{"id":2841,"date":"2020-09-22T12:28:06","date_gmt":"2020-09-22T12:28:06","guid":{"rendered":"https:\/\/eurodefense.pt\/?p=2841"},"modified":"2023-02-20T18:52:00","modified_gmt":"2023-02-20T18:52:00","slug":"sistema-de-seguranca-nacional-estrutura-e-processo-de-gestao-de-crises","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/eurodefense.pt\/sistema-de-seguranca-nacional-estrutura-e-processo-de-gestao-de-crises\/","title":{"rendered":"Sistema de Seguran\u00e7a Nacional – Estrutura e Processo de Gest\u00e3o de Crises"},"content":{"rendered":"\n

Texto redigido em 07.06.2020 para publica\u00e7\u00e3o na Revista Seguran\u00e7a e Defesa, enquadrado na an\u00e1lise da resposta \u00e0 crise pand\u00e9mica COVID-19.<\/em><\/p>\n\n\n\n

1. Pre\u00e2mbulo<\/strong><\/p>\n\n\n\n

Portugal a Europa e o mundo, enfrentam uma situa\u00e7\u00e3o de emerg\u00eancia sanit\u00e1ria sem precedentes no tempo de vida da atual gera\u00e7\u00e3o de decisores pol\u00edticos, a quem cabe promover as medidas necess\u00e1rias para mitigar os riscos, minimizar os danos e fortalecer a resili\u00eancia das sociedades de modo a que uma crise sanit\u00e1ria n\u00e3o assuma propor\u00e7\u00f5es alarmantes nos planos econ\u00f3mico, social e de seguran\u00e7a. N\u00e3o obstante os efeitos do v\u00edrus SARS-CoV2 se fa\u00e7am sentir em todos estes dom\u00ednios, importa, no entanto, manter o seu impacto em patamares m\u00ednimos, especialmente no tocante \u00e0 perda de vidas e ao regular funcionamento do sistema nacional de sa\u00fade (SNS).<\/p>\n\n\n\n

A etimologia da palavra crise faz alus\u00e3o a um “momento de decis\u00e3o, de mudan\u00e7a s\u00fabita\u201d como se se estivesse perante uma encruzilhada. Tem origem nos dom\u00ednios da medicina, relativamente \u00e0 evolu\u00e7\u00e3o de uma doen\u00e7a em que crise representa um momento decisivo para a cura ou para a morte[1]<\/span><\/a>. O conceito de crise generalizou-se a todos os campos, com particular enfoque para os da economia e da seguran\u00e7a.<\/p>\n\n\n\n

Neste \u00faltimo, insere-se no espectro das opera\u00e7\u00f5es ocupando uma posi\u00e7\u00e3o interm\u00e9dia entre as situa\u00e7\u00f5es de paz e de conflito. O conceito de gest\u00e3o de crises vulgarizou-se nos l\u00e9xicos securit\u00e1rio e das rela\u00e7\u00f5es internacionais. A t\u00edtulo de exemplo, a Estrat\u00e9gia Global da Uni\u00e3o Europeia de 2016, refere logo no seu in\u00edcio \u201cWe live in times of existential crisis, within and beyond the European Union.\u201d<\/em> Por seu turno, o Conceito Estrat\u00e9gico de Defesa Nacional faz reiteradas alus\u00f5es \u00e0 situa\u00e7\u00e3o de crise econ\u00f3mica e financeira internacional que marcou as circunst\u00e2ncias da sua elabora\u00e7\u00e3o e aprova\u00e7\u00e3o em 2013, tendo em conta que se estava ent\u00e3o em plena crise das d\u00edvidas soberanas despoletada pelo colapso do banco Lehman Brothers e pela implos\u00e3o do subprime<\/em>, em 2008.<\/p>\n\n\n\n

De ent\u00e3o para c\u00e1, a UE confrontou-se com crises de outra natureza, mas n\u00e3o menos importantes e marcantes, como a do terrorismo de matriz jihadista que teve o seu ponto inicial no ataque ao jornal Charlie Hebdo, ocorrido em 7 de janeiro de 2015 em Paris e nos que se lhe seguiram um pouco por toda a Europa, criando uma situa\u00e7\u00e3o de como\u00e7\u00e3o e alarme social generalizados, obrigando a um esfor\u00e7o internacional coordenado para a sua preven\u00e7\u00e3o no plano interno e o combate logo a partir da fonte. Com a queda dos \u00faltimos basti\u00f5es do Daesh na regi\u00e3o da S\u00edria e do Iraque, em particular depois da tomada da sua capital (Raqqa) em 2017, n\u00e3o obstante persistam em diversas \u00e1reas geogr\u00e1ficas c\u00e9lulas e santu\u00e1rios do autodesignado estado isl\u00e2mico, a sua capacidade para conduzir a\u00e7\u00f5es diretas contra o que designa por \u201cinimigo distante\u201d ficou seriamente reduzida.<\/p>\n\n\n\n

