{"id":787,"date":"2020-04-01T22:46:05","date_gmt":"2020-04-01T22:46:05","guid":{"rendered":"https:\/\/eurodefense.pt\/?p=787"},"modified":"2023-02-20T18:52:34","modified_gmt":"2023-02-20T18:52:34","slug":"o-virus-da-nossa-humanidade","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/eurodefense.pt\/o-virus-da-nossa-humanidade\/","title":{"rendered":"O v\u00edrus da nossa humanidade"},"content":{"rendered":"\n
O Coronav\u00edrus \u00e9 um teste \u00e0 nossa humanidade. Ser\u00e1 que, no meio da ang\u00fastia de podermos ser contaminados ou de vermos os mais queridos afetados, seremos capazes de olhar para os outros como parte da mesma humanidade? E ser\u00e1 que al\u00e9m de pensarmos no nosso problema, teremos tempo para nos comover com a sorte dos refugiados que v\u00e3o desaparecendo das p\u00e1ginas dos jornais?<\/p>\n\n\n\n
Como n\u00e3o nos lembrarmos neste tempo de ang\u00fastia do romance de Camus, A Peste, sobre uma epidemia mort\u00edfera que contamina uma cidade? A cidade \u00e9 fechada e campos de quarentena s\u00e3o erigidos. O her\u00f3i do livro, o m\u00e9dico Rieux, luta contra a epidemia ao mesmo tempo que afirma os valores da solidariedade e da humanidade comum, denunciando os que passaram a ver \u201co outro\u201d como o mal, a amea\u00e7a, o \u201cestrangeiro\u201d a abater. Para Rieux, a resist\u00eancia e a indigna\u00e7\u00e3o s\u00e3o a forma de aproximar os seres humanos e de fazer emergir o \u201cque t\u00eam em comum: o amor, o sofrimento e o ex\u00edlio\u201d.<\/p>\n\n\n\n
Escrita em plena II Guerra Mundial, esta obra \u00e9 tamb\u00e9m uma alegoria \u00e0 resist\u00eancia contra a peste do fascismo que tanta gente contaminou.<\/p>\n\n\n\n
Trump, ao classificar o Codiv-19 de \u201cv\u00edrus estrangeiro\u201d, quando anunciou o fecho das suas fronteiras aos estados europeus de Schengen, assume a ideologia que sempre marcou a sua presid\u00eancia: a xenofobia, o racismo e o nacionalismo. Racismo que como o v\u00edrus se tem espalhado um pouco por todo o mundo nos ataques contra os chineses e os asi\u00e1ticos, vistos, pelos defensores da supremacia branca, como o novo perigo amarelo.<\/p>\n\n\n\n
A Europa n\u00e3o est\u00e1, infelizmente, imune ao v\u00edrus da desumanidade, ao medo do outro visto como portador do mal. Os refugiados tratados como inimigos na fronteira da Gr\u00e9cia com a Turquia, o apoio que o governo de Atenas recebeu das institui\u00e7\u00f5es da Uni\u00e3o, a cria\u00e7\u00e3o pela Gr\u00e9cia de um Guant\u00e1namo para refugiados \u2014 um centro de deten\u00e7\u00e3o onde o direito n\u00e3o se aplica \u2014 como denuncia uma reportagem do New York Times, s\u00e3o tamb\u00e9m sintomas da banaliza\u00e7\u00e3o do mal.<\/p>\n\n\n\n
Na altura em que os cidad\u00e3os dos Estados da Uni\u00e3o e os seus Governos tudo fazem para combater a pandemia, em que a nossa aten\u00e7\u00e3o se concentra nas medidas sanit\u00e1rias, n\u00e3o seria mal pensarmos no que ser\u00e3o as democracias e a Uni\u00e3o Europeia para al\u00e9m da crise, por mais longa que ela seja.<\/p>\n\n\n\n
Se a Uni\u00e3o Europeia se destruir n\u00e3o ser\u00e1 porque o coronav\u00edrus provocou uma nova crise financeira, mas porque perdeu um dos valores fundamentais que a fundaram: o da fraternidade. Na fraternidade para com os que s\u00e3o infetados pelo v\u00edrus, nos cuidados que cada tem de ter a pensar no pr\u00f3ximo, na consci\u00eancia que os servi\u00e7os nacionais de sa\u00fade s\u00e3o essenciais \u00e0 nossa sobreviv\u00eancia, vamos redescobrindo a nossa humanidade. Mas essa fraternidade tem de ser incondicional e dirigida a todos os seres humanos. \u00c9 essa fraternidade que n\u00e3o pode ser negada aos que vivem no medo da doen\u00e7a ou aos que fogem da guerra, pois s\u00e3o todos v\u00edtimas de crises que os ultrapassam.<\/p>\n\n\n\n
Seria bom que muitos dos europeus que se indignam (e com raz\u00e3o) por serem transformados num v\u00edrus estrangeiro por Trump, encontrassem tempo para pensar nos que s\u00e3o reprimidos nas fronteiras da Europa , nos que veem os barcos das suas odisseias a serem destru\u00eddos nas \u00e1guas que foram de Ulisses, o primeiro dos exilados.<\/p>\n\n\n\n
O Mundo n\u00e3o tem fronteiras. N\u00e3o as tem para os v\u00edrus, para as ideias, nem para os mercados. Alguns pensam ainda poder travar a viagem dos homens com arame farpado. N\u00e3o ser\u00e1 um absurdo? N\u00e3o ser\u00e1 a nega\u00e7\u00e3o da solidariedade imprescind\u00edvel para vencermos as crises?<\/p>\n\n\n\n
