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Shearer e Liotta (2011) apontam para a existência de um conjunto de condições ambientais e ecológicas essenciais à sobrevivência das espécies humanas e não humanas cujo colapso poderá significar consequências desastrosas. Nesta lógica, exemplifica-se o aumento de “eventos climáticos extremos, o aumento da disputa por recursos naturais limitados, surtos de doenças e infeções virais, a contínua extinção das espécies, a prevalente pressão de troca de comida por combustível, conflitos sociais intensos e muita mais criminalidade” (White & Kramer, 2015, p. 383).

A isto se acrescenta as considerações de Lynch (1990) e White e Kramer (2015) sobre a influência e o papel avassalador e egoísta das sociedades, Estados e empresas capitalistas na exploração indiscriminada e negligente do meio ambiente e no abuso e desrespeito das espécies não humanas. Assim, mais pertinente do que nunca, mediante os riscos ambientais presenciados atualmente e que colocam em causa a subsistência da vida no planeta (Mehta & Merz, 2015), coloca-se a seguinte questão: “quais são os problemas ambientais que poderão ser considerados problemas de segurança?” (Barnett, 2003, p. 7). Cunha (1998) reverte para o conceito de Segurança Ambiental numa lógica de segurança coletiva que visa a colaboração entre Estados, pessoas e instituições, de forma a proteger o ambiente apresentando que a Segurança não se limita a questões militares no sentido restrito da arte de se fazer guerra, abrangendo questões de ameaças gerais que impliquem situações de stresse e perigo para a Humanidade. Assim, o autor define-a enquanto a arte de “limitar os riscos dos impactos negativos sobre o ambiente e as reservas de recursos naturais” (p. 34).

A problemática que envolve o tráfico ilícito de resíduos remete-nos para “o comércio ilegal, transporte e processamento de resíduos por uma ampla gama de atores” (Andreatta & Favarin, 2020, p. 131) violando convenções e legislações nacionais e internacionais, em vigor. Em retrospetiva, ao longo do final do século XX registou-se um aumento substancial na produção de resíduos urbanos[1], impulsionado pelo avanço do consumismo e do capitalismo nos países desenvolvidos (Bonatti, 2015; Morganti et al., 2020). Tal resultou num incremento notável de um número de legislações e políticas, nacionais e internacionais, com o intuito de melhor regulamentar o tratamento e reciclagem destes resíduos, principalmente com a visão de proteção do meio ambiente e diminuição da poluição tendo-se, por isso, verificado, um aumento significativo do custo associado (Liddick, 2010; Marfe & Stefano, 2016; Massari & Mozini, 2004; Pasotti, 2010; Troisi et al., 2023).

Como resposta a este aumento, as nações começaram a exportar os seus resíduos para países em desenvolvimento, onde os custos de tratamento eram inferiores e as regulamentações menos rigorosas (Liddick, 2010) acrescentando Massari e Mozini (2004) que “o custo médio de eliminação de uma tonelada de resíduos perigosos num país ocidental estava entre 100 e 2.000 dólares, enquanto em África era entre 2,50 e 50 dólares”.

Referindo um caso prático, na Itália, vários estudos destacam a região da Campânia como a mais afetada por atividades ilegais relacionadas ao tratamento de resíduos urbanos e industriais tóxicos e de difícil processamento (Marfe & Stefano, 2016; Massari & Mozini, 2004; Mazza et al., 2015). Neste contexto, vários investigadores identificam o “triângulo italiano da morte”, composto pelas cidades/comunas de Acerra, Nola e Marigliano, onde o tráfico de resíduos e a existência de aterros ilegais são tão acentuados que “a terra é agora praticamente inutilizável” (Senior & Mazza, 2004, p. 525).

Efetivamente, Mazza et al. (2015) afirmam que “a avaliação de dioxinas em amostras de leite de ovinos, búfalos e bovinos criados na região da Campânia revelou que cerca de um quarto deles apresentava níveis de dioxinas muito superiores ao limite normal indicado pela Comissão Europeia” (pp. 6819-6820) realçando Costanzo & Ferraro (2013), Massari e Mozini (2004) e Marfe e Stefano (2016), de igual forma, a presença agravada, comparativamente a outras regiões da Itália, de cancros e respetiva taxa de mortalidade e uma diminuição da taxa de natalidade, tal como o aumento de doenças congénitas.

Não obstante, a relação entre a região de Campânia e o tráfico de resíduos teve início na década de 80 do século XX, invocando as práticas da mafia italiana, nomeadamente o grupo Camorra, que, ilegalmente, despejava resíduos de cidades do norte da Itália, França e Alemanha, na referida região, acentuando as desigualdades socioeconómicas já sentidas entre as zonas norte e sul italianas e expondo a fraca regulamentação e preocupação por parte dos políticos italianos (Bonatti, 2015; Pasotti, 2010). Atualmente segundo Germani et al. (2018), na Itália “o tráfico de resíduos tornou-se numa das áreas de crime que mais cresce e uma das indústrias mais lucrativas entre as atividades criminosas organizadas” (p. 42). Adicionalmente, as autoridades italianas têm vindo a apontar para uma maior participação, nesta atividade criminosa, por parte de empresas, organizações e identidades sem qualquer ligação à máfia italiana ou a grupos criminalmente organizados (Germani et al., 2018; Liddick, 2010).

