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Introdução

A presente pesquisa tem como foco principal analisar como vem sendo abordada a Autonomia Estratégica da União Europeia, visando discutir a importância deste conceito na evolução das Políticas Públicas da União Europeia, assim como na relação transatlântica, argumentando que conteúdo da Autonomia Estratégica pode, todavia, ser concebido numa lógica de ganho mútuo e de interesse comum entre as duas margens do Atlântico.

É objetivo deste trabalho, utilizando o método qualitativo, contribuir para o debate da autonomia estratégica europeia com uma perspetiva moderada sobre a ligação transatlântica. 

De Saint-Malo à EGUE: uma ideia em processo

Pode-se argumentar que ideia de autonomia estratégica foi pela primeira vez expressa na Declaração Conjunta Franco-Britânica de Saint-Malo, onde ambas potências esclareceram a necessidade de a União Europeia exercer uma real capacidade autónoma sobre as suas ações. Simultaneamente, declarou-se que se deve contribuir para a vitalidade de uma aliança transatlântica modernizada, agindo a EU em conformidade com as obrigações da NATO, entendendo esta como a base da segurança coletiva dos seus membros[1]. Assim cabia à União Europeia, no que toca a questões de segurança e defesa, agir em conformidade com o pilar europeu da NATO.

De seguida, enquanto a EGUE delineada em 2016 diferencia-se da Estratégia Europeia de Defesa de 2003 por ser mais realista, modesta e construtiva[2], a autonomia estratégica é fundamental para a sua composição.

Concebida para estabelecer objetivos claros e recalibrar a ação externa da UE, a EGUE definiu o Nível de Ambição da UE (LoA) no domínio da segurança, sendo este definido como: “(a) responder a conflitos e crises externos, (b) desenvolver as capacidades dos parceiros e (c) proteger a União e os seus cidadãos”. Um outro objetivo fundamental da EGUE era “a ambição de autonomia estratégica para a União Europeia”. O LoA, portanto, envolveu “capacidades terrestres, aéreas, espaciais e marítimas de espectro total, incluindo facilitadores estratégicos”[3] – a autonomia estratégica tornou-se, inequivocamente, no grande objetivo[4].

Segundo Margriet Drent (2018), em resposta aos níveis graduais de ameaça como a anexação da Crimeia pela Rússia, os Estados Unidos (EUA) aumentaram a pressão sobre a Europa para intensificar os esforços na defesa e, de seguida, em 2017, a Europa viu nascer mecanismos como o Fundo Europeu de Defesa (FDE), a Estrutura Permanente de Cooperação (PESCO), e a Revisão Anual Coordenadora de Defesa (CARD). Assim, o esforço para a revitalização da autonomia estratégica da UE contribuiu para o ressurgimento de preocupações sobre os seus efeitos e a ligação transatlântica na defesa industrial, protecionismo e cooperação dentro da NATO.

A autonomia estratégica só pode ser alcançada em três dimensões diferentes: autonomia industrial, política e operacional. Atualmente, a dimensão da autonomia estratégica que recebe mais atenção é a dimensão industrial: “Sustentável, competitiva e inovadora ao nível europeu, a indústria da defesa é essencial para a autonomia estratégica da Europa e credível para a Política de Defesa e de Segurança Comum”[5]. A Comissão Europeia afirma que “A Europa deve ser capaz de decidir e agir sem depender das capacidades de terceiros partidos. A segurança de abastecimento, o acesso a tecnologias e a soberania operacional são cruciais”[6]. Adicionalmente, a maioria dos estados europeus acredita que a Europa deve reforçar a sua defesa, seja para ser um aliado de segurança mais fiável para os EUA ou para ser capaz de agir, se necessário, por conta própria[7].

Por último, o fator nuclear na autonomia estratégica para a Europa tem de ser discutido. Segundo Jaroslaw Kaczynsky, antigo Primeiro-Ministro polaco, a Europa pode precisar de tornar-se uma potência nuclear de maneira a realmente alcançar autonomia estratégica[8].

