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“Novos Horizontes: a Transformação do Sistema Global”

5ª “Edição Europa” das Tertúlias EDJ

Introdução

Num mundo cada vez mais interconectado, a necessidade de reformar o sistema internacional vigente torna-se uma questão premente. As grandes potências, em busca de ganhos absolutos, frequentemente utilizam o sistema para promover seus próprios interesses, muitas vezes em detrimento da coletividade global. Este comportamento tem levado a um desequilíbrio no poder e na influência dentro das instituições internacionais, como a Organização das Nações Unidas (ONU) e a União Europeia (UE), que foram criadas para promover a paz e a cooperação entre os países.

Atualmente, observamos uma tendência das grandes potências em utilizar o sistema internacional para reforçar sua própria posição geopolítica. Isso é evidente nas diversas esferas de influência que se estabelecem, seja através de alianças militares, acordos econômicos ou mesmo na imposição de normas e regulamentos que beneficiam principalmente esses países. Tal dinâmica gera uma competição que pode levar a conflitos e instabilidade, ao invés de cooperação e paz.

A ONU, com suas propostas de reforma, busca adaptar-se às mudanças do século XXI, focando mais nas pessoas e menos nos processos. A UE, por sua vez, tem desempenhado um papel de garante da segurança e interveniente global a favor da paz. Ambas as instituições têm como objetivo prevenir a primazia do discurso da força, promovendo a diplomacia, a mediação e a manutenção da paz.

No entanto, a eficácia dessas organizações em prevenir a dominância do discurso da força enfrenta vários desafios. A estrutura do Conselho de Segurança da ONU, por exemplo, com seu sistema de vetos, muitas vezes impede ações rápidas e efetivas em situações de crise5. Além disso, a dependência da UE e da ONU em relação aos Estados-membros para recursos e tropas pode limitar sua capacidade de agir de forma independente e imparcial.

É imperativo que haja uma reforma do sistema internacional que não apenas reconheça a realidade multipolar do mundo atual, mas também fortaleça as instituições internacionais para que possam desempenhar efetivamente seu papel na promoção da paz e da segurança global. Isso requer uma abordagem colaborativa, onde os interesses coletivos prevaleçam sobre os ganhos unilaterais das grandes potências, garantindo assim um futuro mais estável e pacífico para todos.

Este tema foi debatido na terceira Tertúlia desta 5ª Edição das TertúliasEDJ, dedicada à União Europeia. Esta “Edição Europa” prosseguiu com o tema “Novos Horizontes: a Transformação do Sistema Global” e contou com a presença do nosso convidado – o doutor António Vitorino, ex-Ministro da Defesa Nacional e antigo Diretor-geral da Organização Internacional para as Migrações.

A Entrevista

1. Intervir em prol da despolitização constante do quotidiano

Indubitavelmente, ser passivo não é uma opção. Portanto, devemos questionar como podemos intervir. Essa questão se coloca em nível nacional, mas também em nível europeu e global. Como podemos intervir de forma a evitar que os acontecimentos descritos nos conduzam a um aumento da tensão, conflito e, eventualmente, à própria guerra? Nesse sentido, preocupa-me o enfraquecimento do sistema multilateral. Não faz sentido sermos moderados na avaliação.

As Nações Unidas celebraram 75 anos há 2 anos, e é importante reconhecer que, quando falamos das Nações Unidas, associamos principalmente à paz e à segurança. Isso envolve as ações predominantemente realizadas pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas. Embora haja muito mais na ONU além do Conselho de Segurança, para o público em geral, a função primordial das Nações Unidas é garantir a paz e a segurança.

O cenário internacional, desde a agressão russa à Ucrânia até a situação na Faixa de Gaza e no Oriente Médio em geral, demonstra que o Conselho de Segurança está paralisado. Isso é especialmente grave quando um dos membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas, com direito de veto absoluto, viola a carta e age à margem do direito internacional. No caso de Gaza, normalmente, o direito de veto é exercido pelos Estados Unidos.

