A Nova Rota da Seda, oficialmente designada por Belt and Road Initiative (BRI) e anunciada por Xi Jinping em 2013, mantém-se até hoje como um dos projetos mais ambiciosos da política externa chinesa e uma referência central na geopolítica contemporânea. Evocando a antiga rede de rotas que, desde a Antiguidade, ligava a China ao Médio Oriente e ao Mediterrâneo, a BRI não se limita a uma operação de memória histórica, mas constitui sobretudo a expressão de uma visão estratégica integrada, que procura projetar a China para o centro da economia mundial e simultaneamente reconfigurar os equilíbrios do poder global (Li, 2022). Estruturando-se em dois grandes eixos, a iniciativa combina o Silk Road Economic Belt, responsável por corredores logísticos e de transporte atravessando a Ásia Central em direção à Europa, com a 21st Century Maritime Silk Road, voltada para o investimento em portos e rotas marítimas que ligam a Ásia ao Sudeste Asiático, à África Oriental e ao Mediterrâneo. A escala é de tal modo vasta que, até 2024, mais de 140 países e organizações internacionais já haviam subscrito memorandos de entendimento ou estabelecido cooperação com a iniciativa, tornando-a num projeto de alcance verdadeiramente global (Ni, 2024).
Os objetivos de Pequim revelam-se múltiplos e articulam-se em diferentes planos de forma estratégica. No plano interno, a prioridade centra-se na dinamização das regiões menos desenvolvidas do interior do país, integrando-as em mercados internacionais e promovendo a modernização de infraestruturas essenciais ao crescimento económico. Por outro lado, no plano externo, a BRI visa não apenas expandir rotas comerciais e reduzir a vulnerabilidade de corredores estratégicos, como o estreito de Malaca, mas também assegurar acesso estável a matérias-primas e consolidar a centralidade da China nas cadeias internacionais de produção e investimento (Zhao, 2021). Paralelamente, a iniciativa funciona como instrumento de soft power, permitindo a Pequim afirmar-se junto de países em desenvolvimento como parceiro de financiamento e de infraestrutura, reforçando assim a sua imagem como alternativa viável ao modelo ocidental.
As linhas estratégicas estão a ser cumprido, uma vez que, em 2024, os contratos de construção associados à BRI ascenderam a 70,7 mil milhões de dólares, enquanto o investimento direto ultrapassou os 51 mil milhões, elevando desde 2013 o compromisso acumulado para mais de 1,17 biliões de dólares (Green Finance & Development Center, 2025). Inicialmente centrada em transportes pesados e energia fóssil, a iniciativa diversificou-se recentemente, direcionando investimentos para energias renováveis, tecnologias digitais e setores de elevada intensidade tecnológica, sinalizando uma segunda fase mais verde e inovadora (Green Finance & Development Center, 2025). Este desenvolvimento evidencia não apenas a capacidade adaptativa da China, mas também a ambição de alinhar a iniciativa com desafios globais emergentes, conjugando crescimento económico e sustentabilidade ambiental.
Contudo, a BRI não pode ser entendida apenas na sua dimensão económica, uma vez que a sua vertente marítima trouxe à tona uma disputa estratégica pelo controlo de infraestruturas portuárias em rotas comerciais vitais, conhecida como “guerra dos portos”. Nos últimos anos, a China investiu massivamente em portos como Colombo, Gwadar, Pireu e Djibuti, adquirindo posições-chave que garantem não apenas vantagens
comerciais, mas também influência geopolítica direta. Por alguns, esta estratégia é interpretada como mecanismo de projeção de poder mundial que ultrapassa os limites da diplomacia económica, suscitando receios quanto a potenciais usos de natureza militar. Em consequência, Estados Unidos, União Europeia e Índia têm procurado contrabalançar estes avanços, receando que Pequim consolide uma presença excessiva sobre corredores marítimos estratégicos (Zhao, 2021; Oliveira, 2020).
A guerra dos portos não se limita à simples competição por terminais de mercadorias, mas traduz-se numa verdadeira redefinição da arquitetura marítima mundial. O controlo de portos estratégicos confere à China a capacidade de condicionar fluxos comerciais e influenciar cadeias logísticas críticas, incluindo energia e telecomunicações, reforçando a sua centralidade em redes cada vez mais interdependentes. Para além disso, a instalação de sistemas de vigilância, cabos submarinos e parques logísticos acrescenta uma dimensão securitária, transformando cada concessão portuária num nó estratégico da rede de influência chinesa, aproximando o económico do estratégico e tornando mais difuso o limite entre ambos.
Os efeitos desta disputa já se fazem sentir em múltiplos contextos regionais. No Oceano Índico, a rivalidade sino-indiana manifesta-se em investimentos concorrentes em portos de países terceiros. No Mediterrâneo, a presença chinesa no Pireu desencadeou debates sobre soberania económica e dependência europeia. Em África, a instalação de uma base em Djibuti, interpretada por alguns como sinal de ambições militares, é lida como prenúncio de uma projeção estratégica mais ampla. Em todos estes casos, a guerra dos portos ilustra a transição em curso: um reposicionamento do poder global que já não se decide apenas em campos militares clássicos, mas também em infraestruturas civis com impacto económico e potencial estratégico.