Por sua vez,Daniel Fiott (2018) compara o leque de iniciativas de defesa desenvolvidas desde 2016 com 3 visões conceituais de autonomia estratégica: autonomia como responsabilização, autonomia como precaução e autonomia como emancipação.

Primeiramente, a autonomia como responsabilizaçãoassenta na convicção de que os países europeus deveriam encarregar-se de uma parcela maior dentro da NATO e, quando pertinente, através da UE. Para os que defendem mais responsabilidade a nível da União, a autonomia operacional e a industrial não necessitam de estar vinculadas, uma vez que a autonomia estratégica na defesa não pode ser alcançada se os Estados Unidos da América dispuserem de autoridade política substancial sobre o uso de equipamentos das principais tecnologias estratégicas. Junta-se a isto o facto de que os países europeus optam maioritariamente por uma autonomia assente na abordagem nacional e não europeia[9].

Seguidamente, a autonomia como precauçãoassenta na garantia para que as estruturas, políticas e meios de defesa da UE sejam autónomos e eficazes para poderem suportar tarefas militares caso os EUA decidam retirar-se da Europa. Autonomia é entendida como um “seguro” contra desentendimentos entre dois atores ou quando o poder hegemónico deixa de proporcionar segurança ao agente apoiado.

Por último, a autonomia como emancipaçãoadmite que a dependência estratégica pode reforçar a dependência política e industrial em relação aos EUA. Assim, a UE deve assumir uma maior autonomia e desenvolver todo o seu potencial como uma potência global. Apoiantes da emancipação plena veem a autonomia estratégica com base no “espectro total”, como um conceito indivisível: ou a UE protege o território europeu e os seus interesses globais, ou não consegue fazê-lo. E nesse caso qualquer coisa aquém da autonomia total não é passível de ser designada de “autonomia”, ou de “estratégica”.

Entre Efeitos Positivos e Negativos

O real contexto de incapacidade da União de assegurar, por si só, a sua defesa tem vindo a ser historicamente clarificado. Podem servir de grandes exemplos o caso da Guerra na Jugoslávia, (1991-2001), a intervenção militar europeia na Líbia em 2011 e, mais recentemente, a intervenção militar da Rússia na Ucrânia em 2014.

A União Europeia, aparentemente uma potência mundial em ascensão, estava dividida internamente com diferentes interesses nacionais e posições em relação à Jugoslávia. Com o objetivo de respeitar todos os interesses nacionais, a UE encontrou-se imóvel durante o conflito, mostrando uma grande incapacidade de estabilizar um confronto num território vizinho. Apenas com intervenção por parte da aliança transatlântica foi o conflito resolvido. Assim, a guerra na Jugoslávia demonstrou os problemas da União ao enfrentar conflitos violentos próximos de si[10].

A intervenção na Líbia em 2011, liderada inicialmente pela França e pelo Reino Unido e mais tarde pela NATO, revelou que mesmo uma operação relativamente simples poderia ser um desafio para os estados membros da UE que participaram[11]. Sérias lacunas sobre a capacidade europeia tornaram-se aparentes, principalmente sobre munições guiadas com precisão, porta-aviões e meios de reconhecimento e reabastecimento aéreo, assim como uma dependência geral dos Estados Unidos para facilitadores estratégicos[12] – uma real incapacidade fundamentalmente industrial. Adicionalmente, tendo em conta a pouca participação de potências europeias nas missões francesas no continente africano, tornou-se possível argumentar que tem sido geralmente estabelecida a soberania nacional acima do interesse comunitário europeu[13].

No ano de 2014, a segurança europeia foi mais uma vez abalada, devido à intervenção militar russa na Ucrânia. A atenção voltou-se para as responsabilidades de defesa coletiva da NATO e a necessidade de muitos estados membros da UE manterem e desenvolverem capacidades como artilharia e blindados pesados, além das capacidades mais expedicionárias, que tinham sido o foco desde a década de 1990[14]. Complementarmente, este é um episódio de grande importância para a evolução do contexto geopolítico, pois contribui para o argumento a favor do ressurgimento do poder militar da Federação Russa no palco internacional.

