Entrevista ao Major-general Agostinho Costa
Especialista em operações militares reconhece que Ucrânia está a vencer batalha da comunicação, mas que a vitória militar é improvável: “Não se ganham guerras sem superioridade aérea.”
A Rússia abriu com bombardeamentos o sexto dia da invasão na Ucrânia. Simultaneamente, um comboio de tropas e veículos – que chegou a ter 64 quilómetros de comprimento – aponta para Kiev, movimento que, ao que tudo indica, visa cercar a capital ucraniana e derrubar o Governo. O major-general Agostinho Costa faz, em entrevista ao PÚBLICO, o balanço destes primeiros dias de conflito e das estratégias das forças russas e das ucranianas.
Como avalia a resistência ucraniana às tropas russas?
Neste momento só existe o exército, tanto a marinha como a força aérea foram neutralizadas. Apenas existe a capacidade para combater em terra. Surpreendentemente, os russos neutralizaram no primeiro dia as pistas e até acaba por ser paradoxal quando se fala em ceder aviões quando não há capacidade para os utilizar. Ou, então, quando se fala em no fly zones. Neste momento, a supremacia aérea [na Ucrânia] é russa.
Mas estava à espera que a Rússia encontrasse dificuldade em conquistar certas cidades, dada a diferença de números e meios dos dois exércitos?
Acaba por ser expectável, as condições actuais não são as mesmas de quando se deu a ocupação da Crimeia em 2014. Os ucranianos tiveram oito anos para se preparem, viraram-se para o Ocidente. O exército ucraniano não é tão pequeno quanto isso, existem algumas centenas de milhares de militares, há dez anos era o quarto maior exportador de armamento do mundo – neste momento é o 12.º, salvo erro. Não deixa de ser um bocado irónico alguns países que não produzem armamento estarem-se a pôr em bicos de pé quando a Ucrânia, em termos de armamento, é um país com tecnologia [avançada].
O que falhou então no plano russo?
Ainda é cedo, muito sinceramente, para considerarmos que algo falhou. A operação ainda está a decorrer. Estão a encontrar resistência, é normal, mas há muito pouca informação – como é óbvio. Nenhuma das partes mostra o que faz, existe muita “poeira e nevoeiro”. Neste momento, vemos uma operação com vários eixos de aproximação direccionados para objectivos distintos, há ainda forças de segundo escalão na Rússia de reserva. Temos poucos ataques de artilharia e não vemos a aviação russa a atacar fortemente. Denoto, de ambos as partes, o cuidado em não atingir alvos civis.
Mas isso já aconteceu. Esta quinta-feira vimos bombardeamentos que mataram civis.
Sim, é o que os norte-americanos chamam de baixas colaterais. O objectivo era um edifício do governo regional [de Kharkiv], onde está – da perspectiva russa – a “cabeça do polvo”. Houve talvez um excesso de confiança da parte russa ou um esperar que todo o sistema ucraniano se desmoronasse, visto que a campanha aérea foi muito restrita e fundamental dirigida para os sistemas de defesa antiaéreos e contra os aeródromos.
Mas há alguma lógica militar no bombardeamento de civis?
Depende do tipo de alvo civil. Repare que há dois dias foram bombardeados os gasodutos, isso faz sentido do ponto de vista militar. Serve para impedir o inimigo de ter combustível. O caso do prédio de habitação atingido em Kiev decorreu de uma falha de sistema ou erro operacional. Neste tipo de conflitos há sempre estas ocorrências, mas temos de pensar que usar munições para destruir prédios é desperdiçar munições. A não ser que cheguemos a uma situação extrema, com guerra de ruas, em que a opção seja arrasar o centro da cidade. Não me parece que seja isto que os russos querem.
Mas existiria essa possibilidade?
Temos de perceber que estamos a lidar com uma operação convencional e gente que sabe o que está a fazer. Os russos tiveram Estalinegrado, onde o exército alemão se rendeu e a cidade ficou completamente arrasada. Se fizessem isso, os russos pagariam uma factura incomportável. Kiev é um objectivo político e, neste momento, querem fazer um cerco à cidade. Não creio que entrem em batalha de rua. A guerra tem dois objectivos: primeiro é o de destruir o inimigo e o outro é destruir a sua vontade de combater. Estamos no campo da campanha mediática e é um conflito que será decidido no campo da opinião pública. As operações de combate seguem a lógica da campanha informacional.
Nesse campo, a Ucrânia está a golear a Rússia?
Com certeza. Neste momento, na linha de operação da campanha informacional, a Ucrânia está indiscutivelmente em vantagem. Já nas linhas da operação de combate não me parece que assim o seja: não se ganham guerras sem superioridade aérea.
Nas redes sociais, há vídeos a mostrar a resistência ucraniana a afastar militares russos e tanques russos sem gasolina. Sente que isso faz parte da propaganda ucraniana?
Sim, não tenho dúvidas. Há coisas que atingem um patamar ridículo. Vi, no outro dia, uma jornalista a dizer que os russos estavam a trocar gasolina por comida. É bom ver todas as partes, mas claro que isto faz parte de uma estratégia comunicacional. A Russia Today [faz a mesma coisa]. Espero que não a desliguem porque não somos idiotas, conseguimos perfeitamente perceber [quando é propaganda]. Pelo menos percebemos perceber onde estão a decorrer as operações.
A humilhação da Alemanha no Tratado de Versalhes foi um grande catalisador para a Segunda Guerra Mundial. Sente que estas sanções e afastamento total da Rússia pode ter um efeito semelhante numa eventual amplificação do conflito?
Semelhante talvez não tanto, até porque a Alemanha foi obrigada a pagar reparações de guerra brutais e teve de ser desmilitarizada. Se isto nos eleva num patamar da conflitualidade? Claro. Quando um ministro das Finanças diz que a Europa vai desenvolver uma guerra contra a Rússia…temos de medir as palavras. Estamos mais próximos de um conflito com a Rússia, não vale a pena taparmos o sol com a peneira. Mas é preciso termos algum bom senso, a política tem de ser racional e não emocional.
Como vê a ameaça nuclear da Rússia?
A ameaça nuclear faz parte da equação. Se a França fosse novamente invadida como foi em 1940 pelos nazis, não há dúvida que Macron usaria armas nucleares.
Mas há algum conteúdo a esta ameaça?
Na minha opinião esta ameaça faz parte do bluff que é próprio deste jogo de xadrez. Mas há que perceber que faz parte da equação.
Então, em caso extremo, podem ser usadas?
Não é preciso ser em casos extremos. O uso das armas nucleares é o que se chamada de “escalada para descalar” o desafio. Ou seja: elevar o conflito para patamar nuclear logo no princípio para depois reduzir a intensidade.
Nos últimos dias, vimos a Europa a quebrar vários “tabus”: a Suíça deixou de ser neutra a União Europeia aprovou o financiamento de armamento do exército ucraniano. Porquê neste caso?
É uma boa pergunta. A União Europeia não tem a consciência tranquila neste processo: não se preocupou suficientemente em investigar, em Fevereiro de 2014, quando foram usados snipers contra civis ucranianos em Maidan. Não se preocupou em saber de onde vieram essas pessoas. Tem má consciência em relação às dezenas de opositores do Governo ucraniano que morreram carbonizados num prédio em Odessa por extremistas.
04 de março de 2022
Agostinho Costa
Vice-Presidente da Direção
Entrevista publicada no jornal Público, de 01 de março de 2022: