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A Belt and Road Initative (BRI), também conhecida por “Nova Rota da Seda” do século XXI, [é] uma “Faixa” terrestre – rede de infraestruturas, parques industriais, rodovias e ferrovias com seis corredores ligando a China à Ásia do Sudeste, Meridional e Central, Rússia e Europa – e uma “Rota” marítima que liga o Sul da China, do Mar da China do Sul à Oceânia, Sudeste Asiático, Oceano Índico e daí conectando as costas asiática e africana até à Europa

– Tomé, 2019:12

Atualmente, um dos maiores problemas diplomáticos da China é a sua pobre imagem diplomática (Ramo, 2007, cit. por Voon & Xu, 2019). A Belt and Road Initiative (BRI) e o soft power que dela emana revelaram-se essenciais estrategicamente, especialmente com uma liderança chinesa cada vez mais empenhada em transitar a China de um poder regional para um poder global (Poh & Li, 2017). Esta transição acontece à luz do que aconteceu com a ascensão benigna (Peaceful Rise) da República Popular da China (RPC), com uma lógica de win-win – “com benefícios mútuos para a China e os seus parceiros” – (Tomé, 2019:16), não perturbando a segurança e estabilidade regional. O que diferencia a BRI e, consequentemente, torna o projeto mais atrativo relativamente a outros, é o facto de ser uma iniciativa para “cooperação económica, em vez de uma aliança geopolítica ou militar”, e com uma política de porta aberta indiferente à ideologia, em que “desde que os países estejam dispostos a juntar-se, são bem-vindos” (Xinhua, 2018). Estas palavras proferidas por Xi Jinping, no entanto (e como é verificável), não são fiéis à realidade – a BRI constitui um pilar essencial desta alegada ascensão pacífica, e ao “potencial geográfico e democrático e ao poderio económico e comercial da China, junta-se o poder militar”, com o Exército Popular de Libertação (EPL ou PLA) a constituir uma porção significativa da modernização chinesa (Tomé, 2019:12-14), funcionando igualmente como instrumento diplomático.

Desde a pandemia da SARS-CoV-2 (Covid-19), naturalmente e em concordância com o que se passa (e passou) no panorama mundial, que a BRI não é a mesma, nem em termos de funcionamento nem em termos de imagem diplomática. Uma dependência vincada na China em exportações, nomeadamente máscaras N95 e equipamento médico, levou ao início de uma tendência ocidental de decoupling, ou dissociação, com o mercado chinês, que se tem vindo a verificar ao longo destes últimos dois anos (Zeneli & Vann, 2020). Com o início da pandemia, o sentimento global tem sido maioritariamente o de que o Partido Comunista Chinês (PCC) se tem tornado, cada vez mais, um problema para as relações internacionais (Harris, Neal & McConalogue, 2021).

No entanto,

Por muito que a BRI arrisque corrupção, polução ambiental, instabilidade social e dívidas (…), também se foca em pontos como o défice de infraestruturas e baixa industrialização em países menos desenvolvidos, trazendo então benefícios económicos. Em África, a BRI poderá levar ao desenvolvimento integrado e direto da economia e da infraestrutura.

– Liu, 2022:13

O foco principal da BRI, mesmo assim, continua a ser o sudeste asiático, por uma variedade de razões citadas por Gong (2018):

1. A liderança chinesa reitera que a China compromete-se a construir uma ligação mais forte com a ASEAN;

2. Fontes chinesas indicam que Beijing espera grandes sucessos da BRI nesta região, mais do que comparando com o resto do mundo;

3. O sudeste asiático é a linha da frente da vertente marítima da BRI;

4. A China considera a área estrategicamente crucial pelos vários mecanismos multilaterais que alguns Estados da ASEAN formaram com outros países;

5. O projeto beneficia as províncias mais austrais, com os seus projetos de mobilidade;

6. O sudeste asiático é de crítica importância em termos de segurança.

Sendo estes países a porta de saída para o resto do mundo e, consequentemente, para os restantes países presentes na BRI, a sua importância estratégica é inegável, principalmente quando se passa de um plano micro para um plano macro que fornece uma outra perspetiva: com o objetivo chinês de tornar a política internacional cada vez mais multipolarizada, em que “cabe ao povo da Ásia tratar dos negócios da Ásia, resolver os problemas da Ásia e defender a segurança da Ásia”, e que os americanos – e consequentemente o ocidente – se têm de retirar (Jinping, 2014, cit. por Allison, 2021:164-165).

É este, aliás, o grande objetivo estratégico da BRI – a cooperação económica mencionada por Xi Jinping é apenas a capa de um grande livro traiçoeiro que devemos ler com a maior das atenções. A divisão da antiga Ordem Mundial, um mundo multipolarizado, hegemonia regional e estatuto de superpotência, esses sim. Curiosamente, o modo de atingir estes fins é basilar à cultura e política chinesa – explorar divisões entre os estrangeiros (bárbaros) e usá-los uns contra os outros.