Portanto, consideremos que o próprio sistema é perverso, uma herança da Segunda Guerra Mundial. No entanto, como devemos calcular, ninguém abdica voluntariamente do poder. Assim, não vale a pena concentrarmos todos os nossos esforços na reforma do Conselho de Segurança. Sejamos pragmáticos: a solução não pode partir apenas desse ponto. Além disso, é importante notar que o maior país do mundo atualmente, a Índia, não é membro permanente do Conselho de Segurança, independentemente de ter ou não direito a veto.

Nesse sentido, devemos considerar as organizações regionais. Isso inclui aquelas com definição geográfica, como a União Europeia. Devemos questionar qual é o papel da União Europeia em questões de segurança e defesa, bem como outras organizações, como a NATO (Aliança Transatlântica) e um conjunto de outros atores emergentes. Precisamos estar particularmente atentos a esses atores emergentes.

Essas potências de média dimensão estão ganhando espaço e afirmando suas próprias agendas, especialmente devido à grande tensão entre os EUA e a China. A Rússia é uma delas, sem dúvida, mas também a Turquia, a Indonésia e alguns países dos BRICS, como a África do Sul e o Brasil. Cada vez mais, essas nações têm uma presença significativa na arena internacional, e devemos levá-las em consideração.

Algumas organizações estão mais focadas em questões econômicas, enquanto outras assumem claramente um papel político e de segurança. Um exemplo disso é o Acordo de Xangai e outras formas de convergência de interesses. Em resumo, nós, europeus, não podemos mais ficar à margem do debate sobre como reformular as condições de segurança e defesa em escala global, e devemos considerar o papel da União Europeia nesse contexto.

Além disso, no cenário atual, é importante mencionar os atores regionais. Um caso relevante são os BRICS, que estão desenvolvendo uma agenda financeira global, como evidenciado pela criação do Banco de Investimento dos BRICS.

2. O Banco de Investimento dos BRICS: uma alternativa sustentável ou um projeto condenado a falhar?

O objetivo por trás da criação do Banco de Desenvolvimento ainda não está totalmente claro para mim. O que quero dizer com isso? Devemos reconhecer, tanto como europeus quanto como ocidentais, que a arquitetura financeira internacional está profundamente desequilibrada. Hoje em dia, a participação dos Estados Unidos e da Europa no Fundo Monetário Internacional ou no Banco Mundial não reflete mais a realidade econômica do mundo em que vivemos.

Portanto, a reforma das instituições financeiras internacionais é parte fundamental de uma iniciativa de consolidação da paz, segurança e fortalecimento das instituições multilaterais. As Nações Unidas completaram 75 anos e, em comemoração, a Assembleia Geral aprovou a Declaração sobre o Futuro. Além disso, convocou a Cimeira do Futuro para setembro deste ano, em 2024. Um dos pontos centrais desta cimeira é justamente a discussão sobre a reforma das instituições financeiras internacionais.

Nesse sentido, seria do interesse dos países do Sul Global, como são diversificados, apresentarem propostas para a reforma do sistema financeiro internacional. Isso inclui não apenas o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, mas também os bancos de desenvolvimento regionais, que desempenham um papel crucial no desenvolvimento das diferentes regiões do mundo. O Secretário-Geral, António Guterres, tem uma proposta que será apresentada, a este respeito, os países de BRICS enfrentam uma decisão política crucial. Ou estão dispostos a participar numa reforma do sistema financeiro internacional, ou optam por um modelo alternativo, que consiste em construir uma dinâmica centrada no Banco de Desenvolvimento. Acredito que a primeira opção seria a mais razoável para todos, no interesse geral.

Além disso, a segunda opção, a do Banco dos BRICS, por enquanto é mais simbólica e exemplificativa do que real. Um banco só existe se tiver força financeira, e o músculo financeiro de um Banco dos BRICS só pode ser fornecido por dois países: China ou Índia. No entanto, a China e a Índia não são exatamente complementares. Pode haver uma disjunção, pois a agenda econômica chinesa não é exatamente a mesma da Índia.

Aqui, acresce que a China tem hoje, no sistema internacional, uma posição particularmente paradoxal. Embora se apresente como um país em desenvolvimento, aspira a ser, se já não é, a segunda maior economia do mundo. A China, por meio de suas iniciativas como o Belt and Road e a Rota da Seda, tem conduzido uma diplomacia de investimento em escala global. Nesse sentido, a China é hoje um país criador na Cimeira do Futuro.

