u00e7\u00e3o comercial entre a UE e a China. Em parte, esta ideia pode ecoar uma determinada linhagem da pol\u00edtica externa francesa, por\u00e9m, a grandiosidade deste desafio, sobretudo na dimens\u00e3o tecnol\u00f3gica, deve ser motivo de uma s\u00e9ria reflex\u00e3o. Do outro lado da discuss\u00e3o, est\u00e3o os Estados membros de Leste que n\u00e3o equacionam a sua defesa fora do poderio americano e que, de resto, sugerem que as ideias de E. Macron n\u00e3o passam de interesses nacionais camuflados. \u00c9 que, numa UE a 27, a Fran\u00e7a \u00e9 o \u00fanico pa\u00eds com energia nuclear e com um ex\u00e9rcito capaz de proje\u00e7\u00e3o mundial. A Alemanha, apesar do aumento no or\u00e7amento para a defesa, mant\u00e9m uma certa ambiguidade e continua a comprar armamento americano. Por fim, existem ainda outros l\u00edderes nacionais, como V. \u00d3rban, que aspiram a uma reforma estrutural da UE porque acreditam que \u00e9 demasiado morosa e burocr\u00e1tica o que, na conjuntura geopol\u00edtica atual, a torna inadequada \u00e0s necessidades de prontid\u00e3o de resposta.<\/p>\n\n\n\n

Conclus\u00e3o<\/strong><\/p>\n\n\n\n

V\u00e1rios especialistas referem que n\u00e3o haver\u00e1 UE militarizada, fora da NATO. Pessoalmente, tendo a aproximar-me desta posi\u00e7\u00e3o. A rela\u00e7\u00e3o ideol\u00f3gica, pol\u00edtica, cultural e hist\u00f3rica entre ambas as partes do Atl\u00e2ntico n\u00e3o \u00e9 pass\u00edvel de contesta\u00e7\u00e3o e, queira-se ou n\u00e3o, representa um v\u00ednculo decisivo. Por\u00e9m, a quest\u00e3o torna-se mais complexa se a pensarmos do lado avesso. O que far\u00e1 a UE se uma futura presid\u00eancia dos E.U.A. coloca em risco a parceria atl\u00e2ntica? Ser\u00e1 preciso encontrar um balan\u00e7o. \u00c9 inquestion\u00e1vel que a UE precisa de fortalecer a sua a\u00e7\u00e3o coordenada e garantir a sua defesa coletiva, mas com isso n\u00e3o deve, idealmente, comprometer a sua presen\u00e7a na NATO. O aumento de capacidade militar da UE deve, sobretudo, ser sin\u00f3nimo de uma NATO mais forte. N\u00e3o esquecendo que, por um lado, em caso de conflitos de interesses, os americanos – qualquer que seja o seu presidente – v\u00e3o dar primazia aos seus objetivos e que, por outro lado, a fomenta\u00e7\u00e3o de divis\u00f5es no interior da NATO \u00e9 um fator de satisfa\u00e7\u00e3o para a China e para a R\u00fassia. Em todo o caso, estas necessidades s\u00f3 s\u00e3o poss\u00edveis atrav\u00e9s de um repensar dos tratados e da organiza\u00e7\u00e3o institucional da UE.<\/p>\n\n\n\n

Se perguntarmos o que sobra desta discuss\u00e3o sobre a fun\u00e7\u00e3o sem\u00e2ntica da soberania, porventura, sobrar\u00e1 pouco. Se seguirmos Olaf Scholz, reconfirmamos que os objetivos existem independentes das palavras que os comunicam: \u201cMy interest here is not in semantics. After all, what European sovereignty means, in essence, is that we grow more autonomous in all fields<\/em>\u201d. Creio, ao inv\u00e9s, que o discurso pol\u00edtico \u00e9 capaz de efetivas repercuss\u00f5es na prepara\u00e7\u00e3o das mentes para a execu\u00e7\u00e3o de futuras reformas pol\u00edticas, n\u00e3o sendo uma mera quest\u00e3o acess\u00f3ria. De maneira que, para mim, a apropria\u00e7\u00e3o do conceito de soberania para os prop\u00f3sitos integracionistas significa tamb\u00e9m um reconhecimento indireto da atualidade da conce\u00e7\u00e3o vestefaliana das rela\u00e7\u00f5es internacionais. Ou seja, ao propor a European sovereignty<\/em>, a UE est\u00e1 a reconhecer a pr\u00f3pria perenidade da soberania, no que parece manifestar-se, internamente, num combate ret\u00f3rico \u00e0 ideia de que a defesa \u00e9 propriedade exclusiva dos Estados membros e, externamente, numa legitima\u00e7\u00e3o da l\u00f3gica de atua\u00e7\u00e3o que encara os Estados como os derradeiros agentes pol\u00edticos, transmitindo, a aliados e a advers\u00e1rios, uma mensagem de unidade.<\/p>\n\n\n\n


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30 de novembro de 2023<\/p>\n\n\n\n

Andr\u00e9 Craveiro<\/strong>
EuroDefense Jovem-Portugal<\/em><\/p>\n\n\n\n


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Bibliografia<\/strong><\/p>\n\n\n\n

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NOTA<\/strong>:<\/mark><\/p>\n\n\n\n