Desde os primórdios da humanidade a comunicação consistiu numa necessidade basilar da vida em sociedade, tornando-se cada vez mais essencial e desenvolvida à medida que as civilizações foram crescendo e se alastrando geograficamente. As tecnologias de comunicação e de partilha de dados tornaram-se deste modo o elemento mais importante e omnipresente de todas as ações humanas, recorrendo ao espaço livre como meio de transmissão de informações, desde as mais mundanas às mais confidenciais.
Contudo, este desenvolvimento positivo das comunicações trouxe consigo a possibilidade de utilizar estas redes com propósitos disruptivos e destrutivos. De facto, temos assistido à emergência de tecnologias capazes de corromper o status quo regional e mundial, alternado não só o quotidiano dos cidadãos, mas também as cadeias de valor, as forças laborais e económicas, desestabilizar a segurança e representar novas ameaças globais.
Efetivamente, os aviões de combate, os tanques de guerra, os navios de guerra e os submarinos pertencem a conflitos ultrapassados e desatualizados, instalando-se uma luta quase invisível e silenciosa de emissões eletromagnéticas e radares, tornando-se um catalisador para a eclosão de conflitos eletrónicos armados regionais e globais.
Esta Guerra Eletrónica (Eletronic War – EW) torna-se assim o elemento fundamental dos conflitos modernos, recorrendo a gadgets disruptivos tanto para fins de defesa como para o ataque, e utilizando o espectro eletromagnético como uma “no mans land” livre para exploração e navegação. Deste modo, é essencial priorizar a estratégia eletrónica e a salvaguarda tecnológica nas políticas de defesa de modo a incluir uma segurança universal e atender a todos os pontos emergenciais nos conflitos.
Apesar de a Guerra Tecnológica se ter propagado e normalizado sobretudo no séc.XXI, este conceito remete até à Guerra Russo-Japonesa de 1905, onde “pionou-se” o uso destas tecnologias, quando os comandantes navais russos tentaram bloquear as transmissões de rádio dos navios japoneses.
Assim, o conceito básico de guerra eletrónica consiste no uso e exploração de emissões eletromagnéticas a fim de adquirir informações relativamente à ordem de batalha, as intenções e as capacidades do inimigo, impedindo assim a realização da missão pretendida, bem como utilizar contramedidas para negar ou manipular a utilização efectiva dos sistemas de comunicações e de armas, protegendo simultaneamente a utilização efectiva do mesmo espectro.
Deste modo, as principais técnicas da Guerra Tecnológica centram-se nas contramedidas eletrónicas (ECM – electronic countermeasures), que se baseiam em ações tomadas para impedir ou reduzir a utilização efetiva do espectro eletromagnético pelo inimigo.
Assim, podemos sumarizar os objetivos das ECM em 4 pilares:
- Bloquear a aquisição e difusão de informação no espectro eletromagnético e nos sistemas de comunicação por indivíduos hostis, negando-lhes o acesso a dados sobre a presença, estrutura, composição e atividades das forças pertencentes, tal como negar acesso à intercepção de informação das forças oponentes.
2. Saturar as tecnologias de recolha e processamento de dados e operação dos sistemas das forças hostis a fim de imobilizar a sua vantagem eletrónica.
3. Manipular a informação recebida pelo oponente, através da disposição ou introdução de dados falsos nos sistemas eletrónicos hostis, gerando respostas ineficazes e desestabilizando o comando de controlo.
4. Danificar ou derrubar os sistemas hostil de modo a incapacitar a sua utilização das suas redes de estrutura C3 (comando, controlo e comunicação).
Deste modo, a fim de alcançar esses objetivos, as duas principais ações de ECM são o jamming e a decepção.
O Jamming, através da irradiação ou reflexão deliberada de uma forte quantidade de ondas electromagnéticas, moduladas com ruído, numa frequência precisa, substitui ou obscurece o sinal hostil atacado, bloqueando assim essa emissão e a capacidade o inimigo se comunicar.
Já a técnica de Deception explica-se na radiação, re-radiação, alteração, absorção ou reflexão deliberada de energia electromagnética de forma a induzir o inimigo em erro na interpretação ou utilização de informações recebidas pelos seus sistemas electrónicos.
Esta interferência hoje em dia já consegue ser realizada a longa distância, sendo utilizada muito recorrentemente por Estados para que os seus cidadãos não recebam programas do exterior e o exterior não aceda a informação interna nacional, e em atividades militares onde o bloqueio é frequentemente empregado para confundir o radar ou as comunicações inimigas. O uso desta técnica tem-se tornado cada vez mais significativo, tendo também em conta o aumento da complexidade técnica da guerra moderna, desempenhando um papel essencial nas estratégias e nos modus operandi nos conflitos.