No per\u00edodo entre a crise econ\u00f3mica do subprime<\/em> e a crise pand\u00e9mica do Covid-19 foi igualmente patente a crise dos refugiados\/migrantes, emergindo praticamente em simult\u00e2neo com a do terrorismo jihadista e, em certa medida, como efeito de segunda ordem da instabilidade pol\u00edtica e social vivida na margem Sul do Mediterr\u00e2neo, na sequ\u00eancia das designadas \u201cprimaveras \u00e1rabes\u201d. A crise dos refugiados da S\u00edria, a partir de 2015, exponenciou as press\u00f5es migrat\u00f3rias que j\u00e1 eram patentes em consequ\u00eancia da explos\u00e3o demogr\u00e1fica no Sul global, da depreda\u00e7\u00e3o das condi\u00e7\u00f5es ambientais e dos conflitos larvares que se arrastam em \u00e1reas geogr\u00e1ficas como o Sahel, a regi\u00e3o dos grandes lagos e o Pr\u00f3ximo-Oriente.<\/p>\n\n\n\n

Todas requereram processos de decis\u00e3o e gest\u00e3o de crises, tendo como protagonistas os Estados que estiveram no \u201colho do furac\u00e3o\u201d em cada uma delas. Apresentaram um car\u00e1ter assim\u00e9trico que acarretou medidas de ordem pol\u00edtica e operacional no sentido da sua resolu\u00e7\u00e3o e minimiza\u00e7\u00e3o dos seus impactos. Ficaram bem impressas na mem\u00f3ria dos cidad\u00e3os os efeitos dos bailouts<\/em> em Portugal e na Gr\u00e9cia, as medidas de exce\u00e7\u00e3o no quadro do contraterrorismo decretadas em Fran\u00e7a, no Reino Unido e na B\u00e9lgica e a saga da revis\u00e3o do regulamento de Dublin sobre as regras de asilo na EU, que se revelaram desadequadas para fazer face \u00e0 press\u00e3o migrat\u00f3ria sobre a sua fronteira externa.<\/p>\n\n\n\n

No seu conjunto estas crises adensaram a polariza\u00e7\u00e3o entre os Estados do Norte e do Sul, do Leste e do Oeste da Uni\u00e3o Europeia e poder\u00e1 dizer-se que ter\u00e3o sido um catalisador para a primeira baixa na sua estrutura \u2013 o Brexit. Acresce um aspeto comum em todas estas crises, que \u00e9 o facto de as suas causas n\u00e3o terem sido completamente eliminadas, n\u00e3o se podendo colocar de parte a possibilidade de recidivas. No caso da atual pandemia Covid-19, algumas an\u00e1lises prognosticam mesmo uma segunda vaga no pr\u00f3ximo outono.<\/p>\n\n\n\n

No entanto, esta crise apresenta um aspeto diferenciador em rela\u00e7\u00e3o \u00e0s anteriores. Dado o seu car\u00e1ter sim\u00e9trico atingir de forma indiferenciada os v\u00e1rios Estados, colocando-os assim em circunst\u00e2ncias semelhantes perante os seus efeitos, permite pouco espa\u00e7o para narrativas moralizantes, por regra inquinadas por preconceitos de superioridade, por vezes acrescidas mesmo de laivos de alguma crueldade. Como \u00e9 frequentemente referido, o v\u00edrus SARS-CoV2 apresenta um comportamento democr\u00e1tico n\u00e3o diferenciando o universo de propaga\u00e7\u00e3o.<\/p>\n\n\n\n

A par destas crises de \u00e2mbito global merece tamb\u00e9m realce o facto de o nosso pa\u00eds em particular e a regi\u00e3o do Sul da Europa em geral, serem regularmente flageladas por grandes inc\u00eandios rurais com consequ\u00eancias dram\u00e1ticas. Os de 2017, com um tr\u00e1gico balan\u00e7o tanto em n\u00famero de v\u00edtimas mortais (pelo menos 116 no somat\u00f3rio do fogo de Pedr\u00f3g\u00e3o Grande e dos inc\u00eandios de outubro na regi\u00e3o Centro), como pelos extensos danos patrimoniais e ambientais que lhes estiveram associados. foram o ep\u00edlogo de um conjunto de circunst\u00e2ncias meteorol\u00f3gicas que exponenciam os fatores de risco para a ocorr\u00eancia de fen\u00f3menos extremos desta natureza.<\/p>\n\n\n\n

A conjuga\u00e7\u00e3o explosiva das condi\u00e7\u00f5es do clima, ordenamento do territ\u00f3rio, tipo de explora\u00e7\u00e3o florestal e de alguns comportamentos sociais, colocam o nosso pa\u00eds numa situa\u00e7\u00e3o de risco agravado em cada per\u00edodo estival, exponenciado por per\u00edodos de menor pluviosidade e tamb\u00e9m por uma localiza\u00e7\u00e3o geogr\u00e1fica especialmente vulner\u00e1vel aos fen\u00f3menos associados \u00e0s altera\u00e7\u00f5es clim\u00e1ticas.<\/p>\n\n\n\n