Neste contexto, entende-se que o poder da Europa tem vindo a diminuir[15] e pode-se também argumentar que a diminuição da presença militar americana em regiões de extrema importância estratégica para a Europa (o continente africano e a região do médio oriente) resultará na situação em que a Europa sentir-se-á obrigada a tomar ações concretas relativamente à resolução de crises e conflitos na sua vizinhança[16]. Logo, a autonomia estratégica da Europa é um “processo de sobrevivência política”[17].

Mecanismos como o CARD, a PESCO e o FDE, constituem o conteúdo do Plano de Implementação do Nível de Ambição da União. Por outras palavras, o conceito de autonomia estratégica contém, no contexto de incapacidade europeia, a concreta tentativa do estabelecimento de mecanismos que possam fazer face às várias mudanças no contexto geopolítico internacional.

Contudo, as seleções das prioridades relativas ao desenvolvimento de capacidades resultam inevitavelmente num compromisso entre os próprios estados-membros participantes, a NATO e as Tarefas Petersberg da PCSD. Como tal, o objetivo da autonomia estratégica compete com outras prioridades. A UE não é um Estado com uma política externa, mas uma União de Estados que mantêm o cerne da soberania sobre as suas questões de defesa e cujas forças servem para diversos objetivos[18].

O principal argumento contra a autonomia estratégica é o enfraquecimento da ligação transatlântica, ou o potencial de duplicação da NATO. Contudo, nos últimos anos, temos assistido a menos impedimentos dos dois lados do Oceano Atlântico, com o argumento de que uma “União Europeia com autonomia estratégica em questões de defesa pode fortalecer ao invés de enfraquecer a NATO, ao permitir uma maior partilha do fardo da segurança transatlântica”[19].

Inicialmente, a PCSD era examinada com alguma desconfiança por parte dos parceiros americanos. Em 1999 a Secretária de Estado Madeleine Albright alertou para o que se tornou conhecido como “os 3 Ds”: a discriminação da UE contra estados europeus membros da NATO; a duplicação da segurança europeia nos esforços tentados na NATO; a dissociação da tomada de decisão europeia na tomada de decisão na Aliança. Porém, atualmente os EUA já têm uma visão mais positiva da Política de Segurança e Defesa Europeia[20].

Os EUA veem com cautela esta mudança do pensamento estratégico dos seus aliados, uma vez que, o real cumprimento europeu com as suas responsabilidades securitárias, pode beneficiar os Estados Unidos ao permitir a poupança na defesa da Europa, significando também a maior autonomia na decisões europeias em matérias que influenciam interesses estratégicos tanto europeus como americanos – como a abordagem à  República Popular da China[21]. É de extrema importância os EUA sentirem que a Europa não é totalmente neutra, nesta questão, e que pende para o lado das democracias e dos valores ocidentais tornando a China num “competidor” e “rival sistémico”, segundo Emmanuel Macron[22].

A autonomia estratégica da UE é, portanto, um ponto fulcral nas relações entre estes dois países, visto estar a ser posta em prática desde que foi inserida na Estratégia Global da União Europeia. Este ponto fulcral deve ser harmonizado, entre parceiros (UE e EUA), em termos conceptuais e práticos, de forma a ser possível um ganho mútuo, e serem ultrapassados quaisquer “acidentes de percurso”, como o Acordo Comercial EU-China que pode ser interpretado pelos EUA, “não como uma prova de independência Europeia mas sim de fraqueza Europeia”[23].

Conclusão

“International order is not an evolution; it is an imposition. It is the domination of one vision over others- in this case, the domination of liberal principles of economics, domestic politics, and international relations over other, nonliberal principles. It will last only as long as those who imposed it retain the capacity to defend it.”

– Robert Kagan, The World America Made, 2012

“Democracy has spread and endured because it has been nurtured and supported: by the norms of the liberal order, by global pressures and inducements to conform to those norms, by the membership requirements of liberal institutions like the EU and NATO, by the fact that the liberal order has been the wealthiest part of the world, and by the security provided by the world’s strongest power, which happens to be a democracy.”

