{"id":9975,"date":"2023-11-20T10:04:25","date_gmt":"2023-11-20T10:04:25","guid":{"rendered":"https:\/\/eurodefense.pt\/?p=9975"},"modified":"2023-11-30T08:38:19","modified_gmt":"2023-11-30T08:38:19","slug":"o-fim-de-artsakh-e-as-suas-consequencias-para-a-ue","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/eurodefense.pt\/o-fim-de-artsakh-e-as-suas-consequencias-para-a-ue\/","title":{"rendered":"O fim de Artsakh e as suas consequ\u00eancias para a UE"},"content":{"rendered":"\n

Um dia bastou para encerrar um conflito que se arrastava desde 1991. Nas semanas seguintes, a popula\u00e7\u00e3o local come\u00e7ou a abandonar o territ\u00f3rio disputado, receando o destino que os vencedores lhes reservavam. A rapidez destes eventos e a falta de rea\u00e7\u00e3o internacional abrem caminho ao regresso da viol\u00eancia. Tudo isto est\u00e1 a acontecer \u00e0 nossa frente, mas a Europa parece condenada \u00e0 impot\u00eancia. Ser\u00e1 esta condi\u00e7\u00e3o inevit\u00e1vel?<\/p>\n\n\n\n

A regi\u00e3o do Alto Karabakh (Nagorno-Karabakh), tem uma \u00e1rea de aproximadamente 4,4 mil quil\u00f3metros, \u00e9 rodeada por inteiro pelo Azerbaij\u00e3o e \u00e9 internacionalmente reconhecida como parte deste pa\u00eds. Por\u00e9m, esta distingue-se ao longo dos s\u00e9culos como um exclave arm\u00e9nio. Depois do colapso da Uni\u00e3o Sovi\u00e9tica, as subsequentes tens\u00f5es \u00e9tnicas entre arm\u00e9nios e azeris culminaram na guerra de 1988-94. Uma vez que ambos os Estados s\u00f3 se tornaram sujeitos de c\u00f3digos legais internacionais como a Conven\u00e7\u00e3o de Genebra a partir de 1993, este conflito foi marcado por atrocidades como os massacres de Khojaly (613 civis azeris mortos por tropas arm\u00e9nias segundo o governo de Baku, 200-1000 segundo a Human Rights Watch) e de Maraga (45-100 arm\u00e9nios mortos por for\u00e7as azeris, segundo a Amnistia Internacional). O protocolo de Bishkek, o cessar-fogo acordado pela R\u00fassia em 1994, colocou termo \u00e0 guerra que havia causado aproximadamente 20 mil mortos e centenas de milhares de refugiados. No final desta, a autoproclamada Rep\u00fablica do Alto Karabakh (ou Artsakh) detinha independ\u00eancia de facto, ocupando total e parcialmente sete dos distritos azeris circundantes. Estes serviriam como futuros objetos de troca, a ceder ap\u00f3s um reconhecimento futuro de Artsakh como territ\u00f3rio da Arm\u00e9nia. Contudo, tornava-se vis\u00edvel que a ocupa\u00e7\u00e3o nada tinha de tempor\u00e1rio. O cessar-fogo limitou-se ao papel, com numerosas viola\u00e7\u00f5es registadas nos anos seguintes, envolvendo o uso de drones e artilharia pesada. A mais violenta destas foi a \u201cGuerra dos Quatro Dias\u201d, que como o nome indica realizou-se entre 1 e 5 de abril de 2016, novamente ceifando uma centena de soldados em cada lado e resultando na captura de 8 a 20 km2<\/sup> de territ\u00f3rio pelo Azerbaij\u00e3o.<\/p>\n\n\n\n

Em resposta a fortes escaramu\u00e7as fronteiri\u00e7as durante o ver\u00e3o, a segunda guerra do Alto Karabakh teve lugar entre 27 de setembro e 20 de novembro e, novamente, a R\u00fassia apresentou-se como zeladora de uma paz fr\u00e1gil. Olhando para o mapa, assistiu-se a um inverso da guerra anterior, sendo o Azerbaij\u00e3o o claro vencedor ao recuperar os distritos ocupados bem como uma parcela da rep\u00fablica separatista. Mais importante ainda, o \u00fanico elo entre Artsakh e a Arm\u00e9nia passou a ser o chamado Corredor de Lachin, uma faixa territorial em torno de uma estrada montanhosa a ser patrulhada por um contingente russo de manuten\u00e7\u00e3o da paz. Tanto este destacamento como o Grupo de Minsk, fundado em 1992 sob a \u00e9gide da Organiza\u00e7\u00e3o para a Seguran\u00e7a e Coopera\u00e7\u00e3o na Europa e liderado em conjunto pela Fran\u00e7a, EUA e R\u00fassia, demonstraram-se ineficazes em fazer reinar a paz na regi\u00e3o. Segundo dados do International Crisis Group, do cessar-fogo de 9 de novembro de 2020 at\u00e9 16 de setembro do presente ano registaram-se pelo menos 1225 mortos e feridos, sobretudo causados por minas ou fogo de snipers. Destes, 121 s\u00e3o civis. Evidentemente, o colapso do novo status quo era um dado adquirido. Em 12 de dezembro do ano passado, o Corredor de Lachin foi bloqueado por ativistas azeris protestando contra a alegada \u201cminera\u00e7\u00e3o ilegal\u201d por parte da Arm\u00e9nia no Alto Karabakh. Apesar de Baku refor\u00e7ar a legitimidade dos protestos e apontar as for\u00e7as da paz russas como os respons\u00e1veis pelo bloqueio, a Arm\u00e9nia culpa o regime de Ilham Aliyev. De facto, pouco tempo depois, o Azerbaij\u00e3o cortou o acesso de g\u00e1s natural da Arm\u00e9nia para o Alto Karabakh. Em fevereiro do ano seguinte, no seguimento de uma queixa oficial lan\u00e7ada pela Arm\u00e9nia, o Tribunal Internacional de Justi\u00e7a ordenou o fim do bloqueio do Corredor de Lachin pelo Azerbaij\u00e3o e a tomada de medidas para assegurar a circula\u00e7\u00e3o livre de pessoas e bens essenciais como comida, combust\u00edvel ou medicamentos. Contudo, a falta de meios de coer\u00e7\u00e3o por parte do Tribunal tornava a sua decis\u00e3o vinculativa em nome apenas. Em abril, o ex\u00e9rcito azeri cimentou o bloqueio \u00e0 regi\u00e3o com a constru\u00e7\u00e3o de pontos de controlo ao longo do Corredor, citando a necessidade de controlar o fluxo de armamento vindo da Arm\u00e9nia, assim como novos confrontos no m\u00eas anterior. Durante todo este processo, a for\u00e7a de paz russa nada fez. A situa\u00e7\u00e3o agravou-se no ver\u00e3o, com novos ataques arm\u00e9nios a posi\u00e7\u00f5es azeris na fronteira em junho e acusa\u00e7\u00f5es de contrabando pela Cruz Vermelha por parte de Baku, condicionando ainda mais o acesso de bens humanit\u00e1rios. Em agosto, o argentino Luis Moreno Ocampo, ex-procurador do Tribunal Penal Internacional, acusou o Azerbaij\u00e3o de perpetrar um genoc\u00eddio contra a popula\u00e7\u00e3o de Artsakh, com base no artigo II, al\u00ednea c) da Conven\u00e7\u00e3o para a Preven\u00e7\u00e3o e a Repress\u00e3o do Crime de Genoc\u00eddio. A fome, afirma Ocampo, \u201c\u00e9 a arma de genoc\u00eddio invis\u00edvel. Sem mudan\u00e7as dram\u00e1ticas e imediatas, este grupo de arm\u00e9nios ser\u00e1 destru\u00eddo nas pr\u00f3ximas semanas\u201d.<\/p>\n\n\n\n

