Avançar para o conteúdo

Poucos temas despertam tanta emoção em Portugal como a nossa relação com o mar. Somos um país da frente marítima da Europa e foi através dos oceanos que edificamos um império, tendo as navegações dos portugueses sido determinantes para a afirmação do continente europeu no mundo. Fomos pioneiros da globalização, centrada no comércio de especiarias do extremo oriente, escravos do continente africano e açúcar do Brasil. A superioridade tecnológica na construção naval e o controlo dos estreitos de Malaca, Ormuz e Bab-el-Mandeb garantiram-nos o domínio do oceano Índico durante um século e definimos as bases da estratégia marítima. Fomos precursores e defensores do mare clausum e do direito de passagem inofensiva de embarcações num mar que dividimos com a Espanha em partes iguais no Tratado de Tordesilhas, legitimados pela autoridade internacional da época – o Vaticano.

Se o ambiente marítimo continua determinante no nosso imaginário, moldando a nossa identidade como povo e sendo um elemento consensual na nossa perspetiva para o futuro, representa igualmente um papel importante no presente, em domínios que vão da economia ao ambiente e à segurança nacional. É no prisma da segurança nacional que iremos reter a nossa atenção, relativamente aos desafios que se colocam no mar e ao papel reservado aos diferentes atores, atenta a natureza das ameaças e riscos colocados pelo ambiente de segurança deste primeiro quartel do século XXI. Portugal e a União Europeia confrontam-se com um ambiente de segurança complexo. Das ameaças à segurança interna identificadas na Agenda Europeia sobre Segurança, respetivamente, o terrorismo, o crime organizado transnacional e o cibercrime, as duas primeiras tiram partido do ambiente marítimo como meio para atingirem os seus desígnios.

O tráfico de seres humanos, com os dramas que lhe estão associados, que as redes de imigração ilegal exploram e os grupos de terrorismo ligados ao Daesh procuraram tirar partido para levarem a cabo a sua estratégia de confrontação global. As redes de tráfico de estupefacientes, com origens no continente sul-americano e na Ásia Central, ou que operam a partir de pontos de apoio no continente africano, bem como as redes de produtos contrafeitos e outras formas de tráfico que tiram partido da liberdade de circulação permitida pela economia globalizada, todos, em maior ou menor grau, empregam rotas marítimas para acesso à União Europeia.

Portugal, pela sua posição geográfica, apresenta condições para se constituir num hub para este tipo de tráfico. O volume de droga apreendida, quer ao largo do território nacional, quer nas águas territoriais como na própria costa, em particular no Sul do território nacional, são disso prova evidente. Por outro lado, os recentes episódios de embarcações que têm dado à costa algarvia com migrantes a bordo, indiciam o embrião de uma rota dirigida para o território português que, a par da atual situação na vizinha Espanha, nomeadamente no arquipélago das Canárias, é uma questão a ponderar.

São diversificadas e preocupantes as questões de segurança que envolvem a fronteira marítima do nosso país, com a particularidade de ser também fronteira externa da União Europeia. Um dos efeitos emergentes da crise migratória de 2015 e dos graves incidentes de segurança que ocorreram por toda a UE durante esse período, foi a decisão de transformar a Agência Europeia Frontex numa Guarda Europeia de Fronteiras e Costeira. A prioridade que lhe foi conferida está bem espalhada no respetivo orçamento, que em 2005 foi de €19M, em 2015 de €141M, em 2016 de €254M e sempre em crescendo até ao corrente ano de 2020, com um orçamento de €460M.

Vai ser dotada de um corpo permanente que contará com cerca de 10.000 operacionais em 2027. Será composto por elementos da Frontex e por pessoal destacado pelos Estados-Membros por períodos de curta e de longa duração, para além de uma reserva de reação rápida. Integra também o Sistema Europeu de Vigilância das Fronteiras (EUROSUR), que assegura uma perceção integrada da situação na fronteira externa da UE.

