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A analogia do “Grande Jogo” e a realidade geopolítica da Ásia Central

1.    Introdução

Apesar de ser uma região de grande importância para a geopolítica global, a Ásia Central é encarada como uma área de baixos índices sociais e de economia frágil, amparada, quase sempre, por organizações internacionais, tal como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Asiático de Desenvolvimento (BAD) (Santos, 2017).

Debate Terminológico

Em termos holísticos, a região é de difícil delimitação geográfica e política, e, nesse âmbito, existe um debate semântico entre o russo e o inglês, no qual se tenta compreender as suas fronteiras (Cummings, 2012).

Por um lado, de acordo com Cummings (2012), o termo Ásia Central surgiu como sinónimo a termos como “High Asia” ou “l’Asie Intérieure”, que, afinal de contas, apela ao conjunto de países sem litoral.

Por outro lado, conforme o mesmo adjudica, o conceito geográfico de Ásia Central advém da estrutura semântica da denominação, de origem iraniana, de Transoxania, que advém da concetualização de região, que se estende ao longo de “Oxus”. Isso significa que a Ásia Central se estende entre os rios Amu Darya e Syr Darya, os quais, respetivamente, nascem no Turquemenistão/Afeganistão (se se considerar como fonte do Amu Darya, o rio Pamir, é no Afeganistão que nasce) e no Quirguistão, ambos desaguando no Mar de Aral.

Atualmente, a Ásia Central é definida pelos 5 Estados (ex-repúblicas soviéticas) do Cazaquistão, Uzbequistão, Quirguistão, Tajiquistão e Turquemenistão (Santos, 2017).

Além de ter fornecido algodão, frutas, legumes, petróleo, gás e energia elétrica para toda a URSS, a região possuía um significado ainda mais importante para a geoestratégia soviética. As vastas estepes permitiam ao exército vermelho um campo de testes para bombas nucleares, na qual estima-se que 456 testes nucleares tenham sido realizados no campo de Semipalatinsk, no atual Cazaquistão (Santos, 2017).  A importância desta região não só advém do impacto que teve na economia soviética, como também palco de um conjunto de manobras estratégicas diplomáticas e militares, por parte do Império Britânico na Índia (Raj Britânico) e o Império Russo, posteriormente denominado por “Grande Jogo” (Santos, 2017).

Neste sentido, no presente trabalho, procurarei, através da análise do “Grande Jogo” do séc. XIX, e da apresentação das dinâmicas atuais na região, traçar uma linha de analogia histórica nas relações entre as potências que se estabelecem na região da Ásia Central e do Afeganistão, colocado no que se chama de “Greater Central Asia” (Regiani, 2015).

2.    O “Grande Jogo” de Kipling

O termo “Grande Jogo” surgiu nos anos de 1830, porém, foi projetado por Rudyard Kipling. Apesar de ser um conceito fictício, descreve um conjunto de atividades reais, cujo fim era a ascendência política da Rússia Imperial e a defesa da chamada pedra angular do Império Britânico, a Índia (Edwards, 2003). Esta dinâmica também pode ser chamada de “Guerra Fria da Ásia Central”, conforme compara Regiani (2015).

O precedente para este conflito aconteceu quando o Império Russo se expandiu para o Cáucaso e a Ásia Central, tentando aceder aos portos oceânicos do Índico. Desta forma, ameaçou o Império Britânico da Índia, que sentiu a possibilidade de ser atacado (Edwards, 2003: 84).

Com fim a defender os seus interesses, os Britânicos iniciaram manobras militares nas fronteiras do norte da Índia, para controlar, de facto, a mesma (Edwards, 2003). Para além dessas manobras, o Império Britânico da Índia, invadiu o Afeganistão, por esse ter se aproximado da Rússia, iniciando a Segunda Guerra Anglo-Afegã, cujo desfecho foi a assinatura do Tratado de Gandamak, em 1879. No mesmo, o Raj Britânico afirmou a saída das suas tropas do Afeganistão, no entanto, a Política Externa de Cabul, seria gerida pelo Império Britânico (Toriya, 2017: 51 e 52).