Enquanto o perfil predominante dos países em desenvolvimento é o de serem devedores, a China ocupa uma posição ambígua. Ela é, sem dúvida, um país credor, e temos testemunhado a reestruturação das dívidas de vários países em relação à China.

A China possui uma agenda própria para promover o RMB (Renminbi), sua moeda nacional, como uma moeda internacional e global. Muitos desses empréstimos são denominados em RMB e visam a conversão com as moedas locais dos países beneficiários dos investimentos.

Nesse contexto, o Banco dos BRICS enfrenta dúvidas sobre sua capacidade financeira e a convergência de interesses entre seus membros. Seria sensato que os países do Sul Global buscassem uma voz mais ativa e audível, bem como uma participação efetiva nas instâncias de governança do Sistema Financeiro Internacional, seja no Banco Mundial ou no Fundo Monetário Internacional.

Vale mencionar que, ao observar os quadros dirigentes do Banco Mundial, percebemos que, além dos americanos, os indianos representam a segunda maior nacionalidade. Isso revela que a Índia mantém uma visão dual: está envolvida nos BRICS, mas também investe significativamente politicamente, diplomaticamente e em termos de recursos humanos no Banco Mundial.

Em resumo, não posso oferecer uma conclusão definitiva, mas acredito que setembro será interessante para observar como cada país se posicionará, começando pelo mundo ocidental. É crucial reconhecer que o atual modelo dos Sistemas Financeiros Internacionais já não reflete a realidade económica atual. E que, provavelmente, será mais viável reformular a relação de forças, dentro do Banco Mundial e no próprio Fundo Monetário Internacional, do que alterar a composição do Conselho de Segurança das Nações Unidas.

3. As divergências entre os EUA e a UE contra a promoção de uma maior integração

Vamos analisar a situação. Acredito que o maior desafio para o Sistema Multilateral é diversificar os atores envolvidos. O que quero dizer com isso? Naturalmente, o Sistema Multilateral é um sistema intergovernamental, e portanto, os Estados desempenham um papel fundamental nesse contexto. A representatividade democrática e a composição do poder político em cada Estado influenciam a arquitetura global do Sistema Internacional. No entanto, devemos reconhecer que essa influência varia entre os Estados. Por exemplo, as próximas eleições americanas podem ter um impacto significativo no envolvimento dos Estados Unidos no Sistema Multilateral e, consequentemente, nos equilíbrios de poder em escala global.

A preocupação do secretário-geral é que precisamos de um multilateralismo que seja abrangente, com várias camadas e propósitos diversos. Isso significa que não devemos focar apenas no nível interestadual, pois há outros atores relevantes na cena internacional. Esses atores desempenham um papel crucial em áreas específicas de intervenção. Não podemos negar que a Organização Mundial do Comércio tem perdido relevância no Sistema Internacional, embora o comércio livre continue sendo um elemento fundamental para o funcionamento da economia global.

Outros intervenientes começam a surgir, nomeadamente através de acordos comerciais regionais, com o objetivo de preencher o vazio deixado pela ausência de um acordo livre, geral, global e universal. Por exemplo, é preocupante o impasse nas negociações entre a União Europeia e o Mercosul, que recentemente se uniram. Durante a administração Obama, perdeu-se uma oportunidade histórica de celebrar um tratado comercial com os Estados Unidos, abrangendo a zona transatlântica. Infelizmente, a disfuncionalidade do sistema americano, independentemente do resultado das eleições em novembro, torna inviável esse tipo de acordo. Questões comerciais menores, como a controvérsia em torno da carne de frango com clonidina e da carne geneticamente modificada com hormonas, bloquearam um acordo que teria sido fundamental para impulsionar o crescimento da economia em escala global. Quanto ao papel de outros intervenientes, durante a pandemia, houve uma cooperação crucial na investigação científica sobre o vírus e no desenvolvimento da vacina.

