{"id":9657,"date":"2023-07-24T11:05:06","date_gmt":"2023-07-24T11:05:06","guid":{"rendered":"https:\/\/eurodefense.pt\/?p=9657"},"modified":"2023-09-19T08:09:57","modified_gmt":"2023-09-19T08:09:57","slug":"mulheres-com-licenca-para-matar-terroristas-alvos-e-peacekeepers","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/eurodefense.pt\/mulheres-com-licenca-para-matar-terroristas-alvos-e-peacekeepers\/","title":{"rendered":"Mulheres com licen\u00e7a para matar: Terroristas, alvos e \u201cpeacekeepers\u201d"},"content":{"rendered":"\n

Ao longo dos s\u00e9culos, as mulheres t\u00eam desempenhado uma pan\u00f3plia de fun\u00e7\u00f5es em cen\u00e1rios de conflito, tais como espias, enfermeiras, passando por rep\u00f3rteres de guerra, fot\u00f3grafas, diplomatas e militares. Por\u00e9m, v\u00e1rios estudos argumentam que a sua capacidade tem sido menosprezada e ignorada: esta situa\u00e7\u00e3o \u00e9 evidente, por exemplo, na espionagem em que o papel da mulher \u00e9 sistematicamente centrado na sedu\u00e7\u00e3o sexual, desvalorizando-se o seu intelecto. H\u00e1 m\u00faltiplos exemplos que desafiam esta narrativa, como evidencia Anne Kramer em \u201cWomen Wartime Spies<\/em>\u201d (2011<\/a>). O trabalho das criptografas de Bletchley Park<\/a>, ou das virtuosas do SOE<\/a> de Churchill, foi crucial<\/em> para a vit\u00f3ria dos Aliados na Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Mais recentemente, a persist\u00eancia e dedica\u00e7\u00e3o da analista da CIA, Alfreda Scheuer, deu origem \u00e0 opera\u00e7\u00e3o NEPTUNE SPEAR, uma miss\u00e3o de alto risco que, em 2011, permitiu localizar e captar Osama Bin Laden – fundador da al-Qaeda, mastermind<\/em> do 11\/9 – em Abbottabad, no Paquist\u00e3o (e, mais tarde, inspirar o filme norte-americano \u201cZero Dark Thirty<\/a>\u201d).<\/p>\n\n\n\n

A Resolu\u00e7\u00e3o 1325 do Conselho de Seguran\u00e7a das Na\u00e7\u00f5es Unidas (2000) \u00e9 frequentemente citada como um game-changer<\/em> nesta \u00e1rea porque, pela primeira vez, colocou as mulheres no debate sobre a seguran\u00e7a, afirmando a import\u00e2ncia da sua participa\u00e7\u00e3o em mat\u00e9rias de seguran\u00e7a e defesa, bem como a necessidade de proteg\u00ea-las da viol\u00eancia com base no g\u00e9nero. Neste texto, abordamos o papel da mulher em uma outra \u00e1rea tradicionalmente masculina: o terrorismo. Qual o papel das mulheres no terrorismo?<\/strong> Neste texto, exploramos o seu envolvimento em tr\u00eas dimens\u00f5es: enquanto terroristas<\/strong>; alvos<\/strong> e peacekeepers<\/em><\/strong> (aqui, no sentido de agentes de contraterrorismo<\/em> e n\u00e3o no \u00e2mbito dos capacetes azuis da ONU).<\/p>\n\n\n\n

1. Mulheres como terroristas e agentes de viol\u00eancia<\/strong><\/p>\n\n\n\n

O papel das mulheres enquanto agentes de viol\u00eancia tem sido ignorado na pol\u00edtica internacional. Em \u201cMothers, Monsters, Whores: Women’s Violence in Global Politics<\/em>\u201d (2007<\/a>), Laura Sjoberg e Caron E. Gentry argumentam que a capacidade de uma mulher poder cometer atos agressivos tem sido desvalorizada \u2013 \u201cbecause is not supposed too<\/em>\u201d. As autoras explicam que o seu comportamento violento \u00e9 sistematicamente justificado segundo determinadas narrativas \u2013 porque a mulher \u00e9 controlada, amea\u00e7ada ou depravada \u2013 e nunca porque assim o quis.<\/p>\n\n\n