Seguindo a assinatura do Tratado de Gandamak, o Raj Britânico procurou delimitar as fronteiras do território afegão, pois a segurança da Índia dependia da segurança do Afeganistão. Desta forma, foi criada a Linha Durand, que delimitava a fronteira entre o Afeganistão e o atual Paquistão, na altura parte do Raj Britânico, cuja condição geográfica era definida por dois impérios e um protetorado afegão entre eles (Regiani, 2015).

Neste sentido, o “Grande Jogo” visava a ascensão Imperial de uma das duas potências, que procuravam hegemonia territorial na região (Edwards, 2003: 84).

Este antagonismo entre São Petersburgo e Londres foi levado a um outro nível, aquando da Revolução Bolchevique Russa, de 1916, que se expandiu para a Ásia Central e incorporou esses protetorados russos na URSS (Santos, 2017). Inicialmente, foi criada uma única república soviética, chamada de Turquestão, que, no entanto, foi contestada pelas minorias não turcas que lá habitavam, levando ao desmembramento do Turquestão e à criação das cinco repúblicas da Ásia Central (Santos, 2017: 4).

3.    Emergência de um “Novo Grande Jogo”

De acordo com Matthew Edwards (2003), com a queda da URSS, em 1991, emergiu o “Novo Grande Jogo”, que se tornou numa competição pela influência, poder, hegemonia e lucros na Ásia Central e no Cáucaso, de lembrar que ambas as regiões são muito ricas em petróleo. Porém, desta vez, a Rússia passou a adotar uma posição geoestratégica defensiva, já que o Ocidente não lhe permitia criar estruturas na Eurásia que lhe garantam a hegemonia (Edwards, 2003: 85).

De uma forma geral, a Rússia procura restabelecer a sua posição privilegiada no espaço pós-Soviético, já que os recém-estabelecidos Estados procuraram uma viragem geopolítica para o bloco ocidental, o que explica as sucessivas guerras que a Rússia tem travado no Cáucaso (Edwards, 2003).

No entanto, a situação atual não implica só dois atores, no caso do chamado “Novo Grande Jogo”, existem muitos outros atores estatais, como o Paquistão, a Índia, a China, a Turquia e o Irão. No que toca aos atores não-estatais, trata-se dos grandes consórcios multinacionais, que competem entre si pelos recursos abundantes.

Velho Jogo, Novas regras?

De acordo com Stephen Blank (2012), o contexto competitivo na Ásia Central é formado por dois conjuntos de atores. Em primeiro lugar, estão os atores externos, tais como outros países ou atores não-estatais. Em segundo, estão os internos, que são as cinco antigas repúblicas soviéticas e os novos grandes atores regionais, tais como a Índia, o Paquistão e a China.

Neste sentido, enquanto que os atores externos entram numa competição pelos recursos da região, os atores internos acabam por determinar uma política de «outsourcing» dos aspetos securitários das suas políticas internas às potências que os rodeiam, neste caso a Rússia e a China (Blank, 2012: 149).

No entanto, o que, na verdade, poderá criar as condições para o reforço do “Novo Grande Jogo”, são as futuras mudanças externas, a nível estratégico, que irão fomentar uma balança de poder competitiva na região. Assim, Blank (2012) define a saída dos EUA do Afeganistão, a emergência de atores como a China e da Índia e, por último, a possibilidade (e o consequente medo) da projeção da Primavera Árabe para a Ásia Central como os principais fatores que poderão criar um ambiente de maior competição entre as potências envolvidas.

Porém, não só as dinâmicas externas poderão levar a tal contexto. Atualmente já se pode observar uma competição pelos recursos energéticos entre a Rússia, a China, o Paquistão, a Índia e o Ocidente, no entanto, são os dois primeiros que vivem um clima de rivalidade comercial pela região, aliada por uma “antipatia” mútua face à presença militar dos EUA e da OTAN no Afeganistão (Blank, 2012).