Seria de esperar que esta onda de condena\u00e7\u00f5es resultasse em san\u00e7\u00f5es concretas contra Baku, mas tal n\u00e3o aconteceu. Existem muitas palavras ao nosso dispor para descrever os eventos que se seguiram, mas \u201cimprevis\u00edveis\u201d n\u00e3o \u00e9 uma delas. 19 de setembro marcou o in\u00edcio de uma \u201copera\u00e7\u00e3o antiterrorista\u201d levada a cabo pelas for\u00e7as armadas do Azerbaij\u00e3o no Alto Karabakh. A opera\u00e7\u00e3o-rel\u00e2mpago durou 24 horas, resultando na captura de todos os centros estrat\u00e9gicos da regi\u00e3o, incluindo a capital Stepanakert, conhecida em azeri por Khankendi. Um cessar-fogo foi rapidamente acordado, conduzindo ao desarmamento dos arm\u00e9nios. Face esta derrota estrondosa, o presidente do governo separatista, Samvel Shahramanyan, decretou a 1 de janeiro de 2024 \u201ctodas as institui\u00e7\u00f5es estatais [de Artsakh] e as organiza\u00e7\u00f5es sob suas jurisdi\u00e7\u00f5es deixar\u00e3o de existir\u201d. Imediatamente, um mar de pessoas fluiu nas ruas de Yerevan a exigir a demiss\u00e3o de Nikol Pashinyan, o primeiro-ministro em fun\u00e7\u00f5es durante as duas derrotas no Karabakh. Por sua vez, a vit\u00f3ria azeri conduziu \u00e0 fuga de pelo menos 70% da popula\u00e7\u00e3o total de Artsakh em dire\u00e7\u00e3o \u00e0 Arm\u00e9nia. Este \u00eaxodo, na \u00f3tica arm\u00e9nia, constitui outra tentativa de limpeza \u00e9tnica levada a cabo pelo Azerbaij\u00e3o. Segundo a ONU, este conceito designa \u201cuma pol\u00edtica intencional concebida por um grupo \u00e9tnico ou religioso para remover, por meios violentos e inspiradores do terror, a popula\u00e7\u00e3o civil de outro grupo \u00e9tnico ou religioso de determinadas \u00e1reas geogr\u00e1ficas\u201d. Como refere David Scheffer, o princ\u00edpio da Responsabilidade para Proteger (R2P) autoriza o Conselho de Seguran\u00e7a a responder em tais casos, mas a posi\u00e7\u00e3o da R\u00fassia como membro com poder de veto efetivamente ata as m\u00e3os deste \u00f3rg\u00e3o.<\/p>\n\n\n\n

Ilham Aliyev, naturalmente, negou sempre as acusa\u00e7\u00f5es. Dez dias depois da invas\u00e3o de Artsakh, o presidente azeri afirmou que asseguraria a prote\u00e7\u00e3o dos direitos \u201creligiosos, educacionais, culturais, municipais e outros\u201d dos arm\u00e9nios locais. A 15 de outubro, coincidindo com o vig\u00e9simo anivers\u00e1rio da sua ascens\u00e3o \u00e0 presid\u00eancia, Aliyev visitou o rec\u00e9m-depopulado Alto Karabakh e levantou a bandeira do Azerbaij\u00e3o em Stepanakert\/Khankendi. No m\u00eas seguinte, presidiu a uma parada militar na quase deserta cidade celebrando tr\u00eas anos desde a vit\u00f3ria em 2020. Seria suficiente olhar para os \u00faltimos anos, para o cerco de nove meses \u00e0 regi\u00e3o, para a viol\u00eancia e morte causada, de modo a negar qualquer valor \u00e0s promessas vindas de Baku. Contudo, \u00e9 necess\u00e1rio ir mais longe. O poder no Azerbaij\u00e3o encontra-se nas m\u00e3os da fam\u00edlia Aliyev desde a elei\u00e7\u00e3o de Heydar, ex-chefe do ramo azeri KGB, em 1993. Com a sua morte uma d\u00e9cada depois, o seu filho Ilham foi eleito presidente em elei\u00e7\u00f5es cuja credibilidade foi altamente questionada por observadores internacionais. Em 2017, o presidente azeri nomeou como vice-presidente a sua pr\u00f3pria mulher, Mehriban Aliyeva. A cristaliza\u00e7\u00e3o desta dinastia resultou num regime autorit\u00e1rio marcado por corrup\u00e7\u00e3o galopante e fortes ataques \u00e0s liberdades civis. \u00c9 sabido que a for\u00e7a bruta n\u00e3o \u00e9 suficiente para manter viva uma ditadura, \u00e9 necess\u00e1rio fazer com que os cidad\u00e3os se afei\u00e7oem \u00e0 bota no seu pesco\u00e7o. No caso do Azerbaij\u00e3o, Aliyev recorreu \u00e0 institucionaliza\u00e7\u00e3o do \u00f3dio ao povo arm\u00e9nio (armenofobia). Dos manuais escolares aos meios de comunica\u00e7\u00e3o, o cidad\u00e3o azeri m\u00e9dio \u00e9 bombardeado com propaganda que pinta os arm\u00e9nios como inerentemente trai\u00e7oeiros, desleais e impiedosos, ao ponto de a palavra \u201carm\u00e9nio\u201d ser vista quase como sin\u00f3nimo de \u201cinimigo\u201d. Bastam alguns exemplos para reconhecer de onde este \u00f3dio jorra: em 2020, o ditador azeri celebrou a vit\u00f3ria contra a \u201clideran\u00e7a fascista da Arm\u00e9nia\u201d e como os ocupantes dos distritos foram escorra\u00e7ados \u201ccomo c\u00e3es\u201d. Um ano depois, foi inaugurado em Baku o Parque dos Trof\u00e9us Militares, que como o nome indica coloca em exposi\u00e7\u00e3o armamento tomado pelo ex\u00e9rcito do Azerbaij\u00e3o ap\u00f3s a Segunda Guerra do Karabakh. O local, que disp\u00f4s temporariamente capacetes de soldados arm\u00e9nios mortos em combate e manequins de cera grotescos destes, foi de imediato reconhecido por Yerevan e especialistas ocidentais como Thomas de Waal como um monumento \u00e0 humilha\u00e7\u00e3o e desumaniza\u00e7\u00e3o coletiva de um povo, contando tamb\u00e9m com a condena\u00e7\u00e3o pelos parlamentos europeu e holand\u00eas, em maio e junho respetivamente.<\/p>\n\n\n\n

