Transitámos de uma fase inicial da corrida espacial, marcada pela bipolaridade e ideologia, para uma fase multipolar, dinâmica e integrada noutros domínios, onde atores estatais e privados são detentores de tecnologia altamente sofisticada para diferentes fins. O espaço tornou-se simultaneamente domínio operacional congestionado e arena de coopetição tecnológica.
Da Corrida Bipolar à Nova Corrida Espacial
No pós-Guerra Fria, a competição espacial abrandou e entrou-se um período de cooperação entre estados. Dificilmente encontramos exemplo mais claro de cooperação desta altura que a International Space Station (ISS).
O primeiro módulo a subir chamava-se Zarya (significa “Aurora” em russo). De fabrico russo, com financiamento americano (pela NASA), subiu a 20 de novembro de 1998, a bordo de um Proton-K, um foguetão médio russo.
Logo de seguida, acoplou-se ao Zarya o módulo americano Unity, lançado pelo vaivém espacial americano Endeavour, estabelecendo oficialmente a ISS como parceria internacional espacial.
No final da década de 2010, reemerge a competição e altera-se a dinâmica do poder espacial de forma permanente. De forma sucinta, devem-se notar os seguintes marcos históricos:
Após os EUA encerrarem o programa Space Shuttle em 2011, tornaram-se dependentes da Rússia para o transporte de astronautas à ISS, dando à Rússia uma posição de vantagem estratégica temporária.
Entretanto a China lançou o Programa Chang’e para exploração lunar e o programa Tiangong para a montagem da estação espacial chinesa. Nesta década, a China foca-se mais no desenvolvimento dos módulos experimentais para a construção da sua estação espacial.
A chegada do Presidente Donald Trump à Casa Branca, em 2017, marcou também o lançamento do programa Artemis, símbolo da renovada ambição americana no espaço e regresso à lógica competitiva da corrida espacial, com o objetivo de regressar à Lua até 2025.
2019 é um ano especialmente marcante neste período transitório da evolução da corrida espacial. A missão chinesa Chang’e 4 aterrou a 3 de janeiro de 2019 na cratera Von Kármán, tornando-se a primeira a pousar e operar na face oculta da Lua e a primeira a usar um satélite de retransmissão para comunicar com a Terra. Em dezembro desse ano, a NATO anuncia a decisão política de definir o espaço exterior como domínio operacional e os Estados Unidos criam a US Space Force, o sexto ramo das suas Forças Armadas.
Paralelamente ao comportamento dos atores estatais durante a década de 2010, a SpaceX (empresa privada) desenvolveu o foguetão Falcon 9, o primeiro veículo orbital parcialmente reutilizável. Esta inovação reduziu drasticamente os custos de lançamento e contribuiu para colocar os Estados Unidos novamente na linha da frente da exploração espacial.
A SpaceX não se ficou pelo reabastecimento de bens à ISS. Em 2020 transportou pela primeira vez dois astronautas norte-americanos até à ISS. O êxito desta operação significou que os Estados Unidos regressam à capacidade autónoma de realizar voos tripulados para o espaço e levou a NASA a certificar oficialmente a empresa para missões regulares, tornando a SpaceX a primeira companhia privada da história a receber esta autorização.
Atores Privados vs. Poder Nacional
Entrámos assim na fase 2.0 da corrida, marcada por uma mistura de atores e interesses e uma consequente reconfiguração da distribuição de poder no domínio espacial. Nos regimes autoritários, como a China ou a Rússia, o Estado exerce um controlo sistemático mais direto sobre o setor tecnológico, assegurando que a atuação e inovação das empresas privadas é realizada de acordo com objetivos estratégicos nacionais.
Nas democracias liberais, pelo contrário, a autonomia cedida às empresas privadas incentiva a inovação e acelera o progresso tecnológico, mas pode também gerar novas dependências estruturais ou possíveis desalinhamentos políticos.
O caso da Starlink exemplifica bem este paradoxo. Quando a SpaceX, através da sua constelação de satélites Starlink, forneceu capacidades críticas de comunicações num teatro de guerra ativo, teve impacto direto as operações militares, civis e diplomáticas, revelando o papel crescente de atores privados em contextos de segurança internacional.
