Os últimos dias têm sido marcados pelas constantes imagens da crise migratória que se desenrola na fronteira entre a Polónia e a Bielorrússia. Este ‘ataque híbrido’, como o têm apelidado as Instituições Europeias, surge no contexto de um conturbado período que vivem as relações entre a Bielorrússia e a União Europeia, a deteriorar-se desde as últimas eleições presidenciais no país, em agosto de 2020.
Para melhor compreender as relações entre o país e a União Europeia, é necessário recuar na história. A Bielorrússia foi um dos países da URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas). Em 1990, iniciou o processo de independência, que se concretizou em 1991, o mesmo ano em que cai a URSS. Não obstante, o país usufrui de grande proximidade à Federação Russa, com quem mantém laços políticos e económicos mais estreitos do que qualquer uma das ex-repúblicas soviéticas. Entre 1996 e 1999, os dois países assinaram um tratado sobre uma união de dois Estados, prevendo uma maior integração política e económica. Em termos geográficos, a Bielorrússia faz fronteira com a Polónia, Letónia e Lituânia, membros da União Europeia (desde 2004) e do Espaço Schengen (desde 2007), bem como com a Ucrânia e a Federação Russa.
O que está, então, na origem da atual situação na fronteira entre a Polónia e a Bielorrússia? As relações entre a União Europeia e a Bielorrússia são, desde o seu início, algo conturbadas, sendo que as principais incompatibilidades se prendem com as constantes violações de direitos humanos, civis, e do Estado de Direito que o Governo tem levado a cabo. Logo em 2004, foram impostas as primeiras medidas restritivas pela União, tendo como base o desaparecimento de quatro opositores do Governo nos anos de 1999 e 2000 e a falta de prontidão das autoridades bielorrussas para que o mesmo fosse investigado de forma completa e transparente. Os anos seguintes são marcados positivamente pela participação ativa da Bielorrússia na “Parceria Oriental”, criada em 2009, com o propósito de apoiar esforços no contexto das reformas políticas, sociais e económicas em ex-repúblicas soviéticas; o importante papel que a Bielorrússia desempenhou como anfitriã das discussões mediadas pela UE sobre a crise na Ucrânia; e, também, a libertação de todos os presos políticos ainda detidos, em 2015, bem como o sucesso das eleições presidenciais, um ponto de viragem que contribuiu para o levantamento da grande parte das medidas restritivas em Fevereiro de 2016 e consequente ativação de um pacote de medidas económicas e relacionadas com a cooperação, verificando-se um ambiente propício a uma nova fase das relações.
No entanto, apesar dos esforços para o diálogo, principal responsabilidade do grupo de coordenação UE-Bielorrússia (criado em 2016), o respeito pelas liberdades fundamentais, direitos humanos e civis está ainda muito aquém. Por exemplo, apesar da adoção de um plano de ação em matéria de direitos humanos para o período de 2016-2019, a Bielorrússia não tem vindo a cumprir o seu compromisso. Em matéria de direitos humanos é o único país na Europa que ainda aplica a pena de morte. No que toca às liberdades fundamentais e direitos civis, por exemplo, o país continua a reprimir violentamente manifestações pacíficas da oposição, como se verificou em fevereiro e março de 2017. As eleições legislativas de 2019 ficaram marcadas pela privação da oposição de qualquer representação parlamentar, devido às más práticas adotadas. É em 2020 que se dá um verdadeiro golpe nas relações entre a União Europeia e a Bielorrúsia.
A 9 de agosto de 2020 tiveram lugar as eleições presidenciais. De acordo com Josep Borrell, Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros e Política de Segurança: “durante a campanha eleitoral, o povo bielorrusso demonstrou uma mobilização política sem precedentes a favor de eleições livres e democráticas. Até agora, a mobilização pacífica da sociedade foi acompanhada de restrições inaceitáveis às liberdades de imprensa e de reunião, bem como de detenções de manifestantes pacíficos, observadores nacionais, jornalistas e ativistas (…).” O resultado das eleições foi a vitória de Alexander Lukashenko, no poder desde 1994, o que originou uma enorme onda de protestos e revoltas no país. A União Europeia, bem como a restante comunidade internacional, considera que o ato eleitoral não foi conduzido de forma livre ou justa, pelo que não reconhece os resultados das eleições e tem, desde então, vindo a impor progressivamente um conjunto de medidas restritivas contra várias pessoas e entidades, sobretudo devido aos atos de repressão e intimidação contra manifestantes pacíficos, membros da oposição e jornalistas na sequência das eleições. Em novembro, o Presidente Bielorrusso e mais 15 pessoas foram incluídas na lista. A oposição democrática, incluindo a líder da oposição Sviatlana Tsikhanouskaya, recebeu o Prémio Sakharov para a Liberdade de Pensamento de 2020, atribuído pelo Parlamento Europeu.
A 23 de maio de 2021, num ato que colocou em xeque a segurança aérea do espaço europeu, verificou-se a aterragem forçada de um voo da Ryanair em Minsk, na Bielorrússia, bem como a detenção do jornalista Raman Pratasevich e de Sofia Sapega pelas autoridades do país, o que resultou na adoção de um quarto pacote de sanções em junho. Neste momento, 166 pessoas e 15 entidades estão agora visadas por estas medidas, que se traduzem no congelamento de bens, na proibição de viajar nos territórios da UE, proibição de sobrevoo do espaço aéreo e de acesso aos aeroportos da UE por transportadoras aéreas bielorrussas de todos os tipos e proibição dos cidadãos e as empresas da UE de disponibilizar fundos às pessoas e entidades incluídas nesta lista.