Andreatta e Favarin (2020), mediante a análise de cinco casos judiciais italianos envolvendo a prática do tráfico ilícito de resíduos, desenvolveram um modelo que visa explicar o seu respetivo ciclo (anexo 1) identificando seis fases: (1) a criação, onde os produtores de resíduos produzem documentação falsa para esconder a categoria do resíduo, procuram por traficantes ilegais para a sua disposição a custo reduzido e facilitada ou, por falta de conhecimento sobre a problemática e correspondente ilegalidade, contactam atores ilícitos; (2) a recolha, na qual as empresas de recolha coletam resíduos de forma ilícita ou, sob qual não possuem domínio e permissão de transporte, repassando-os a outras empresas e agentes; (3) o armazenamento, com a implementação de instalações empresariais em locais onde a regulamentação é limitada podendo incluir o uso de documentos falsificados; (4) o tratamento, que compreende a falsificação de declarações relacionadas à reciclagem e tratamento aplicados; (5) o transporte, onde é incluído o uso de documentação falsificada para transpor fronteiras; e (6) o descarte e o reuso, maioritariamente realizados em zonas transfronteiriças, onde também são comprados resíduos transformados para outros tipos de utilidades ilícitas.

Terminando numa nota positiva, de modo a prevenir o fenómeno e a sua atratividade, Troisi et al. (2023) sugerem, (1) a redução das taxas e custos associados à indústria, (2) o aumento das consequências jurídicas para os ofensores e (3) uma consciencialização para uma economia verde com interesse sobre o bem-estar do meio ambiente especialmente, nas comunidades periféricas aos locais de tratamento de resíduos. Ademais, Liddick (2010) e Morganti et al. (2020), salientam a relevância crucial da harmonização da legislação internacional no tratamento de resíduos uma vez que, à medida que a regulamentação e os custos nos países desenvolvidos aumentam, cresce a atratividade da exportação ilegal para países em desenvolvimento, onde as leis são menos rigorosas e os custos de tratamento são mais baixos.

[1] Segundo Morganti et al. (2020), “prevê-se que a produção de resíduos atinja 27 mil milhões de toneladas até 2050, causando múltiplas preocupações centradas principalmente na necessidade de uma eliminação eficaz” (p. 105).


21 de março de 2024

Beatriz Barqueiro
EuroDefense Jovem-Portugal


Referências (Estilo APA)

Andreatta, D., Favarin, S. (2020). Features of transnational illicit waste trafficking and crime prevention strategies to tackle it. Global Crime, 21(2), 130-153. DOI: 10.1080/17440572.2020.1719837

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Bonatti, V. (2015). Mobilizing around Motherhood: Successes and Challenges for Women Protesting against Toxic Waste in Campania, Italy. Capitalism Nature Socialism, 26(4), 158-175. DOI: 10.1080/10455752.2015.1025233

Costanzo, G., Ferraro, S. (2013). The Landfill in the Countryside: Waste Management and Government of the Population in Campania. Capitalism Nature Socialism, 24 (4), 17–28. http://dx.doi.org/10.1080/10455752.2013.851261.

Cunha, L., V. (1998). Segurança Ambiental e Gestão dos Recursos Hídricos. Nação e Defesa, 86(2), 27-50.

Germani, A., R., Pergolizzi, A, Reganati, F. (2018). Eco-mafia and environmental crime in Italy Evidence from the organised trafficking of waste, In T. Spapens, R. White, D. van Uhm & W. Huisman (eds.), Green Crimes and Dirty Money (pp. 42-71). Routledge.

Liddick, D. (2010). The traffic in garbage and hazardous wastes: an overview. Trends in Organized Crime, 13, 134-146. https://doi.org/10.1007/s12117-009-9089-6.

Lynch, M. (1990). The Greening of Criminology: A Perspective on the 1990s. Critical Criminologist, 2(3), 3-4.

Marfe, G., Stefano, C. (2016). The evidence of toxic wastes dumping in Campania, Italy. Critical Reviews in Oncology/Hematology, 105 (2016), 84-91. http://dx.doi.org/10.1016/j.critrevonc.2016.05.007.

Massari, M., Monzini, P. (2004). Dirty Businesses in Italy: A Case-study of Illegal Trafficking in Hazardous Waste. Global Crime, 6(3), 285-304. DOI: 10.1080/17440570500273416

Mazza, A., Piscitelli, P., Neglia, C., Rosa, G., Iannuzzi, L. (2015). Illegal Dumping of Toxic Waste and Its Effect on Human Health in Campania, Italy. International Journal of Environmental Research and Public Health, 2015 (12), 6818-6831. doi:10.3390/ijerph120606818

Mehta, S., Merz, P. (2015). Ecocide – a new crime against peace? Environmental Law Review, 17(1), 3–7. doi: 10.1177/1461452914564730

Morganti, M., Favarin, S., Andreatta, D. (2020). Illicit Waste Trafficking and Loopholes in the European and Italian Legislation. European Journal on Criminal Policy and Research, 26, 105–133. https://doi.org/10.1007/s10610-018-9405-2.

Pasotti, E. (2010). Sorting through the Trash: The Waste Management Crisis in Southern Italy. South European Society and Politics, 15 (2), pp. 289-307. DOI: 10.1080/13608740903497733

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Troisi, R., de Simone, S., Franco, M. (2023). Illegal firm behaviour and environmental hazard: The case of waste disposal.

White, R., Kramer, R., C. (2015). Critical Criminology and the Struggle Against Climate Change Ecocide. Critical Criminology, 23, 383.-399. https://doi.org/10.1007/s10612-015-9292-5.

Anexo 1:

Destaque das principais conclusões relativas ao funcionamento do esquema envolvendo o tráfico ilícito de resíduos (Andreatta e Favarin, 2020)

Figure 1. Outline of the main findings regarding the functioning schemes of IWT in Italy.

Note: The white boxes indicate the legal dynamic of waste trafficking, whereas the grey boxes represents the illicit activity.


NOTA:

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