2. Impacto da Crise do Covid-19 no Ambiente de Seguran\u00e7a<\/strong><\/p>\n\n\n\n

Em jeito de balan\u00e7o dos impactos da pandemia do Covid-19 e das repercuss\u00f5es que poder\u00e1 ter nos diferentes n\u00edveis e setores da sociedade, ainda que pare\u00e7a estar longe do seu fim, equaciona-se de seguida em que medida esta crise poder\u00e1 afetar o ambiente de seguran\u00e7a e quem poder\u00e1 estar a capitalizar vantagens da sua gest\u00e3o.<\/p>\n\n\n\n

No plano geopol\u00edtico a China parece surgir como o grande ganhador, preenchendo o vazio de lideran\u00e7a internacional deixado por outros atores convertidos \u00e0 l\u00f3gica soberanista, refor\u00e7ando a afirma\u00e7\u00e3o do eixo oriental do espa\u00e7o euroasi\u00e1tico para onde o centro de gravidade global se tem vindo a deslocar. Salvaguardadas as especificidades do pa\u00eds, \u00e9 ineg\u00e1vel que o modelo de atua\u00e7\u00e3o da China a par da solidariedade e efic\u00e1cia demonstradas no suprimento de material sanit\u00e1rio \u00e0 escala global, conferiram-lhe um acr\u00e9scimo de soft power<\/em>. A iniciativa one belt one road<\/em> passou a ter tamb\u00e9m uma dimens\u00e3o sanit\u00e1ria.<\/p>\n\n\n\n

As palavras de Adelino Maltez de que a soberania se v\u00ea na conting\u00eancia, mais do nunca parecem fazer sentido para uma Uni\u00e3o Europeia submersa em querelas sobre as modalidades para a recupera\u00e7\u00e3o econ\u00f3mica da crise e com um registo pouco abonat\u00f3rio no plano da solidariedade demonstrada para com os Estados mais afetados pela pandemia. Ser\u00e1 fatal para uma EU, que est\u00e1 na primeira linha da gest\u00e3o de crises no quadro internacional, se n\u00e3o for capaz de encontrar um consenso para ultrapassar os resqu\u00edcios de uma crise sanit\u00e1ria no interior do espa\u00e7o comunit\u00e1rio.<\/p>\n\n\n\n

Perante o apagamento do Conselho de Seguran\u00e7a das Na\u00e7\u00f5es Unidas, a inoper\u00e2ncia do G20 e a aus\u00eancia de outas organiza\u00e7\u00f5es multilaterais de quem seria expect\u00e1vel alguma interven\u00e7\u00e3o, o Estado-na\u00e7\u00e3o volta a afirmar-se como o centro do poder e a inst\u00e2ncia efetiva de recurso em situa\u00e7\u00e3o de crise. \u00c9 expressivo os arautos do \u201cmenos Estado – melhor Estado\u201d, que se t\u00eam empenhado em esvazi\u00e1-lo e desmantel\u00e1-lo, fazerem agora parte do coro dos que exigem uma maior interven\u00e7\u00e3o central.<\/p>\n\n\n\n

Se a crise do multilateralismo era j\u00e1 um dado assente, como efeito emergente do novo per\u00edodo de competi\u00e7\u00e3o estrat\u00e9gica entre pot\u00eancias assente na l\u00f3gica do \u201cAmerica First\u201d<\/em> da administra\u00e7\u00e3o Trump, a retirada do apoio dos EUA \u00e0 OMS em plena crise pand\u00e9mica, \u00e9 o ep\u00edlogo da mudan\u00e7a estrat\u00e9gica dos EUA no sentido da abdica\u00e7\u00e3o do seu papel de lideran\u00e7a internacional. Contrasta com a lucidez do Papa Francisco no apelo \u00e0 solidariedade universal, por via do cessar-fogo e levantamento das sans\u00f5es impostas a pa\u00edses martirizados por guerras, demonstrando que nas rela\u00e7\u00f5es internacionais ainda existe espa\u00e7o para a \u00e9tica e valores.<\/p>\n\n\n\n

Sobre o grau de mudan\u00e7a que a crise do SARS-CoV2 poder\u00e1 impor no plano soceital, o espectro para especula\u00e7\u00e3o \u00e9 amplo, desde as perspetivas de um total retorno \u00e0 normalidade at\u00e9 aos progn\u00f3sticos de um mundo novo. Salvaguardadas as especificidades desta crise, o contexto atual ter-nos-\u00e1 dado uma imagem sobre um futuro que equacion\u00e1vamos apenas poss\u00edvel no plano de utopia, com: mais tempo livre; consumo restrito ao essencial; rendimento universal garantido; transportes p\u00fablicos gratuitos; menos acidentes rodovi\u00e1rios; menor criminalidade; melhor ambiente.<\/p>\n\n\n\n

Mas mais do que equacionar cen\u00e1rios, far\u00e1 sentido analisar tend\u00eancias e identificar os paradigmas que poder\u00e3o resultar abalados da atual conjuntura. Enumeram-se de seguida alguns, sem a preocupa\u00e7\u00e3o de os elencar por ordem de import\u00e2ncia ou probabilidade:<\/p>\n\n\n\n