Infelizmente, temos de reconhecer, com humildade, que a desigual distribuição da vacina à escala global, uma vez que ela foi descoberta, e a diferenciação de acesso entre os vários países à vacina, geraram um forte sentimento de ressentimento nos países em desenvolvimento. No passado, já tínhamos enfrentado situações semelhantes. Quando a SIDA se tornou um problema de saúde pública nos anos 80, havia um grave problema de acesso aos retrovirais. Esses medicamentos eram extremamente caros quando lançados no mercado, e muitos países afetados pela SIDA enfrentaram dificuldades para obtê-los. Foi nesse contexto que surgiu a discussão sobre como garantir um sistema que facilitasse o acesso a medicamentos nos países menos desenvolvidos. Naquela época, uma solução foi encontrada, com um acordo global de apoio e a criação de um fundo específico das Nações Unidas para permitir o acesso aos retrovirais no tratamento da SIDA.

Parece que não aprendemos com essa experiência. Agora, com a vacina contra a COVID-19, observamos novamente uma disparidade preocupante. No final de 2022, 80% do Norte Global estava vacinado, enquanto nos países menos desenvolvidos a taxa de vacinação era de apenas 20%. Isso revela a necessidade de envolver outros atores além dos Estados em áreas críticas da atividade humana, como comércio, saúde e mudanças climáticas. É um ponto crucial, pois se a responsabilidade pelo combate às alterações climáticas e à transição energética recair exclusivamente sobre os Estados, podemos enfrentar um impasse.

4. O Estado-Nação e a promoção da paz internacional

Infelizmente, observo que estamos a regressar exatamente ao período da Paz de Westfália. Assim, estamos a seguir o caminho inverso. Essa noção, no entanto, é ilusória, pois, considerando os desafios que todos enfrentamos, a ideia de que os Estados, mesmo os mais poderosos, possam lidar sozinhos com uma agenda global é falaciosa. Na realidade, não há alternativa senão a cooperação, o entendimento e a convergência de vontades. Talvez estejamos confrontados com um desafio ainda mais complexo. No passado, falávamos sobre alianças e países favoráveis a determinadas esferas de influência. Hoje, porém, observamos que os países do Sul Global, os emergentes, não têm grande afinidade com a ideia de alianças estáveis ou consolidadas. Eles não são estritamente pró-Ocidente ou anti-Ocidente; em vez disso, gerem seus interesses, aproveitando ao máximo as tensões entre as grandes potências globais. Alguns desses países podem até convergir com o mundo ocidental em certos aspectos, mas, em outras questões, podem ser mais sensíveis aos argumentos da China ou da Rússia. A Guerra na Ucrânia tem evidenciado isso. Quando discutimos segurança e defesa em escala global, percebemos uma forte ênfase no princípio da integridade territorial no Sul Global. Nesse sentido, a agressão russa à Ucrânia é veementemente condenada, considerando a violação da integridade territorial e os princípios da Carta das Nações Unidas. No entanto, quando a discussão gira em torno de democracias versus autocracias, a perspectiva muda. Esse argumento não encontra respaldo tão claro no Sul Global.

A ideia do Oriente contra o Ocidente, frequentemente avançada, especialmente pelos russos, sugere que o Ocidente está expandindo sua área de influência. Essa ideia ressoa no Sul Global. Por essa razão, a União Europeia desempenha um papel crucial. Ela tem a responsabilidade especial, em seu relacionamento global, de esclarecer o status do combate contra a invasão russa, não apenas como um jogo de zonas de influência, mas também reconhecendo que algumas autocracias em desenvolvimento devem ser envolvidas nesse combate, mesmo que não sejam democracias.

Infelizmente, um relatório da Fundação Bertelsmann demonstrou que, no último ano, cerca de 20% das democracias transitaram para regimes autocráticos. Além disso, é importante estar ciente de que as democracias estão em recessão global, o que aumenta o potencial de conflito. Isso nos leva a considerar o papel da União Europeia e o relacionamento com os Estados Unidos.