Se as tribos se dividirem [ficarão] fracas e [será] fácil mantê-las subjugadas; se as tribos estiverem separadas afastam-se umas das outras e obedecem prontamente. Favorecemos um ou outro [dos seus chefes] e permitimos-lhes que se combatam uns aos outros. Este é um princípio de ação política que afirma: “As guerras entre os “bárbaros” são auspiciosas para a China”

– Melikhov, 1981, cit. por Kissinger, 2011

Assim, um mundo fragmentado é um mundo estrategicamente favorável à China. O bloco ocidental, constituído maioritariamente pelos Estados Unidos da América (EUA) e pela União Europeia (UE), terá, na ótica chinesa, de ter um dos seus componentes dividido. Dentro destes dois, a UE é a opção estratégica mais viável: os EUA são, apesar das suas particularidades políticas internas, um Estado-Nação em seu próprio direito; a UE, por outro lado, é considerada um OPNI, um Objeto Político Não Identificado, com Estados-membro individuais que podem agir com um certo grau de independência. Afinal, por muito que as instituições da União pertençam “solidariamente a um todo indissolúvel destinado a alcançar objetivos comuns”, a “UE não é apenas uma comunidade de interesses, é sobretudo uma comunidade solidária” (Borchardt, 2018:141). Esta ambiguidade leva, naturalmente, a cisões dentro da União. A maior ruptura é entre os chamados Estados Europeus centrais, como a França e a Alemanha – críticos e cautelosos com os avanços chineses – e os chamados Estados da periferia europeia – que veem a BRI como uma oportunidade económica (Jakimów, 2019); estrategicamente falando, a decisão chinesa de se focar nas clivagens ruralidade-indústria e centro-periferia (Braga da Cruz, 2018:279) presentes na União Europeia é inteligente de modo a garantir que a China é o poder hegemónico regional e o grande rival estratégico dos EUA. O fim da Pax Americana é vital para a emergência da China e a sua aspiração de “ser a número um do mundo” através de uma “visão supremacista do mundo ligada à identidade chinesa” (Allison, 2021:291-292); da mesma forma, a transição para uma Ordem Mundial pós-ocidental e mais regionalizada passa, naturalmente, pela China (Lehoczki, 2022).

Dito isto, qual o efeito que a BRI terá na União Europeia? Quando 17 (dezassete) em 27 (vinte e sete) países da EU se juntaram à BRI através do Memorandum of Understanding (MoU), diferenças ideológicas quanto a laços económicos com um rival estratégico tendem a transparecer. Mesmo que, recentemente, a UE tenha trabalhado para desenvolver uma política mais unificada de resposta ao megaprojeto chinês (Sarsenbayev & Véron, 2020), a verdade é que a tese de Liu apresentada inicialmente a países subdesenvolvidos também se aplica a grande parte do continente europeu, especialmente na periferia que rodeia a Europa central – minimizar a falta de infraestrutura é uma prioridade política e, por muitas preocupações que a BRI possa levantar, é uma alternativa viável.

Portugal, aliás, é um importante caso de estudo pela forte presença chinesa no país – com fracas infraestruturas e investimento quando comparado com o resto do continente europeu, entidades como a China Three Gorges ou a State Grid of China detêm atualmente mais de 25% da EDP e da REN, respetivamente, empresas fulcrais para Portugal. O porto de Sines, estrategicamente vital por ser um porto de águas profundas, também tem grande investimento chinês (Ibidem).

Assim sendo, como estratégia, a UE tem de ter uma resposta dupla à BRI:

Primeiramente, uma resposta interna, com vários projetos de investimento, como o “Connecting Europe Facility” (CEF), com um orçamento de €30 mil milhões entre 2014-2020 e €42 mil milhões no período de 2021-2027; o Fundo de Coesão e o Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (FEDER), ambos com orçamentos bilionários com o objetivo de reduzir a disparidade e as clivagens supramencionadas que prejudicam certos Estados-membro; e o Fundo Europeu para Investimentos Estratégicos, com €33.5 mil milhões de euros. Juntamente com vários outros projetos, em 2019 (e, portanto, antes da pandemia e da injeção de capital da “bazuca” europeia, o Plano de Recuperação e Resiliência), a UE teria €459 mil milhões a distribuir pelos vários Estados-membro (Ibidem:11-12). Uma resposta interna mais forte por parte da UE no sentido de minimizar a clivagem centro-periferia, através destes projetos, inibiria parte dos países de ter laços tão estreitos com um rival estratégico como a RPC: apenas uma União mais uniforme conseguirá atingir uma política externa comum. Enquanto os Estados-membro não abraçarem o projeto europeu, e enquanto o projeto europeu não servir todos os países proporcionalmente e de igual modo, as nações europeias continuarão a agir tendencialmente numa ótica de ganho próprio e individual, e raramente em prol da União em que se inserem: sem ação adequada, esta variável continuará a tender a favor da China, que estende os braços não só para onde a UE não o faz, mas também estendendo os braços como a UE não o faz.