Tornou também clara a sensibilidade às decisões de atores privados, com capacidades cruciais no domínio do espaço, atores estes que podem (até certo ponto) agir de forma autónoma e volátil. A decisão de Elon Musk de restringir (o que depois acabou por ser de forma temporária) o serviço em determinadas zonas de combate, refletiu como um único ator privado podia, por vontade própria, condicionar o curso operacional de um conflito armado, uma capacidade que, em princípio, deveria permanecer sob controlo exclusivo dos Estados. Quanto maior a dependência de sistemas privados, maior a vulnerabilidade do Estado perante decisões empresariais, que correm o risco de estarem desalinhadas dos interesses nacionais.
De qualquer modo, a contribuição da Starlink foi rapidamente reconhecida pelos parceiros ocidentais como essencial à resiliência ucraniana, tornando a SpaceX num ator de facto na arquitetura de segurança transatlântica.
Face a esta situação e tendo Elon Musk afirmado que o objetivo do uso da Starlink não era para fins militares ofensivos, a SpaceX anunciou em dezembro de 2022 o programa Starshield, concebido para adaptar as suas tecnologias de comunicações e observação por satélite para fins governamentais e de defesa. Em 2023, o Departamento de Defesa dos Estados Unidos formalizou contratos com a empresa e passou a integrar o uso destes sistemas da Starshield no âmbito da Joint Commercial Operations Cell (JCO), sob tutela do U.S. Space Command. Esta institucionalização demonstra a tendência de “securitização do setor privado”, na qual capacidades originalmente comerciais são progressivamente incorporadas nas estruturas e lógicas operacionais da defesa nacional.
O Espaço como Novo Pilar da Defesa Nacional
O espaço exterior tornou-se mais integrado, como pilar central na segurança e defesa nacional. Mais do que um domínio de exploração científica, é uma infraestrutura de comando global, dando suporte às operações nos outros quatro domínios e tem uma capacidade multiplicadora no impacto e efeito das operações.
As constelações de satélites asseguram comunicações seguras, navegação, meteorologia, observação e vigilância, essenciais para o funcionamento das sociedades e a condução das operações militares modernas.
O controlo das órbitas e das redes de comunicações espaciais no século XXI equivale ao controlo das rotas marítimas na era dos Descobrimentos (séc. XV a XVII). Tal como Portugal consolidou poder e influência ao estabelecer-se primeiro em rotas oceânicas vitais, também hoje, quem se estabelece primeiro em órbita, conquista vantagem estrutural.
Empresas tecnológicas privadas que detêm constelações de satélites e/ou de sistemas de comunicação globais ocupam posições nestas rotas e podem tornar-se atores geopolíticos de facto ao serem capazes de projetar influência diplomática e operacional noutros conflitos. O caso da Starlink exemplifica particularmente bem como a infraestrutura privada se pode converter em ativo estratégico e como o capital e a inovação tecnológica passam a integrar o próprio arsenal da segurança nacional e internacional.
Conclusão
Com esta nova fase de corrida espacial, o conceito de segurança nacional adquiriu uma dimensão ampliada. Tal como nos outros domínios de conflito e cooperação, o que acontece no espaço representa riscos sérios para a segurança global, mas também oportunidades inéditas de colaboração internacional.
Do mesmo modo que a NATO definiu o espaço como domínio operacional, a European Defence Agency e a EU Space Strategy sublinham a necessidade de integrar as dimensões espacial e tecnológica na planificação da defesa europeia.
Neste aspeto, a Força Aérea Portuguesa (FAP) tem desempenhado um papel pioneiro de integração da defesa nacional no quadro europeu. Participando em projetos como a Constelação do Atlântico e através da criação do Centro de Operações Aeroespaciais em 2024, a FAP reflete o compromisso de Portugal com uma visão para o espaço que é simultaneamente cooperativa, estratégica e interligada. A Constelação do Atlântico foi elogiada pela Presidente da Comissão Europeia Ursula von Der Leyen como exemplo de integração europeia e inovação transatlântica, considerando o contributo português para uma defesa mais autónoma, resiliente e tecnologicamente avançada.
O espaço tornou-se eixo fundamental da projeção de poder e uma nova fronteira de soberania estatal. Integrar a dimensão espacial e tecnológica nas políticas de defesa não é apenas uma escolha estratégica, é uma condição de sobrevivência e autonomia. Assim, a segurança e defesa nacional do século XXI deve incluir o espaço como parte do seu núcleo essencial, reconhecendo que a capacidade de participar e influenciar este domínio confere vantagem decisiva na definição das dinâmicas de segurança, prosperidade económica e circulação de informação.
Lisboa, 05 de novembro de 2025
Teresa Duarte Fernandes
EuroDefense-Jovem Portugal
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