A armenofobia manifesta-se na pol\u00edtica externa azeri, na vis\u00e3o de Martin Makaryan, ao direcion\u00e1-la para a recupera\u00e7\u00e3o de territ\u00f3rios considerados historicamente seus. Para o efeito, os vastos recursos energ\u00e9ticos deste pa\u00eds foram instrumentalizados para melhorar as suas rela\u00e7\u00f5es com o Ocidente, a R\u00fassia e, sobretudo, a Turquia e Israel. As rela\u00e7\u00f5es com o primeiro, alicer\u00e7adas na proximidade cultural, lingu\u00edstica e religiosa, pautaram desde cedo por uma \u00edntima colabora\u00e7\u00e3o militar e econ\u00f3mica. A conquista do Alto Karabakh certamente fortalecer\u00e1 as ambi\u00e7\u00f5es de Ankara em aumentar a sua influ\u00eancia na \u00c1sia Central e, talvez, dar\u00e1 novo f\u00f4lego \u00e0 expans\u00e3o do gasoduto Baku-Tbilisi-Erzurum pelo Mar C\u00e1spio em dire\u00e7\u00e3o ao Turquemenist\u00e3o e aos seus dep\u00f3sitos de g\u00e1s natural. Em respeito a Israel, este constitui mais de 60% das importa\u00e7\u00f5es de armas do Azerbaij\u00e3o, entre 2017 e 2020. A colabora\u00e7\u00e3o entre os dois pa\u00edses estende-se ao com\u00e9rcio energ\u00e9tico (em 2021, 65% do petr\u00f3leo importado por Israel era azeri) e \u00e0 alegada partilha de intelig\u00eancia sobre o Ir\u00e3o. Contudo, as afirma\u00e7\u00f5es explosivas de Erdogan sobre Israel e a sua simpatia declarada pelo Hamas, no seguimento da ofensiva israelita em Gaza \u2013 por sua vez em retalia\u00e7\u00e3o ao massacre perpetrado pelo grupo terrorista a 7 de outubro \u2013 constituem um risco aos esfor\u00e7os do Azerbaij\u00e3o em equilibrar as suas rela\u00e7\u00f5es com os seus principais parceiros estrat\u00e9gicos.<\/p>\n\n\n\n