Ainda é importante destacar as técnicas de contra-contra medida eletrónica (ECCM – Electronic Counter-Countermeasures) que, em resposta às ECM, operam como medidas de proteção electrónica, como é exemplo do espectro de propagação de salto de frequência, onde se realiza um zapping dos canais de frequência de acordo com um padrão prescrito, conhecido apenas pelo transmissor e pelo receptor.
De modo geral, o equilíbrio das técnicas de ECM e ECCM materializam-se na capacidade de um Estado ou grupo-paramilitar de controlar eletronicamente os três “R” (reconhecimento, reação, resolução), um fator chave para o sucesso de uma missão. É preciso “reconhecer” as surpresas e estimar corretamente o seu efeito, “reagir” imediatamente alertando as forças corretivas para responder e “resolver” a situação através de um esforço de grupo militar/científico orientado para uma missão dinâmica motivada por soluções. Contudo, é de notar que a eficácia das táticas de ECM e ECCM dependem do seu fator surpresa e são susceptíveis ao tempo, sendo cada vez mais facilmente bloqueadas e desfeitas pelo inimigo. Ainda, as mentes por detrás destes sistemas são a verdadeira chave no combate tecnológico, sendo necessário investir num bom sistema, mas principalmente num bom técnico e estrategista que saiba agir em conformidade com as ferramentas ao seu dispor.
Figura1. Fonte: Singh, M. (1988). Electronic Warfare. Defence Scientific Information & Documentation Centre (DESIDOC).
Conflito na Ucrânia
Efetivamente, com o aumento do arsenal militar tecnológico da Rússia e o aumento da sua sofisticação, as ECM e ECCM foram se tornando o aspecto mais importante dos conflitos contemporâneos.
Há muito que a Rússia é conhecida como tendo algumas das unidades de EW mais experientes e mais bem equipadas do mundo. Desde a anexação da Crimeia em 2014 que a EW tem desempenhado um papel fundamental nas operações russas na “zona cinzenta”, recorrendo especialmente a veículos Leer-3 EW e drones Orlan-10 para bloquear as comunicações ucranianas e para envio de propaganda falsa pelas redes locais de telefonia móvel, tal como a deteção e ataque a rádios ucranianos por sistemas terrestres e aéreos.
Dos dispositivos mais frequentes na estratégia russa destaca-se as transmissões de interferência de bloqueio, como o bloqueador russo R-330Zh Zhitel, contendo a potência de desligar qualquer tipo de comunicação via GPS, satélite e redes de telefonia móvel nas bandas VHF e UHF num raio de dezenas de quilômetros. Este dispositivo, implantado em drones Orlan-10 portáteis, foi aplicado durante a insurgência de 2014-2022 no leste da Ucrânia, sendo comandados por um sistema de controle montado num caminhão, capacitando o ataque a comunicações VHF e UHF, propagando ordens falsas para tropas e civis ucranianos. Ainda, para proteger e camuflar os seus sistemas eletrônicos, os russos incluem uma vasta rede de Eletronic Suport (ES) que permite encontrar e caracterizar rapidamente potenciais alvos de bloqueio e geolocalizar transmissões de rádio e movéis inimigas e, em seguida, passar essas informações para que possam ser usadas para direcionar um ataque localizado. Um grande exemplo desta tecnologia é o dispositivo Moskva-1, um receptor HF/VHF de precisão que usa os reflexos de sinais de TV e rádio para realizar operações passivas de localização coerente ou radar passivo.
Relativamente à atual guerra na Ucrânia, as brigadas dedicadas à EW encontram-se controladas por centenas de soldados e distribuídas por cinco distritos militares russos – Oeste, Sul, Norte, Central e Leste – a fim de garantir uma boa distribuição regional das operações de radares de vigilância inimiga e redes de comunicação por satélite ao longo de centenas de quilômetros. Cada brigada está carregada com imenso poder tecnológico e intelectual, encontrando-se equipada com tecnologia de ECM, ECCM e ES, incluindo sistemas Krasukha-2 e -4, Leer-3, Moskva-1 e Murmansk-BN, bem como 100 soldados altamente qualificados nas questões de EW e CiberSegurança treinados para apoiar ações locais dentro de cerca de 50 quilômetros usando sistemas menores, como o R-330Zh Zhitel.
Esta distribuição geográfica equilibrada é indispensável para uma boa gestão e funcionamento das táticas de EW, uma vez que que estes sistemas, apesar de avançados, são controlados por rádios de linha de visão que operam nas bandas Kum e Ku, o que os impede de se afastarem demasiado dos seus operadores no terreno. Deste modo, procedeu-se com um avanço terrestre das tropas russas pelo Donbass, e o uso de táticas de cerco, para poder instalar os sistemas EW e guiar a partir daí os ataques.