Na sequência de todas estas questões e medidas adotadas contra o país, a Bielorrússia começou, em junho de 2021, a organizar voos e viagens internas para facilitar o trânsito de migrantes para a UE, primeiro para a Lituânia e consequentemente para a Letónia e a Polónia, tendo a maioria dos migrantes nacionalidade iraquiana, afegã e síria. No caso da Lituânia, o número de migrantes irregulares que chegam ao país é, segundo o Conselho Europeu, cinquenta vezes superior ao que se verificou em 2020. Este aumento sente-se, igualmente, na Letónia e Polónia. As Instituições Europeias falam numa ‘instrumentalização de migrantes para fins políticos’, condenando veemente o facto de a Bielorrússia se aproveitar da pressão migratória e ter um papel ativo na passagem ilegal e clandestina das fronteiras para dentro do espaço da União. A UE tem vindo a concertar esforços para atenuar a situação, destacando várias das suas agências como a Agência Europeia da Guarda de Fronteiras e Costeira (Frontex), o Gabinete Europeu de Apoio em matéria de Asilo (EASO) e a Europol, bem como ativando o Mecanismo de Proteção Civil da União Europeia. Para além disso, o diálogo com os países de origem e de trânsito conduziu, até à data, a que o Iraque suspendesse temporariamente os voos para Minsk e facilitasse o regresso dos seus cidadãos a partir da Lituânia.
Nos últimos dias, a fronteira entre a Polónia e a Bielorrússia, porta de entrada na União Europeia, tem sido palco de uma verdadeira crise. Os migrantes, em condições desumanas, agravadas pelas temperaturas negativas, juntam-se em largos grupos, o que levou as autoridades polacas a incrementar a sua presença no local. Na sessão plenária de 10 e 11 de novembro, os deputados ao Parlamento Europeu apelaram às autoridades polacas para que conduzam a situação de forma menos agressiva e aceitem a assistência das agências da UE no tratamento da situação humanitária, lamentando que este apoio tenha sido recusado até agora. O Senado Polaco aprovou, esta semana, o inicio da construção de uma barreira física na fronteira com a Bielorrússia, algo que a Lituânia já está a implementar. Esta medida foi inicialmente recusada e condenada pela Comissão Europeia, contudo, Charles Michel, presidente do Conselho Europeu, afirmou numa visita oficial a Varsóvia que “estamos perante um ataque híbrido brutal às fronteiras da União Europeia. Abrimos o debate acerca do financiamento de uma estrutura física na fronteira e a questão deve ser resolvida rapidamente, porque as fronteiras polacas e lituanas são fronteiras europeias.” Também no Parlamento Europeu a questão do muro é motivo de discórdia.
A situação parece deteriorar-se ainda mais agora que a Rússia, forte aliada da Bielorrússia, está a realizar uma série de exercícios conjuntos com as forças armadas bielorrussas na zona da fronteira com a Polónia. O governo de Lukashenko afirma que os exercícios têm o propósito de testar a capacidade de resposta perante o agudizar da situação. Josep Borrell, em representação da União Europeia, afasta para já o cenário de recurso a meios militares.
No dia 15 de novembro, após ter já suspenso parcialmente a aplicação do Acordo com a Bielorrússia sobre a facilitação da emissão de vistos, a União Europeia alargou o âmbito das sanções já em curso: podem agora visar pessoas e entidades que organizem ou contribuam para atividades que facilitem a passagem ilegal das fronteiras externas da UE. Esta decisão surge após o Conselho Europeu de 21 e 22 de outubro, onde os líderes europeus declararam que não aceitariam qualquer tentativa, por parte de países terceiros, de instrumentalizar os migrantes para fins políticos, que condenavam todos os ataques híbridos nas fronteiras da UE e que reagiriam em conformidade. Josep Borrell afirmou que “Este comportamento traduz o cinismo do regime bielorrusso que, ao fomentar a crise nas fronteiras externas da UE, está a tentar desviar a atenção da situação no país, onde a repressão brutal e as violações dos direitos humanos continuam e até se agravam. A UE condena firmemente o regime de Lukashenko por colocar deliberadamente em perigo a vida e o bem-estar das pessoas. Além de violar o direito internacional, desrespeita os direitos humanos fundamentais com que a Bielorrússia se comprometeu.”
A situação exige, neste momento, a reação rápida da União Europeia, perante um cenário em que a vida de seres humanos é colocada em causa e instrumentalizada por um Estado autoritário, onde a Rússia parece ter um papel importante. Sendo as questões migratórias um assunto que divide, há muitos anos, os Estados-Membros da União Europeia e as próprias instituições, como a construção (ou não) de um possível muro indica, a resposta rápida é apenas uma ideia distante. Nos entretantos, o frio da fronteira entre a Polónia e a Bielorrússia será a casa de centenas de migrantes, peões num jogo que não parece terminar.
17 de novembro de 2021
Inês Barbosa Caseiro
Vice-Presidente da EuroDefense Jovem-Portugal
Documentos Consultados
https://www.belarus.by/en/about-belarus/history
https://www.cia.gov/the-world-factbook/countries/belarus/
https://www.consilium.europa.eu/pt/policies/eastern-partnership/belarus/
https://eeas.europa.eu/delegations/belarus/15975/belarus-and-eu_en
https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/HTML/?uri=CELEX:32004E0661&from=NL
https://www.consilium.europa.eu/pt/press/press-releases/2016/02/15/fac-belarus-conclusions/
https://www.consilium.europa.eu/pt/policies/sanctions/restrictive-measures-against-belarus/