Trump pode tentar ganhar as elei\u00e7\u00f5es com um discurso xen\u00f3fobo, os europeus podem querer isolar-se dos males da guerra nas suas fronteiras, mas n\u00e3o conseguem, assim, prevenir o pior dos v\u00edrus, aquele que vai destruindo as nossas democracias.<\/p>\n\n\n\n
A inquieta\u00e7\u00e3o com um Mundo que pode num abrir fechar dos olhos ser hostil, incapaz de nos garantir os direitos fundamentais, incluindo a sa\u00fade, continuar\u00e1 a ser uma das grandes ang\u00fastias do s\u00e9culo xxi. No s\u00e9culo xx os grandes cen\u00e1rios apocal\u00edpticos eram os da guerra. Depois da II Guerra Mundial, o cinema enchia as salas com o terror da hecatombe do inverno nuclear, como em \u201cO Dia Depois\u201d de Nicholas Meyer.<\/p>\n\n\n\n
Hoje os cen\u00e1rios apocal\u00edpticos j\u00e1 n\u00e3o s\u00e3o os da fic\u00e7\u00e3o cient\u00edfica, mas os que acompanhamos pelas televis\u00f5es e pelas redes sociais em direto, com mais ou menos sensacionalismo: trag\u00e9dias humanit\u00e1rias, cat\u00e1strofes naturais, trag\u00e9dias ambientais e pandemias. O que ser\u00e1 decisivo para o nosso futuro ser\u00e1 a nossa capacidade para preservar a nossa humanidade comum.<\/p>\n\n\n\n
Rieux, no final do livro, alerta, em plena festa de comemora\u00e7\u00e3o da vit\u00f3ria sobre a Peste, para outras epidemias que vir\u00e3o, e para a necessidade de se estar preparado para elas, e aponta ainda para a import\u00e2ncia de redigir a cr\u00f3nica daquela epidemia porque dela se poderia concluir que \u201ch\u00e1 nos homens mais coisas a admirar do que a desprezar\u201d. Hoje, quando vemos a abnega\u00e7\u00e3o de tantos no combate \u00e0 pandemia, e que no meio do medo se erguem vozes em defesa dos refugiados, podemos dizer que est\u00e1 a\u00ed o futuro da Europa.<\/p>\n\n\n\n
1 de abril de 2020<\/p>\n\n\n\n
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\u00c1lvaro Vasconcelo<\/strong><\/strong> – Antigo Diretor do Instituto de Estudos de Seguran\u00e7a da Uni\u00e3o Europeia;<\/em><\/em> <\/em>____________________________<\/p>\n\n\n\n * Este artigo foi publicado no jornal P\u00fablico no dia 14 de mar\u00e7o de 2020<\/em><\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":" O Coronav\u00edrus \u00e9 um teste \u00e0 nossa humanidade. Ser\u00e1 que, no meio da ang\u00fastia de podermos ser contaminados ou de vermos os mais queridos afetados, seremos capazes de olhar para os outros como parte da mesma humanidade? E ser\u00e1 que al\u00e9m de pensarmos no nosso problema, teremos tempo para nos comover com a sorte dos… Ler mais »O v\u00edrus da nossa humanidade<\/span><\/a><\/p>\n","protected":false},"author":1,"featured_media":2880,"comment_status":"closed","ping_status":"closed","sticky":false,"template":"","format":"standard","meta":{"neve_meta_sidebar":"","neve_meta_container":"","neve_meta_enable_content_width":"","neve_meta_content_width":0,"neve_meta_title_alignment":"","neve_meta_author_avatar":"","neve_post_elements_order":"","neve_meta_disable_header":"","neve_meta_disable_footer":"","neve_meta_disable_title":"","footnotes":""},"categories":[3],"tags":[],"class_list":["post-787","post","type-post","status-publish","format-standard","has-post-thumbnail","hentry","category-artigos-tematicos"],"_links":{"self":[{"href":"https:\/\/eurodefense.pt\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/787","targetHints":{"allow":["GET"]}}],"collection":[{"href":"https:\/\/eurodefense.pt\/wp-json\/wp\/v2\/posts"}],"about":[{"href":"https:\/\/eurodefense.pt\/wp-json\/wp\/v2\/types\/post"}],"author":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/eurodefense.pt\/wp-json\/wp\/v2\/users\/1"}],"replies":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/eurodefense.pt\/wp-json\/wp\/v2\/comments?post=787"}],"version-history":[{"count":6,"href":"https:\/\/eurodefense.pt\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/787\/revisions"}],"predecessor-version":[{"id":2121,"href":"https:\/\/eurodefense.pt\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/787\/revisions\/2121"}],"wp:featuredmedia":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/eurodefense.pt\/wp-json\/wp\/v2\/media\/2880"}],"wp:attachment":[{"href":"https:\/\/eurodefense.pt\/wp-json\/wp\/v2\/media?parent=787"}],"wp:term":[{"taxonomy":"category","embeddable":true,"href":"https:\/\/eurodefense.pt\/wp-json\/wp\/v2\/categories?post=787"},{"taxonomy":"post_tag","embeddable":true,"href":"https:\/\/eurodefense.pt\/wp-json\/wp\/v2\/tags?post=787"}],"curies":[{"name":"wp","href":"https:\/\/api.w.org\/{rel}","templated":true}]}}
Presidente do Conselho Consultivo<\/em><\/em><\/p>\n\n\n\n
– Fundador e antigo Diretor do IEEI-Instituto de Estudos Estrat\u00e9gicos e Internacionais<\/em><\/em><\/em><\/em><\/em><\/p>\n\n\n\n