Contudo, à medida que o conflito se vai distanciando do meio rural e se aproximando dos centros urbanos, a sofisticação eletrónica requerida vai aumentando. O uso de unidades Leer-3 para encontrar caças ucranianos por meio de transmissões de rádio e móvel, como fizeram no Donbass, vai perdendo a sua eficácia à medida que as transmissões de telemóveis civis se misturam com comunicações militares, complicando a análise dos sistemas. Ademais, apesar da quase omnipotência dos sistemas eletrônicos russos, a diminuição de armamento, sobretudo de mísseis de longo alcance, complica a exploração total da EW, uma vez que sozinhos os sistemas eletrónicos só conseguem no máximo disturbar e sabotar o inimigo. Assim, usando sistemas de contra-drones fornecidos pelos Estados Unidos antes e durante a invasão, as forças ucranianas vão conseguindo bloquear os sinais enviados pelos drones russos, bem como abatendo estes dispositivos, quer com armamento ou com feixes de micro-ondas de alta potência que danifica os transistores e circuitos integrados.
Deste modo, o conflito na Ucrânia tem demonstrado que a EW contém um poder transformador tecnológico na guerra, moldando-a para uma vertente mais eletrônica. Contudo, também está expõe que os fundamentos tradicionais da guerra ainda importam, uma vez que ainda dependem de suporte aéreo para operacionalizar as táticas eletrônicas e de armamento de longa distância para efetivar os objetivos da EW.
Tem-se observado nos últimos anos uma difusão das técnicas de EW dentro e entre atores não governamentais e grupos paramilitares, fruto da evolução da tecnologia moderna e do patrocínio de certos Estados aliados a estes grupos. Embora organizações como o Hamas, historicamente, sejam dotados de menores condições econômicas e intelectuais para trabalhar e processar dispositivos de EW, os seus interesses e capacidades têm evoluindo à medida que as tensões regionais se foram construindo. Apesar de esta informação não poder ser oficial confirmada, Emily Harding, diretora do programa de inteligência, segurança nacional e tecnologia do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais (CSIS), defende a possibilidade de “… [o Irão] compartilhou esse tipo de experiência com o Hamas e com o Hezbollah.”[1], equipando-o com equipamentos sofisticados de EW, suficientemente forte para degradar os sistemas eletrónicos israelenses e respectivos drones em nível baixo ou terrestre em Gaza.
Ademais, com o avanço tecnológico contemporâneo e a fácil comercialização e acesso a estas tecnologias, o porte e uso de bloqueadores e drones de guerra tornou-se absurdamente fácil. Esta “democratização da tecnologia é uma das características da guerra atual”, aumentando não só o poder militar das ameaças globais existentes, como também cria a oportunidade para aparecer novas ameaças mais fortes e mais globalmente dispersas.
De acordo com um relatório do grupo de análise de drones Dronesec[2], o conflito na Palestina revelou o uso de táticas altamente sofisticadas com drones por parte do Hamas, utilizando pequenos drones comerciais para lançar granadas em tanques, ambulâncias, postos de fronteira e torres de comunicação, programando-os também para autonomamente evitarem contramedidas eletrônicas. Entre os dispositivos mais utilizados destaca-se os módulos portáteis de ataque eletrônico CACI Internacional Mono Backpackable Electronic Attack Module (M-BEAM), ideal para pequenas forças militares, uma vez que cabe em uma mochila e pode ser usado por soldados ou afixados em drones. De acordo com a CACI, o sistema inspeciona o ambiente, permitindo que as unidades implantadas combatam adversários, extensores de alcance, comunicações celulares, rádios push-to-talk digitais ou analógicos, links de dados, WiFi, Mode-S/ADS-B, Bluetooth e sinais de vídeo digitais ou analógicos, contendo uma boa potência de combate contra pequenas aeronaves não tripuladas (sUAS) e outros alvos de forma coordenada.
Esta estratégia discreta e coordenada de micro ataques localizados e ECCM altamente avançado, apesar de menores e improvisados, tem desafiado os avançados sistemas de EW de Israel. Apesar de as Forças de Defesa de Israel (IDF) terem um dos sistemas de EW mais sofisticados do mundo e uma estratégia de interligação de capacidades de EW de baixo e alto nível, o Hamas consegue explorar as lacunas da capacidade do IDF. Uma das maiores tecnologias de destaque é o produto de spyware chamado Pegasus, fundado e desenvolvido por soldados da unidade de inteligência cibernética de elite 8200 de Israel. Equipado em drones de guerra, Israel tem utilizado este dispositivo em Gaza com o objetivo de enviar um sinal falso, simulando torres de comunicação móvel, enganando os telefones para que se conectem e baixem a carga útil do software. Deste modo, os drones são programados para capturar dados pessoais de telefones próximos, permitindo que os oficiais de inteligência israelenses determinem rapidamente se os fugitivos procurados estavam escondidos dentro de determinado edifício. De seguida, com os dados fornecidos pelos drones, robôs de combate terrestre e drones de reconhecimento adicionais podem ser enviados antes de enviar uma equipa de soldados.