Atualmente, existem desentendimentos fundamentais que podem afetar a promoção da paz global. Por exemplo, a agenda europeia de autonomia estratégica enfrenta desafios. Os Estados Unidos exigem que a União Europeia gaste mais em segurança e defesa, mas também querem que esses gastos sejam direcionados aos Estados Unidos. Essa divergência cria tensões no papel de cada um na aliança entre a União Europeia e os Estados Unidos.

É, portanto, crucial que a defesa da Europa esteja integrada no âmbito da NATO. Algumas das dificuldades entre a União Europeia e os Estados Unidos estão relacionadas com esse tema. Vale a pena lembrar que, quando a União da Europa Ocidental se uniu à União Europeia, houve um momento inicial de tensão. Alguns países europeus, como o Reino Unido e até mesmo a Alemanha, temiam que a criação de um pilar europeu de defesa dentro da UE pudesse redundar em duplicação em relação à NATO. Assim, a relação entre a capacidade europeia de segurança e defesa e a NATO era uma questão essencial para eles.

Este cenário foi agravado pelo facto de o Presidente Chirac, na altura presidente francês, ter lançado uma dinâmica com o objetivo de integrar a França na estrutura militar da NATO. No entanto, à última hora, recuou e não integrou completamente o país na estrutura militar da NATO. Outro momento relevante foi o chamado ‘Pacific Pirates’, durante a Administração Americana de Obama. Nesse período, o planeamento estratégico dos EUA passou a privilegiar a situação no Indo-Pacífico, indicando que a questão da defesa europeia perdia relevância nos interesses geoestratégicos americanos. Mais recentemente, devemos reconhecer a função disruptora do Presidente Trump durante os anos de 2016 a 2020. Ele adotou uma concepção transacional, argumentando que os países aliados só merecem ser defendidos se gastarem o suficiente em defesa.

De forma paradoxal, a invasão russa da Ucrânia criou condições para ultrapassar tensões do passado. A NATO retomou sua dinâmica, e recordo-me de que a primeira grande operação militar efetiva da NATO fora da sua área tradicional foi nos anos 1990, na Bósnia e Herzegovina. Neste momento, é evidente que há uma mobilização efetiva da NATO para apoiar a Ucrânia, e essa mobilização é partilhada pelos ex-aliados transatlânticos.

No entanto, não podemos ignorar a realidade. Nos últimos seis meses, pairou uma dúvida sobre o financiamento americano à Ucrânia. Esse período deve servir como um alerta para nós, europeus. Durante esses seis meses, a Ucrânia conseguiu resistir graças ao apoio europeu.

O apoio europeu foi limitado pelo fator financeiro, uma vez que a União Europeia não possui capacidade industrial de defesa suficiente para responder eficazmente. Mesmo os equipamentos europeus reivindicados pelos ucranianos são, na verdade, de origem americana, adquiridos pelos países europeus. Existe um legado do passado que não pode ser ignorado. A Ucrânia gasta 800 mil milhões de dólares por ano em defesa, enquanto todos os países europeus juntos gastam cerca de 230 mil milhões de dólares anualmente. Comparativamente, a China tem um orçamento militar e de defesa de 211 mil milhões de dólares por ano, e a Rússia, atualmente em estado de economia de guerra, gasta cerca de 6% do seu PIB em defesa, o que equivale a aproximadamente 120 ou 111 mil milhões de dólares. É importante destacar que o PIB da Rússia é igual ao da Espanha. Os investimentos transatlânticos em defesa são significativos, mas estão principalmente direcionados para a indústria de defesa americana. Nos próximos dois anos, os Estados Europeus e as empresas europeias têm uma carteira de encomendas de 160 mil milhões de dólares para a indústria militar americana, evidenciando a insignificante capacidade industrial europeia. Portanto, precisamos ser realistas.

As más notícias são que, claramente, temos de recuperar um atraso que se acumulou ao longo dos anos e que, por exemplo, no caso do português, podem estar associadas. No entanto, devemos garantir que um projeto de investimento europeu seja inclusivo, não se limitando apenas a beneficiar empresas de dois ou três países europeus.