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Ulrike Meinhof<\/strong>, co-fundadora do grupo terrorista Baader-Meinhof (Alemanha), 1964.<\/figcaption><\/figure><\/div>\n\n\n

A participa\u00e7\u00e3o das mulheres no terrorismo contraria esta narrativa<\/strong>: as mulheres s\u00e3o elementos ativos na viol\u00eancia terrorista desde a emerg\u00eancia de grupos anarquistas no s\u00e9culo XIX, na R\u00fassia, como o Narodnaya Volya<\/em>. Entre 1921 e 1931, as mulheres do Ku Klux Klan<\/em> (1865) conseguiram recrutar milhares de indiv\u00edduos para a causa. Entre 1960 e 1970 v\u00e1rias mulheres assumiram pap\u00e9is de lideran\u00e7a em diversas organiza\u00e7\u00f5es terroristas. Por exemplo, Ulrike Meinhof cocriou o grupo o Baader-Meinhof<\/em> (RAF), na Alemanha, e Fusako Shigenobu fundou o Ex\u00e9rcito Vermelho Japon\u00eas. Entre a d\u00e9cada de 1970 e meados de 1980, o grupo \u201cM19<\/a>\u201d, constitu\u00eddo quase na totalidade por mulheres \u2013 cujo nome relembra os perpetradores do 11\/9, \u201cThe Magnificent 19<\/a>\u201d \u2013 perpetrou uma s\u00e9rie de ataques bombistas nos EUA. Nos anos 90, sublinha-se o assassinato do Primeiro-Ministro indiano Rajiv Gandhi (1991) por uma mulher, Thenmozhi Rajaratnam, membro do grupo terrorista Liberation Tigers of Tamil Eelam<\/em> (LTTE) do Sri Lanka, que escondeu um cinto de explosivos no seu vestido. O filme \u201cThe Terrorist<\/a>\u201d (1998) inspira-se no epis\u00f3dio, explorando os motivos para o ataque suicida.<\/p>\n\n\n\n

Nos \u00faltimos anos, as mulheres t\u00eam assumido pap\u00e9is relevantes em grupos terroristas como o autoproclamado Estado Isl\u00e2mico (Daesh<\/em>) e afiliados, participando em atos de viol\u00eancia (enquanto bombistas-suicidas), no recrutamento, financiamento, difus\u00e3o de propaganda e ideologia, bem como em apoio log\u00edstico e operacional. Os ataques perpetrados por mulheres t\u00eam aumentado<\/a> quer em quantidade quer ao n\u00edvel da letalidade. Destaca-se, por exemplo, um atentado de 2017<\/a> em Mossul, no Iraque, perpetrado por 38 bombistas-suicidas do Daesh<\/em> contra civis e for\u00e7as de seguran\u00e7a.<\/p>\n\n\n

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Fusako Shigenobu<\/strong>, fundadora do grupo Japanese Red Army (Jap\u00e3o).<\/figcaption><\/figure><\/div>\n\n\n

V\u00e1rios estudos demonstram que as mulheres aderem aos grupos terroristas por raz\u00f5es<\/a> semelhantes aos homens, incluindo motiva\u00e7\u00f5es pol\u00edtico-ideol\u00f3gicas (cren\u00e7a em determinada causa) e econ\u00f3micas. Outras aderem por quest\u00f5es relativas aos Direitos humanos, por exemplo na espectativa de aceder a determinados recursos ou \u00e0 educa\u00e7\u00e3o (\u00e9 o caso das mulheres do Boko Haram, na Nig\u00e9ria), ou com o objetivo de obter maior liberdade pol\u00edtica e social (\u00e9 o caso das mulheres nas FARC, Col\u00f4mbia, ou no LTTE, Sri Lanka). N\u00e3o obstante, sabe-se tamb\u00e9m que v\u00e1rias s\u00e3o raptadas e for\u00e7adas a cometer atos violentos: por exemplo, 1 em 3 bombistas-suicidas do Boko Haram s\u00e3o menores de idade.<\/p>\n\n\n\n