Segundamente, uma resposta externa, uma resposta direta à BRI pelo nome de Global Gateway, cuja função é atrair mais investimentos promovendo valores democráticos e padrões altos, transparência, parcerias iguais, verdes e limpas, com infraestruturas seguras que poderão catalisar investimentos privados (Comissão Europeia, 2021). Ao contrário da BRI que, como visto anteriormente, não se assume como nada mais senão um órgão de cooperação económica, a Global Gateway assume também uma vertente política de promoção dos valores democráticos, em concordância com os valores da UE e em seguimento da perspetiva estratégica UE-China de 2019:

A China é simultaneamente, em diferentes domínios de intervenção, um parceiro de cooperação com o qual a UE tem objetivos estreitamente alinhados, um parceiro de negociação com o qual a UE tem de encontrar um equilíbrio de interesses, um rival económico na corrida para a liderança tecnológica e um adversário sistémico que promove modelos alternativos de governação. Tal exige uma abordagem pan-europeia flexível e pragmática que permita uma defesa de interesses e valores assentes em princípios

– Comissão Europeia, 2019

A UE é, não obstante a sua condição de maior doadora mundial para o desenvolvimento (Ricart & Iglesias, 2022), um parceiro estratégico menos procurado do que a RPC em muitas áreas do mundo. A Global Gateway, pelo seu carácter inerentemente e explicitamente estratégico e pelo facto de constituir uma optimização das iniciativas de investimento da UE, poderá ser fulcral na política externa europeia, de modo a colocar a União e os seus valores em linha com os demais países (Ibidem). Uma ação externa competente e focada traria benefícios para o funcionamento da União e da sua posição enquanto grande poder – se a antiga Ordem Mundial estiver, de facto, a dar lugar a uma nova, então a UE terá de garantir que os seus interesses estratégicos estão assegurados, algo que passa pela Global Gateway e demais projetos de investimento estrangeiro, mesmo que em menor escala; a cooperação económica é apenas o primeiro passo.

Conclusão

A Belt and Road Initiative é o grande pilar estratégico da RPC atualmente – é utilizado para fortalecer e melhorar a imagem diplomática chinesa, tanto para com a comunidade internacional como para os seus atuais e futuros parceiros estratégicos. O megaprojeto económico chinês também tem, ao contrário do que é dito pela sua liderança, objetivos estratégicos e políticos que estão a ser explorados com mestria por parte da RPC. Jogando o jogo duplo de ascensão pacífica e de agressiva expansão diplomática, a RPC consegue fomentar e aproveitar qualquer fenda na atual Ordem Mundial (que por si só já está a sofrer mudanças significativas), além de dar uso a óticas antigas mas sempre relevantes, como colocar os “estrangeiros” uns contra os outros, para alcançar os seus objetivos de hegemonia regional e o rótulo de superpotência mundial. A pandemia da Covid-19 atrasou o progresso diplomático da China, com um sentimento cada vez mais vincado de que a RPC é um “problema” a nível das relações internacionais, assim como também atrasou a BRI e as economias de vários países que dela fazem parte, mas nem por isso podemos considerar que perdeu a sua força.

Face a este impasse, a UE é especialmente vulnerável à ascensão económica da RPC e das repercussões ao nível das relações internacionais que isso poderá trazer: uma Europa dividida, com mais de metade dos seus membros inseridos na BRI e os restantes altamente preocupados com a ameaça chinesa, terá de ser remediada para que a UE consiga permanecer no topo da cadeia diplomática. Será necessária uma resposta interna, com mais apoios em vias de desacentuar a clivagem marcada entre o centro da União Europeia e a sua periferia (onde também está inserido Portugal), para que estes países não tenham de optar entre cooperação económica com a RPC, “um rival” económico e estratégico, ou manter relativamente pura e uniforme a política externa do bloco europeu; por outro lado, será também igualmente necessária uma resposta externa, complementária à interna, que responda não só à BRI como projeto, mas que responda igualmente às necessidades dos países que vêm na BRI um projeto viável para o desenvolvimento do seu país.

Se, seguindo uma ótica realista das relações internacionais – com a realpolitik a ser uma parte tão fundamental das relações internacionais chinesas ao longo dos séculos – podemos afirmar que não existem espaços vazios, apenas poderemos esperar para verificar qual o caminho seguido por estas duas grandes potências, a União Europeia e a República Popular da China: o futuro da Ordem Mundial será influenciada quer a UE prefira abordar os seus problemas internos, externos, ambos ao mesmo tempo ou até nenhum deles, ou quer a RPC passe por uma mudança estratégica ou um contratempo como foi, aliás, o caso com a invasão russa da Ucrânia. Assim, num mundo constantemente em mudança, estes dois blocos dançam em torno da hegemonia; e mesmo que a vitória não esteja decidida para nenhum dos lados, o caminho de ambos já está, de uma maneira ou de outra, traçado.


15 de fevereiro de 2023

Simão Santiago Madeira
EuroDefense Jovem Portugal


Bibliografia:

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NOTA:

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