5. A migração e as narrativas políticas

É inegável que, nos dias de hoje, as migrações são um dos temas mais controversos na política global e dentro da União Europeia. O Pacto de Asilo e Migração, negociado ao longo de 4 anos, representa apenas uma parte das iniciativas tomadas pela Comissão Europeia. Dos 15 instrumentos legislativos propostos pela Comissão em 2020, apenas 5 fazem parte deste pacto.

Embora seja positivo que exista um pacto e que a União Europeia tenha instrumentos comuns, algumas das soluções adotadas neste acordo representam um retrocesso. Isso se aplica tanto às condições de proteção internacional dos refugiados quanto ao reconhecimento da imunidade dos imigrantes. O pacto concentra-se fortemente em questões de segurança e nas fronteiras, mas não presta a devida atenção à necessidade do mercado de trabalho europeu de receber imigrantes.

Do ponto de vista demográfico, a população da União Europeia representa atualmente 6% da população global, enquanto há 30 anos éramos 8%. Isso indica um declínio populacional na Europa. Além disso, a manipulação do tema da imigração por parte de populistas visa erroneamente atribuir aos imigrantes a responsabilidade por todos os males de nossas sociedades. No entanto, essa narrativa é completamente falsa, e a Europa enfrenta problemas sociais graves que não podem ser simplificados dessa maneira.

As desigualdades, a perda de peso dos rendimentos do trabalho no rendimento nacional e outras questões sérias afetam a coesão das sociedades europeias. No entanto, os imigrantes não são parte dessa equação. A tendência de culpar os “outros”, os diferentes, é simplista e injusta, e não reflete a complexidade dos desafios que enfrentamos.

É uma variável que pode até ajudar a resolver parte do problema. No entanto, não existem soluções milagrosas. O envelhecimento populacional só pode ser combatido através da renovação das gerações. Se não houver essa renovação, continuaremos a envelhecer, em média, porque, felizmente, a esperança média de vida permite que as pessoas vivam até mais tarde.

Os imigrantes não competem pelos empregos mais baixos na escala social, que são aqueles que os nativos já não desejam ocupar. Pelo contrário, os imigrantes contribuem positivamente para o nosso sistema de segurança social. Um exemplo disso é Portugal no ano passado: houve uma contribuição de 1.700 milhões de euros em comparação com 237 milhões de euros em benefícios. Se isso fosse uma empresa, seria altamente lucrativa.

No entanto, devemos lembrar que estamos a falar de pessoas. O mesmo pode ser dito do Reino Unido, onde os imigrantes contribuem com 20 mil milhões de libras anualmente para o sistema de segurança social, enquanto os benefícios representam menos de 1%.

A realidade é uma coisa, mas a retórica dos populistas é outra. Infelizmente, alguns partidos do mainstream, incluindo os de centro-direita, tendem a copiar ou pelo menos aceitar sem contestação os argumentos populistas. Esquecem, lamentavelmente, que aqueles que estão predispostos a aceitar essas retóricas votam sempre no original e nunca na cópia.


5 de julho de 2024

Vitaliy Venislavskyy
EuroDefense Jovem Portugal


A Tertúlia

Aceder à gravação no Spotify: https://open.spotify.com/episode/4JIMtqXLS7QlfVudGijbVD?si=318e792f84d14021

Referências

Archibugi, Daniele. “The Reform of the UN and Cosmopolitan Democracy: A Critical Review.” Journal of Peace Research. Vol. 30, no. 3 (1993): pp. 301-315.

Chatterjeer, Partha. “The Classical Balance of Power Theory.” Journal of Peace Research. vol. 9, no. 1 (1972): pp. 51-61.

Terlica, Sofia. “Reforma do sistema monetário internacional.” Publicação. 2012. Situação atual da economia mundial. Disponível em: https://repositorio.ual.pt/server/api/core/bitstreams/b3ca9a19-6444-4732-9a5f-f341a8472435/content.

União Europeia. Conselho da União Europeia. “Asylum and Migration Reform: EU Member States Representatives Green Light Deal with European Parliament.” Press Release. 8 de fevereiro de 2024. Disponível em: https://www.consilium.europa.eu/pt/press/press-releases/2024/02/08/asylum-and-migration-reform-eu-member-states-representatives-green-light-deal-with-european-parliament/pdf.


NOTA:

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