2. Mulheres como alvos dos terroristas<\/strong><\/p>\n\n\n\n

As mulheres tamb\u00e9m s\u00e3o alvos dos terroristas, sendo visadas tanto por grupos jihadistas como grupos da extrema-direita. Ambos recorrem \u00e0 viol\u00eancia, aos raptos, \u00e0 subjuga\u00e7\u00e3o f\u00edsica e psicol\u00f3gica, e ao tr\u00e1fico sexual. Tal como explic\u00e1mos em texto anterior<\/a>, a dimens\u00e3o sexual \u00e9 importante porque constitui um catalisador para a viol\u00eancia.<\/p>\n\n\n\n

Para o Daesh<\/em><\/a>, as mulheres (e crian\u00e7as) funcionam como um trunfo de recrutamento: milhares de combatentes foram atra\u00eddos para o Califado pela ideia de as disporem sexualmente. As mulheres servem como \u201clinha de montagem\u201d, moeda de troca em negocia\u00e7\u00f5es, e para satisfa\u00e7\u00e3o pessoal de combatentes e l\u00edderes. Os testemunhos das escravas sexuais da minoria iraquiana Yazidi – como o da sobrevivente Nadia Murad<\/a>, Pr\u00e9mio Nobel da Paz (2018) – s\u00e3o evidentes do horror perpetrado.<\/p>\n\n\n\n

Para a extrema-direita<\/a>, as mulheres s\u00e3o vistas como objetos sexuais, demonizadas, e culpadas pela \u201cfalta de sucesso\u201d dos homens em arranjar um relacionamento amoroso. Em 2014, Elliot Rodger, de 22 anos, esfaqueou 7 pessoas na Calif\u00f3rnia, incluindo mulheres, por alegada frustra\u00e7\u00e3o sexual. \u201cHe wanted to punish women for not wanting to sleep with him<\/em>\u201d. Rodger, apelidado pelos seguidores de \u201cSupreme Gentleman<\/em>\u201d, inspirou ataques subsequentes nos EUA, Canad\u00e1 e Europa.<\/p>\n\n\n\n

3. Mulheres como peacekeepers (agentes de contraterrorismo)<\/strong><\/p>\n\n\n\n

As mulheres combatentes do Ex\u00e9rcito do Curdist\u00e3o, as conhecidas Peshmerga<\/em> (\u201cthose who face death<\/em>\u201d), constituem uma das for\u00e7as mais tem\u00edveis para o Estado Isl\u00e2mico. Durante a tomada de Baghuz, o \u00faltimo reduto da guerra contra o Daesh<\/em> na S\u00edria (2019), Afshin Ismaeli, fot\u00f3grafo curdo<\/a>, captou a resist\u00eancia destas mulheres, incluindo a mestria das snipers<\/em>, consideradas as militares mais precisas da regi\u00e3o. \u201cThe best snipers in the area<\/em>\u201d. Outras, mesmo sem treino militar, destacam-se pela coragem: foi o caso desta jovem<\/a> cuja bravura se tornou \u201cviral\u201d em 2017 ao desafiar a morte com um sorriso\u2026<\/p>\n\n\n\n

Para os grupos jihadistas, que preconizam uma vers\u00e3o fundamentalista e extremista do Isl\u00e3o, ser morto por uma mulher \u00e9 uma heresia. Primeiro porque a mulher \u00e9 considerada inferior ao homem. Segundo, porque ser morto por uma mulher significa a impossibilidade de ir parar ao \u201cpara\u00edso isl\u00e2mico\u201d (isto \u00e9, de dispor de 72 virgens\u2026), a recompensa \u201cdivina\u201d para um m\u00e1rtir da causa islamista. Inspirado em hist\u00f3rias reais, o filme \u201cIrm\u00e3s de Armas<\/a>\u201d (2022) relata a hist\u00f3ria de uma rapariga Yazidi vendida como escrava sexual, que se junta \u00e0 resist\u00eancia curda. O filme apresenta mulheres combatentes de v\u00e1rias nacionalidades, incluindo portuguesa (ficcional)\u2026<\/p>\n\n\n

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Poster do filme “Irm\u00e3s de Armas<\/strong>“, realizado por Caroline Fourest<\/figcaption><\/figure><\/div>\n\n\n