A multidimensionalidade da BRI evidencia-se quando se observa como investimento económico, poder geopolítico e segurança marítima se cruzam. Por alguns, portos concebidos com fins comerciais podem assumir valor logístico e até militar, enquanto a integração em redes comerciais altera o mapa mundial do comércio e desafia a primazia histórica das potências ocidentais. Deste modo, decorre a perceção de vulnerabilidade em diversos países parceiros e a difusão da narrativa da chamada “armadilha da dívida”, segundo a qual Pequim concede empréstimos acima da capacidade de reembolso, forçando posteriormente a cedência de infraestruturas estratégicas. Embora a literatura recente questione a generalização desta acusação, a perceção de dependência e fragilidade financeira mantém-se (Ni, 2024).
A estes riscos juntam-se outros fatores críticos, como opacidade contratual, práticas de corrupção, impactos ambientais negativos e atenção insuficiente às comunidades locais (Li, 2022). Em contextos de instabilidade política ou fraca capacidade institucional, estas fragilidades tornam-se ainda mais evidentes, levando alguns governos a renegociar compromissos ou a cancelar projetos, sobretudo perante dívidas insustentáveis ou mudanças de prioridades estratégicas (Oliveira, 2020).
Não obstante, a BRI continua a expandir-se, reinventando-se com novas dimensões que reforçam a sua flexibilidade. Neste sentido, hoje podemos considerar a sua segmentação na Rota da Seda Digital, centrada nas telecomunicações, inteligência artificial e redes 5G, na Rota da Seda Verde, com investimentos em energias limpas e a Rota da Seda da Saúde, evidente durante a pandemia de COVID-19(Li, 2022).
O futuro apresenta cenários complexos, dado que a transição energética mundial sugere que a BRI tenderá a privilegiar projetos em energias renováveis, redes inteligentes e transportes sustentáveis, procurando consolidar a liderança chinesa na economia verde internacional. No plano tecnológico, cabos submarinos, plataformas digitais e inteligência artificial poderão reforçar a influência de Pequim sobre a governança da internet e os padrões internacionais de inovação. Simultaneamente, a competição estratégica com os Estados Unidos deverá intensificar-se em regiões como o Sudeste Asiático, a África Oriental e o Mediterrâneo, onde os interesses das duas potências se sobrepõem. Assim, é plausível que a guerra dos portos evolua para uma competição ainda mais complexa, envolvendo não apenas Estados, mas também grandes grupos privados, alianças regionais e instituições multilaterais, num contexto em que corredores físicos e digitais se entrelaçam e o controlo de portos se articula com cabos de telecomunicações e centros de dados, dando origem a uma nova geopolítica das infraestruturas.
Em síntese, a Nova Rota da Seda não deve ser entendida apenas como um programa de obras públicas ou como uma estratégia de financiamento internacional, mas antes como a tradução de uma visão ampla da China para o século XXI, assente na ambição de se afirmar como eixo central de uma nova ordem económica mundial. Ao mesmo tempo que cria oportunidades de desenvolvimento infraestrutural e de integração transnacional, também desperta tensões e receios quanto às suas implicações geopolíticas. A guerra dos portos evidencia, de forma paradigmática, como o investimento em infraestruturas pode ultrapassar o domínio estritamente económico e inscrever-se diretamente na lógica da disputa pelo poder global, pelo que o futuro desta iniciativa dependerá, em larga medida, da sua capacidade de conciliar interesses divergentes, promovendo crescimento sem gerar dependências excessivas, expandindo influência sem alimentar receios hegemónicos e avançando em matéria tecnológica e ambiental sem comprometer a credibilidade junto dos parceiros internacionais.
Lisboa, 18 de setembro de 2025
Maria Beatriz Loureiro
EuroDefense-Jovem Portugal
Referências Bibliográficas
Green Finance & Development Center. (2025). China Belt and Road Initiative (BRI) Investment Report 2024. Fudan University. https://greenfdc.org/china-belt-and-road initiative-bri-investment-report-2024/
Li, J. (2022). The Belt and Road Initiative and international business policy. Asia Pacific Business Review, 28(3), 135–151. https://link.springer.com/article/10.1057/s42214-022- 00136-x
Ni, J. (2024). A decade of the Belt and Road Initiative and its global impact. China Economic Journal, https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/17538963.2024.2345532
Oliveira, G. de L. T. (2020). China’s Belt and Road Initiative: Views from the ground. Political Geography. https://doi.org/10.1016/j.polgeo.2020.102225
Zhao, M. (2021). The Belt and Road Initiative and China–US strategic competition. International Politics,, https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC8576310/