Central a toda esta quest\u00e3o \u00e9, claro, a posi\u00e7\u00e3o da R\u00fassia. \u00c9 importante relembrar que foi durante um processo de desagrega\u00e7\u00e3o imperial, neste caso a implos\u00e3o da URSS, que o conflito do Alto Karabakh como o conhecemos surgiu. A regi\u00e3o constitu\u00eda um exclave aut\u00f3nomo no seio da rep\u00fablica sovi\u00e9tica do Azerbaij\u00e3o, que procurou a secess\u00e3o do novo Estado azeri e a uni\u00e3o com a Arm\u00e9nia. Desde ent\u00e3o, a Federa\u00e7\u00e3o Russa, como Estado sucessor da Uni\u00e3o Sovi\u00e9tica e herdeira do projeto imperial do Kremlin, procurou agir como mediadora entre ambos intervenientes. Como garante da paz, a sua a\u00e7\u00e3o foi um falhan\u00e7o completo. Para todos os efeitos, a R\u00fassia permitiu a vit\u00f3ria azeri. Os motivos s\u00e3o f\u00e1ceis de apontar, \u00e0 medida que os seus esfor\u00e7os se concentram cada vez mais no marasmo militar na Ucr\u00e2nia, a defesa do seu aliado arm\u00e9nio contra um pa\u00eds apoiado pela Turquia e por Israel est\u00e1 fora de quest\u00e3o mesmo se Moscovo o quisesse. E, urge perguntar, ser\u00e1 que o quereriam? Como referido, a Arm\u00e9nia \u00e9 um aliado tradicional da R\u00fassia, membro da Organiza\u00e7\u00e3o do Tratado de Seguran\u00e7a Coletiva, mas as garantias de seguran\u00e7a dizem apenas respeito \u00e0s fronteiras internacionalmente reconhecidas. Ou seja, n\u00e3o se aplicam ao Alto Karabakh. Em segundo lugar, como seria de esperar, a ina\u00e7\u00e3o de Moscovo fora duramente criticada por Nikol Pashinyan. A Arm\u00e9nia, segundo o seu primeiro-ministro, j\u00e1 n\u00e3o pode depender da R\u00fassia para a sua seguran\u00e7a. A esta afirma\u00e7\u00e3o seguiram-se, em setembro, exerc\u00edcios militares conjuntos entre a Arm\u00e9nia e os EUA, e a ades\u00e3o, no m\u00eas seguinte, ao Tribunal Penal Internacional, o que implica a deten\u00e7\u00e3o de captura de Vladimir Putin, se o ditador russo alguma vez estiver em solo arm\u00e9nio. Assim, uma viragem para Baku faz perfeito sentido, geopoliticamente falando. De facto, o com\u00e9rcio entre os dois pa\u00edses tem-se intensificado e existem suspeitas cred\u00edveis de que o Azerbaij\u00e3o tem auxiliado a R\u00fassia a contornar san\u00e7\u00f5es ocidentais ao revender g\u00e1s russo para a Europa.<\/p>\n\n\n\n

Em suma: eis um ditador, no poder h\u00e1 duas d\u00e9cadas, a moldar as mentes e os cora\u00e7\u00f5es da popula\u00e7\u00e3o que governa para subjugar territ\u00f3rios que julga serem seus por direito, assim como para definir a identidade hist\u00f3rica do seu pa\u00eds como essencialmente antag\u00f3nica ao seu vizinho, que por sua vez \u00e9 uma democracia fr\u00e1gil. Ao mesmo tempo, serve-se dos seus recursos energ\u00e9ticos para limitar a a\u00e7\u00e3o do Ocidente a condena\u00e7\u00f5es p\u00edfias. Soa familiar? Os paralelos entre o avan\u00e7o do Azerbaij\u00e3o e a invas\u00e3o russa da Ucr\u00e2nia nada t\u00eam de subtis. Por\u00e9m, depois de anos a ignorar olimpicamente todos os riscos associados \u00e0 depend\u00eancia energ\u00e9tica da R\u00fassia, eis que a Uni\u00e3o Europeia repete a proeza, em julho do ano passado, ao assinar um acordo energ\u00e9tico com Baku. N\u00e3o s\u00f3 este acordo compromete a posi\u00e7\u00e3o europeia sobre a Ucr\u00e2nia, bem como a reputa\u00e7\u00e3o de Ursula von der Leyen como presidente da Comiss\u00e3o Europeia, como requer investir largas somas de fundos e recursos em gasodutos que contam tamb\u00e9m com presen\u00e7a russa e iraniana. Querendo desamarrar-se de uma autocracia, Bruxelas lan\u00e7a-se para os bra\u00e7os de outra. Existe outro aspeto a considerar sobre a impot\u00eancia ocidental, sobretudo europeia: a defesa da integridade territorial da Ucr\u00e2nia coincide com a resposta necess\u00e1ria \u00e0 mir\u00edade de atropelos aos direitos humanos pelo invasor russo, sendo a anexa\u00e7\u00e3o do sul da Ucr\u00e2nia pela R\u00fassia merecidamente vista como ilegal. No caso do Alto Karabakh, que sempre fora reconhecido internacionalmente como territ\u00f3rio azeri, o apelo \u00e0 integridade territorial serve como pretexto para legitimar toda e qualquer a\u00e7\u00e3o por parte do Estado. Neste cen\u00e1rio, como real\u00e7a Ariz Kader, a responsabilidade internacional em impedir atrocidades esfuma-se desde que estas se cinjam a \u201cassuntos internos\u201d. Ou seja, legitimam-se campanhas semelhantes como o massacre dos Rohingya em Myanmar ou o internamento dos uigures na China. As condena\u00e7\u00f5es e as strongly worded letters continuar\u00e3o, com a expect\u00e1vel margem de insucesso associada.<\/p>\n\n\n\n