As mulheres t\u00eam desempenhado um conjunto de fun\u00e7\u00f5es na \u00e1rea da seguran\u00e7a, em particular como agentes de preven\u00e7\u00e3o e combate ao extremismo violento. Em \u201cA Woman\u2019s Place: US Counterterrorism since 9\/11<\/em>\u201d (2019<\/a>) Joana Cook faz uma an\u00e1lise pioneira sobre o papel das mulheres como agentes de preven\u00e7\u00e3o e mitiga\u00e7\u00e3o da amea\u00e7a terrorista. Em particular, refere que o Departamento de Estado norte-americano (DoD) tem apostado cada vez mais na integra\u00e7\u00e3o de mulheres em opera\u00e7\u00f5es de contraterrorismo, tal como aconteceu no Iraque (2003), no I\u00e9men (2006) \u2013 no qual se estabeleceu uma unidade de elite em contraterrorismo apenas constitu\u00edda por mulheres \u2013 ou no Afeganist\u00e3o, onde se treinou um grupo feminino de For\u00e7as de Opera\u00e7\u00f5es Especiais para colaborar na dete\u00e7\u00e3o de alvos terroristas.<\/p>\n\n\n\n

Comparativamente aos homens, \u00e9 frequentemente reportado que as mulheres t\u00eam maior facilidade em aproximar-se de determinadas v\u00edtimas e alvos, como crian\u00e7as e comunidades mu\u00e7ulmanas (que \u00e9 o grupo populacional mais visado pelos grupos terroristas de matriz jihadista e tamb\u00e9m o mais vigiado pelos servi\u00e7os de informa\u00e7\u00f5es desde o 11\/9, tanto na Europa como nos EUA). O papel tradicional das mulheres em contextos familiares, sobretudo em pa\u00edses com baixos \u00edndices de desenvolvimento socioecon\u00f3mico, tamb\u00e9m tem sido vantajoso para a preven\u00e7\u00e3o do extremismo. Por exemplo, no Afeganist\u00e3o, v\u00e1rias mulheres reportaram que jovens rapazes estariam a ser alvo de a\u00e7\u00f5es de recrutamento em casamentos, den\u00fancia que foi ignorada pelas autoridades. Posteriormente, estes jovens perpetraram um ataque em um autocarro p\u00fablico, vitimando mortalmente 32 civis.<\/p>\n\n\n\n

Nota conclusiva<\/strong><\/p>\n\n\n\n

As mulheres s\u00e3o ativos estrat\u00e9gicos quer para grupos hostis, como organiza\u00e7\u00f5es terroristas, quer para os Estados. Para os grupos terroristas, as mulheres s\u00e3o elementos operacionais e alvos a atingir. Para os Estados, as mulheres s\u00e3o figuras essenciais na preven\u00e7\u00e3o e combate \u00e0 amea\u00e7a terrorista, cred\u00edveis e confi\u00e1veis, que desempenham as suas fun\u00e7\u00f5es de forma competente.<\/p>\n\n\n\n


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24 de julho de 2023<\/p>\n\n\n\n

Joana Ara\u00fajo Lopes<\/strong> \u00e9 Doutoranda em \u201cHist\u00f3ria, Estudos de Seguran\u00e7a e Defesa\u201d no ISCTE. \u00c9 bolseira da FCT e trabalha numa tese sobre o contraterrorismo em Portugal e Espanha, no contexto da Uni\u00e3o Europeia (2004-2020). \u00c9 Mestre em Ci\u00eancia Pol\u00edtica e Rela\u00e7\u00f5es Internacionais pela Universidade NOVA de Lisboa (2017). Trabalhou como estagi\u00e1ria na Embaixada Americana em Lisboa (Assuntos Consulares), no Minist\u00e9rio dos Neg\u00f3cios Estrangeiros (MNE) (Dire\u00e7\u00e3o-Geral de Pol\u00edtica Externa) e no Instituto da Defesa Nacional (IDN). Os seus principais interesses de investiga\u00e7\u00e3o incidem sobre a seguran\u00e7a internacional, o terrorismo, o contraterrorismo, a radicaliza\u00e7\u00e3o, o extremismo violento e a diplomacia.<\/p>\n\n\n\n

https:\/\/ciencia.iscte-iul.pt\/authors\/joana-araujo-lopes\/cv<\/span><\/a><\/p>\n\n\n\n

Baixar documento<\/strong><\/a><\/mark><\/p>\n\n\n\n

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NOTA<\/strong>:<\/mark><\/p>\n\n\n\n