Desta forma, pode-se provar que as relações desenvolvidas entre as potências globais, na conjuntura da Ásia Central, de facto, criam condições para a procriação do “Novo Grande Jogo”. E, apesar das diferentes formas em como se manifesta, este termo pode ser cunhado a esta realidade porque reafirma as novas formas de dominação imperialista e, neste âmbito, cria as suas novas dinâmicas, enfatizadas por Blank (2012). Vejamos. Em primeiro lugar, há competição entre as superpotências, mesmo em termos militares, uma vez que todos os países têm, ou já chegaram a ter acesso a, pelo menos, uma base militar na região. Em segundo, existe a possibilidade de formulação de novas realidades que poderão revitalizar um clima de tensão. Terceiro, estamos a presenciar a emergência de novos atores internos, a nível regional, como o Cazaquistão e o Uzbequistão, que, ao acumularem riquezas, catalisam-nas para projetar o seu poder nos outros países. Por fim, as instituições financeiras mundiais, como o FMI e o BM, para além das diferentes ONGs, conseguem assegurar um papel preponderante, através da sua atuação financeira e social no terreno (Blank, 2012: 155-156).

A aplicabilidade do conceito é válida?

De facto, conforme acima demonstrado, a Ásia Central é uma região fértil, em conflitos em seu redor (Laruelle, 2015).

No entanto, como Marlene Laruelle (2015) afirma, esses conflitos são desenrolados a nível semântico nos discursos políticos, onde nem sempre têm capacidade para se materializarem. A principal metáfora utilizada para definir a estratégia política das potências, face aos países da região, é a «Silk Road» (Laruelle, 2015: 361). Assim, os políticos tencionam reviver a ideia de que esta região é importante na definição da política internacional e que ocupa uma posição central (Laruelle, 2015: 362). Por outro lado, a Rússia decide adotar uma visão diferente na sua estratégia posicionando-se enquanto nação Eurasiática, o que lhe confere um plano importante na sua projeção para a Ásia Central (Laruelle, 2015: 363).

Neste sentido, uma análise feita por Rajan Menon (2003), indica que Washington não está empenhado, mas antes emprisionado na região.

Primeiro, a alocação estratégica das tropas estadunidenses nos países da Ásia Central, como o Quirguistão, ou o Tajiquistão, é um marco importante para a “Guerra ao Terror”, dando-lhe um caráter temporário (Menon, 2003).

Segundo, aliado ao primeiro, o surgimento de grupos como a Al-Qaeda, depende de certas condições económicas, políticas, sociais e culturais, que só existem na região em causa, daí a presença dos EUA (Menon, 2003).

Em terceiro lugar, os regimes autocráticos dos países da Ásia Central precisam de apoio, e, no caso dos EUA, a sua cooperação procura, principalmente, evitar conflitos de interesses (Menon, 2003).

Por fim, e em menor grau, os EUA estão numa posição, em que uma saída brusca das suas forças, significaria a sua derrota e a insuficiência das suas capacidades para atingir os seus objetivos (Menon, 2003: 191).

No que toca à possível projeção da Índia e do Paquistão para a região, sem dúvida, ambos os países têm como interesse a exploração dos recursos na região, porém, um conflito entre os mesmos, que poderá ascender a uma guerra nuclear é já uma realidade, devido ao separatismo na região de Kashmir, algo reforçado pela maior aproximação dos EUA face a Islamabad do que Nova Dehli (Menon, 2003: 195).

No que concerne às dinâmicas que os estados da Ásia Central detém com os atores próximos (a China e a Rússia), estas são delimitadas pelo conceito de «Protective Integration», avançado por Roy Allisson (2008). Este conceito expressa uma cultura de integração, na qual se privilegiam mecanismos intragovernamentais a supranacionais.

Neste sentido, surgem as CSTO (Collective Security Treaty Organization) e a SCO (Shanghai Cooperation Organization). Assim, a SCO, encabeçada pela China, e que conta com a presença da Rússia, é uma forma de Pequim garantir um bilateralismo contextualizado com os países da Ásia Central e a Rússia, em matéria comercial (Allisson, 2018: 308).

Por outro lado, o CSTO, encabeçado por Moscovo, é um mero «clube», cujos membros, igualmente à SCO, cooperam bilateralmente, a nível militar, com a Rússia (Allisson, 2018: 308).