Seguindo esta l\u00f3gica, o assunto est\u00e1 encerrado. O Azerbaij\u00e3o apenas tomou territ\u00f3rio que o resto do mundo j\u00e1 reconhecia como seu e a Arm\u00e9nia aprendeu que a amizade russa pode ser quase t\u00e3o mort\u00edfera como a hostilidade russa. Esta \u00e9 a parte em que se coloca o Di\u00e1logo de Melos a descongelar e se proclama, com o nosso indicador em riste, que os fortes fazem o que querem e os fracos sofrem o que devem. Mas se os fortes fazem o que querem, porqu\u00ea ficarem por aqui? Ilham Aliyev ganhou a sua guerra, condenou os habitantes de Artsakh ao ex\u00edlio e marchou as suas tropas no territ\u00f3rio conquistado. Isto tudo sem san\u00e7\u00f5es, sem consequ\u00eancias concretas, muito pelo contr\u00e1rio. Porqu\u00ea parar? Os olhos do mundo passam ent\u00e3o para a prov\u00edncia arm\u00e9nia de Syunik, situada entre o Azerbaij\u00e3o e o exclave azeri de Nakhichevan. Baku pode muito bem sentir-se empoderado para interligar os seus territ\u00f3rios atrav\u00e9s de uma via extraterritorial, o dito \u201cCorredor de Zanguezur\u201d (o nome azeri de Syunik). Esta tentativa de press\u00e3o por parte do Azerbaij\u00e3o coincide com o retomar da ret\u00f3rica irredentista, sendo toda a prov\u00edncia descrita por Aliyev como parte do \u201cAzerbaij\u00e3o Ocidental\u201d, devendo ent\u00e3o ser \u201creconquistado\u201d de modo a permitir o \u201cregresso\u201d dos azeris \u00e9tnicos que haviam sido \u201cexpulsos\u201d pela Arm\u00e9nia. Se o Corredor for implementado com sucesso, contribuir\u00e1 para a cristaliza\u00e7\u00e3o de um bloco autocr\u00e1tico e revisionista na Eur\u00e1sia, composto pela R\u00fassia, China, Turquia e Ir\u00e3o, constituindo uma amea\u00e7a \u00e0 ordem internacional assente em regras. Ao mesmo tempo, contribuir\u00e1 para a crescente irrelev\u00e2ncia geopol\u00edtica da Arm\u00e9nia, aumentando a oposi\u00e7\u00e3o interna a Pashinyan e possivelmente a ascens\u00e3o de uma for\u00e7a pol\u00edtica pr\u00f3-russa e antiocidental.<\/p>\n\n\n\n