Efetivamente observam-se imensas semelhanças do conflito na Palestina e do conflito na Ucrânia. Tanto a Rússia e Israel se destacam na área da guerra tecnológica, contudo foram desafiados pela enorme capacidade de adaptação e aprendizagem da Ucrânia e do Hamas. Todavia, o Hamas impressiona ainda mais na sua capacidade de ligar a nova tecnologia à tecnologia antiga e na sua capacidade de escapar das táticas de ECM israelitas e atingir os seus drones de forma precisa e eficaz, demonstrando uma capacidade inesperada de inteligência cibernética.
Com o aumento das potencialidades das tecnologias observadas nos conflitos modernos, respetivamente se observa um crescimento dos desafios para se preparar para o seu impacto. A expansão do papel da tecnologia nos conflitos armados tem fortemente demonstrado que um Estado para estar seguro não requer somente umas Forças Armadas fortes e um armamento potente, necessitando assim também de uma vasta rede de sistema de EW e inteligência humana para o saber operar.
Como observado nos recentes conflitos na Ucrânia e na Palestina, a natureza da guerra mudou e continuará em mudança à medida que, com a evolução incessante da tecnologia militar aplicada, as armas eletrônicas e as armas guiadas eletronicamente estão automatizando a guerra. Esta mudança exigirá fortes programas de formação tecnológica e informática dos militares e um maior e constante investimento em dispositivos de EW, de forma a que os Estados e outros agentes internacionais estejam aptos para enfrentar os desafios que as próprias novas tecnologias trarão.
Os líderes mundiais devem manter as suas estratégias atualizadas diante das tecnologias em constante evolução, e garantir que as suas estruturas de defesa continuem a olhar para o futuro e para um uso inteligente das tecnologias para melhorar o seu desempenho. Embora as respostas apropriadas variem de acordo com as partes interessadas e a tecnologia disponível, o investimento na defesa eletrônica ajudará os Estados a se preparar para os efeitos dos conflitos modernos.
As tecnologias disruptivas estão a mudar o jogo da guerra, criando ameaças e desafios totalmente novos. É por isso vital dispor de um aumento de investimento para a investigação científica e desenvolvimento tecnológico militar de defesa, a fim de desenvolver os meios necessários para alcançar superioridade tecnológica na defesa, que se tornou agora uma via obrigatória para o sucesso da segurança global.
17 de maio de 2024
Lara Sintra
Lara Sintra é Licenciada em Ciência Política e Relações Internacionais pela NOVA-FCSH e está a frequentar a Pós-graduação em Crise e Ação Humanitária do ISCSP. É, ainda, alumni do Estágio Académico EuroDefense Portugal 2023/2024.
* Artigo redigido sob orientação do Tenente-general António Fontes Ramos.
[1] Tegler, E. (2023). A new micro kind of electronic warfare may be unfolding in Gaza. Forbes.
[2] Tegler, E. (2023). A new micro kind of electronic warfare may be unfolding in Gaza. Forbes.
Bibliografia
CACI international. (sem data). Forbes.
Clark, B. (2022). The fall and rise of Russian electronic warfare. IEEE Spectrum.
de Souza Toscano, R. (2006). Bloqueador De Múltiplas Frequências: Concepção do Sistema e estudo de Caso para Terminais IS-95. INSTITUTO MILITAR DE ENGENHARIA.
Manyika, J., Chui, M., Bughin, J., Dobbs, R., Bisson, P., & Marrs, A. (2013). Disruptive technologies: Advances that will transform life, business, and the global economy. McKinsey & Company.
Sieger, J. (2023). Electronic warfare: Israel ramps up GPS jamming to counter Hamas drone attacks. FRANCE 24.
Singh, M. (1988). Electronic Warfare. Defence Scientific Information & Documentation Centre (DESIDOC).
Tegler, E. (2023). Could Hamas be jamming GPS in and around Gaza? Forbes.
Tegler, E. (2023). A new micro kind of electronic warfare may be unfolding in Gaza. Forbes.
Tikkanen, A. (sem data). Electronic Warfare. Em Britannica.
Tucker, P. (2023). The next drone war is coming to Gaza. Defense One.
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