Em Portugal o controlo de fronteiras é da responsabilidade do Ministério da Administração Interna, contando para o efeito com um serviço especializado para controlo de pessoas, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), dirigido para a gestão dos pontos de entrada em território nacional e das bases de dados relativas a estrangeiros. Outro para a vigilância de fronteiras, a Guarda Nacional Republicana (GNR), incumbida de alojar e operar o Centro Nacional de Coordenação do EUROSUR, bem como de gerir e operar o Sistema Integrado de Vigilância, Comando e Controlo (SIVICC).

A Unidade de Controlo Costeiro (UCC) da GNR assegura missões no mar desde os tempos em que era Serviço Marítimo da Guarda Fiscal. Esta polícia foi criada em 1886 na sequência de uma reforma dos serviços alfandegários, tendo sido posicionada ao longo da costa e da fronteira com Espanha. Foi ainda criado um corpo de investigação fiscal dedicado às tarefas de investigação da fraude alfandegária e fiscal. A UCC e a Unidade de Ação Fiscal consubstanciam assim a herança destas capacidades policiais, integradas na GNR após a fusão com a Guarda Fiscal. Já então a GF dispunha de embarcações com capacidade oceânica, para o cumprimento da sua missão.

Não constitui assim facto inédito a UCC ser equipada com um Coastal Patrol Vessel e três Coastal Patrol Boats, o primeiro (o Bojador) a realizar presentemente provas de mar. Irão reforçar a capacidade existente das 12 lanças de vigilância e interceção, 8 lanchas de fiscalização de águas interiores e todo o sistema SIVICC, com os seus 20 radares fixos e oito móveis posicionados ao longo da costa e interoperáveis com um sistema idêntico do país vizinho.

O Bojador da GNR vai integrar-se, através do SIVICC e do EUROSUR, num sistema de sistemas da UE, algo não permitido a um navio de guerra com um elemento da PJ ou do SEF embarcado.

Acresce que este facto não é motivo de acrimónia entre a GNR e a Marinha, mais empenhadas em articular esforços do que em fomentar guerrilhas institucionais.

O ruído que se fez sentir sobre este assunto, tem origem em putativos opinion makers e argumentos próprios da realidade securitária da guerra fria, numa visão do sistema de segurança nacional a preto e branco e de soma zero. Ignoram, ou omitem, que a aquisição destes meios só é possível através do Fundo de Segurança Interna, para o qual as forças armadas não são elegíveis.

Existem presentemente outras janelas de oportunidade para financiamento de capacidades militares no quadro da UE, através do Fundo Europeu de Defesa e da Cooperação Estruturada Permanente, entre outros, dos quais as Forças Armadas em geral e a Marinha em particular, saberão tirar partido com idêntico propósito. Portugal precisa de uma Marinha capaz de dar resposta às inúmeras missões de soberania que lhe estão cometidas.

Aqueles que bradam contra a capacidade marítima da GNR, sabem também que uma vulnerabilidade neste domínio é fator de alarme social e de quebra de prestígio de Portugal junto dos seus pares da UE, para além de uma porta aberta para soluções onde poderemos deixar de ser os sujeitos principais. Como lenitivo, parece pertinente lembrar a estrofe de Fernando Pessoa, do poema mar Português da Mensagem: “Quem quer passar além do Bojador, tem que passar além da dor”.


25 de novembro de 2020

Agostinho Costa
Vice-Presidente da Direção

O General Agostinho Costa foi 2º Comandante e Comandante Operacional da GNR

Artigo de Opinião publicado no jornal Diário de Notícias, de 24 de novembro de 2020:

https://www.dn.pt/opiniao/opiniao-dn/convidados/novas-lanchas-da-gnr-polemica-em-tons-de-guerra-fria-13070425.html

Partilhar conteúdo:
LinkedIn
Share

Formulário Contato