O que pode a Uni\u00e3o Europeia fazer? O desfecho do conflito no Alto Karabakh parece deitar por terra as pedras basilares da ordem liberal que esta organiza\u00e7\u00e3o advoga \u2013 diplomacia preventiva, governan\u00e7a assente nos direitos humanos, responsabilidade internacional, etc. \u2013 e exp\u00f5e a nu a patente hipocrisia nas suas a\u00e7\u00f5es. \u00c9 poss\u00edvel olhar para o aparente colapso desta ordem como um retorno a um realismo hobbesiano cru, mas se as regras estiverem de facto em causa nada impede um esfor\u00e7o para as substituir por algo melhor. A derrota russa na Ucr\u00e2nia permanece um cen\u00e1rio bastante prov\u00e1vel, independentemente da demora ocidental em providenciar Kyiv com os meios militares necess\u00e1rios, logo \u00e9 realista prever um v\u00e1cuo no C\u00e1ucaso do Sul, v\u00e1cuo esse que pode ser disputado entre a Turquia e a Uni\u00e3o Europeia, se existir vontade pol\u00edtica para tal. Um aprofundar dos la\u00e7os com a Europa, que para Marcel R\u00f6thig passa pela implementa\u00e7\u00e3o de um regime de isen\u00e7\u00e3o de vistos com Yerevan e, futuramente, pela transforma\u00e7\u00e3o da j\u00e1 existente miss\u00e3o civil em territ\u00f3rio arm\u00e9nio para um verdadeiro contingente militar que, ao contr\u00e1rio do destacamento russo, seria capaz e comprometido em assegurar a paz na regi\u00e3o. Segundo Marie Dumoulin e Gustav Gressel, a Europa pode e deve recorrer ao seu poderio econ\u00f3mico para aliviar o acolhimento de refugiados artsakhis pela Arm\u00e9nia e instrumentalizar os previamente mencionados fundos destinados \u00e0 coopera\u00e7\u00e3o energ\u00e9tica com o Azerbaij\u00e3o para atenuar o jingo\u00edsmo de Aliyev e possivelmente conduzir os l\u00edderes de ambos pa\u00edses a um verdadeiro acordo de paz. Naturalmente, o principal obst\u00e1culo, tanto a estas a\u00e7\u00f5es como a eventuais san\u00e7\u00f5es econ\u00f3micas, \u00e9 o prov\u00e1vel veto da Hungria e de outros pa\u00edses receosos de verem condicionado o acesso ao g\u00e1s azeri (It\u00e1lia, Bulg\u00e1ria, Rom\u00e9nia). Por outro lado, a defesa dos interesses da Arm\u00e9nia assemelha-se parcialmente aos desejos de autonomia estrat\u00e9gica europeia ao serem principalmente frutos de iniciativa francesa. Uma eventual mudan\u00e7a de rumo coletiva arrisca-se, assim, a ser pintada como nada mais que chauvinismo gaullista.<\/p>\n\n\n\n

Esse cen\u00e1rio, em ambos os casos, s\u00f3 se materializa se n\u00e3o existir vontade pol\u00edtica dos Estados-membros da Uni\u00e3o Europeia. Conclui Sossi Tatikyan que se a comunidade internacional \u2013 diga-se, a UE, os EUA e\/ou a ONU \u2013 n\u00e3o se comprometer a medidas concretas para anular a anexa\u00e7\u00e3o do Alto Karabakh, isto \u00e9, assegurar o reconhecimento de Artsakh pelo Azerbaij\u00e3o, a retirada do ex\u00e9rcito azeri e a desmilitariza\u00e7\u00e3o do Alto Karabakh, bem como o regresso dos mais de 100 mil arm\u00e9nios exilados e o restabelecimento do Corredor de Lachin, ver-se-\u00e1 obrigada a aceitar a nova realidade e a fortalecer a posi\u00e7\u00e3o arm\u00e9nia no novo panorama regional. Isto implica que a limpeza \u00e9tnica do Alto Karabakh \u00e9 um dado adquirido e que s\u00e3o as pot\u00eancias revisionistas a decidir a pr\u00f3xima jogada. N\u00e3o tem de ser assim. O recuo da ordem liberal \u00e9 uma escolha.<\/p>\n\n\n\n


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20 de novembro de 2023<\/p>\n\n\n\n

Alexandre Almeida<\/strong>
EuroDefense Jovem-Portugal<\/em><\/p>\n\n\n\n


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REFERENCES<\/strong><\/p>\n\n\n\n

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NOTA<\/strong>:<\/mark><\/p>\n\n\n\n