Desta forma, Allisson (2008) defende que, através destes projetos, que advogam um regionalismo mais virtual do que substantivo, e que são sustentados só como forma de assegurar a segurança dos regimes autocráticos desses países, tornam a Ásia Central num espaço inóspito a projetos de integração.

Concluindo, a Ásia Central não é mais um ponto central na política global, já que um terço do comércio mundial é feito por mar, o que invalida a sua posição estratégica, não rejeitando a sua importância, noutras medidas (Laruelle, 2015: 369).

Desta forma, segundo estes autores, torna-se inválido cunhar o termo de “Novo Grande Jogo”, como forma de explicar o contexto das relações de poder, na Ásia Central e no Médio Oriente.

4.    Conclusão

O “Grande Jogo” do séc. XIX foi, de facto um momento marcante na geopolítica do séc. XIX, já que opôs duas potências, num conflito sobre a região da Ásia Central.

Desta forma, e tendo em conta o contexto do pós-Guerra Fria, no qual a competição pela região ganhou um novo ímpeto, surgem autores, tais como Stephen Blank, que advogam a transposição desse termo para a atualidade, chamando-lhe de “Novo Grande Jogo”.

Porém, essa ideia não pode ser concetualizada, porque, tal como Matthew Edwards (2003) sugere, aquando da avaliação de variantes históricas e atuais, tais como o Local, os Atores, os Objetivos e os Meios, só o local, delimitado pelo Leste da Bacia do Cáspio e o Afeganistão, confere analogia com o “Grande Jogo” do séc. XIX. No que toca aos outros elementos, analisados ao longo deste trabalho, não se comprova assemelhação.

Dito isto, com base no trabalho de Alexander Cooley (2012), não é atual analisar as dinâmicas geopolíticas na Ásia Central, através do seu espelhamento com o “Grande Jogo” do séc. XIX, uma vez que esta região perdeu o seu centralismo e o mesmo pode ter sido dado por terminado, mesmo implicando que nem todos tiveram de morrer.


 Vitaliy Venislavskyy

EuroDefense Jovem


5.    Referências Bibliográficas

Allison, R. 2008. “Virtual regionalism, regional structures and regime security in Central Asia.” Central Asian Survey 27(2): 185-202.

Allison, R. 2018. “Protective Integration and Security Policy Coordination: Comparing the SCO and CSTO.” The Chinese Journal of International Politics 11(3): 297–338.

Blank, S. 2012. “Whither the New Great Game in Central Asia.” Journal of Eurasian Studies 3: 147-160.

Cooley, A. 2012. Great games, local rules: The new great power contest in Central Asia (Oxford UP), Chap. 1.

Cummings, S. 2012. Understanding Central Asia. Routledge, Cap. 2.

Edwards, M. 2003. “‘The New’ Great Game and the new great games: Disciples of Kipling and Mackinder. “Central Asian Survey 22 (1): 83-102.

Laruelle, M. 2015. “The US Silk Road: geopolitical imaginary or the repackaging of strategic interests.” Eurasian Geography and Economics. DOI:10.1080/15387216.2015.1098555.

Menon, R. 2003. “The New Great Game in Central Asia.” Survival 45 (2): 87-204.

Regiani, Rafael (2015), “Os Pashtuns E A Linha Durand: A Geopolítica Da Fronteira Afegã” 5450-5460.

Santos, Jonathan Christian Dias (2017), “Ásia Central: A Importância Geoestratégica De Uma Região Desconhecida” Revista Eletrônica História, Natureza e Espaço – ISSN 2317-8361 v. 6, n. 2. DOI:10.12957/hne.2018.35922.

Toriya, Masato (2017), “Afghanistan as a Buffer State between Regional Powers in the Late Nineteenth Century. An Analysis of Internal Politics Focusing on the Local Actors and the British Policy” Regional Routes, Regional Roots? Cross-Border. Patterns of Human Mobility in Eurasia, Hokkaido Slavic-Eurasian Reserarch Center, 49-62.


NOTA:

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