– Robert Kagan, The Jugle Grows Back: America and our Imperiled World, 2018

A arquitetura de segurança instalada na Europa desde a Segunda Guerra Mundial tem sido fundamental para o crescimento e desenvolvimento do mundo Ocidental. Contudo, subscrevendo Robert Kagan, este é um jardim que necessita de um cuidado máximo e constante, de forma a que não se retorne ao seu estado selvagem.

Neste aspeto, a falta de incapacidade estratégica multifacetada do continente europeu, no que toca à sua segurança e defesa, é um aspeto de resolução urgente. Uma Europa forte e ágil é um aspeto importantíssimo para que o seu lado do jardim esteja devidamente cuidado durante um longo período histórico. Simultaneamente, uma Europa forte e ágil significa também a possível manutenção dos diferentes polos da ordem liberal – os outros lados do jardim – pois permite que os seus aliados, principalmente os EUA, possam cuidar de si próprios e contar consigo no contexto geopolítico e geoestratégico global.

Devido à incapacidade europeia, o velho continente tem vindo a tornar-se numa região volátil, no que toca à influência das grandes potências. Uma região volátil que, acima de tudo, é culturalmente mais próxima do modo de vida norte-americano.

O processo de autonomia estratégica europeia beneficia não só aqueles que cantam o Hino da Alegria, mas beneficia também aqueles que lhes são aliados – uma abordagem win-win à relação transatlântica.


25 de maio de 2021

Coordenado por Margarida Luís

Realizado pelos estagiário:

Afonso Ziegler

Emmanuel Carneiro

Inês Machado

Kristiyana Stamenova


Notas Bibliográficas


[1] Franco–British St. Malo Declaration, 1998.

[2] Jolyon Howorth, “The EUGS: New Concepts for New Directions in Foreign and Security Policy”, 2016.

[3] “Shared Vision, Common Action: A Stronger Europe – A Global Strategy for the European Union’s Foreign And Security Policy”, 2016.

[4] Sven Biscop, “An ambitious defence follow-up for an ambitious EUGS. Default”, 2019.

[5] Margaret Drent, “European strategic autonomy: Going it alone?”, (Netherland Institute of International Relations: 2018).

[6] Idem.

[7] Idem.

[8] Idem.

[9] Daniel Fiott, “Strategic autonomy: towards ‘European sovereignty’ in defence?”, (EU Institute For Security Studies: 2018).

[10] David Troitiño et al, “The incapacity of the Union to act as a reliable actor in the international arena”, 2017.

[11] Ben Jones, “CSDP defence capabilities development”, 2020.

[12]  Sven Biscop, “Mayhem in the Mediterranean: three strategic lessons for Europe”, 2011.

[13] Troitiño, “The incapacity of the Union to act as a reliable actor in the international arena”, 2017.

[14] Jones, “CSDP defence capabilities development”, 2020

[15] Josep Borrel, “Why European strategic autonomy matters. EEAS – European External Action Service – European Commission”, 2020

[16] Justyna Gotkowska, “USA – Germany – NATO’s eastern flank. Transformation of the US military presence in Europe” (OSW Centre for Eastern Studies: 2020)

[17] Borrell, “Why European strategic autonomy matters”, 2020

[18] Jones, “CSDP defence capabilities development”, 2020

[19] Suzana Anghel et al, “On the path to ‘strategic autonomy’: The EU in an evolving geopolitical environment”, 2020

[20] Drent, “European strategic autonomy: Going it alone?”, 2018

[21] Stuart Lau et al,  “Merkel sides with Xi on avoiding Cold War blocs”, (Político: 2021)

[22] Ishaan Tharoor, “Biden faces a Rekieved but Cautious Europe”, (Whashington Post: 2021)

[23] Tom Mctague, “Joe Biden Has a Europe Problem”, (The Atlantic: 2021)

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