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A defesa da Europa e do seu modo de vida só se consolidará se soubermos resistir a uma qualquer precipitada militarização da União Europeia e reforçarmos, ao invés, os nossos laços euroatlânticos, através da NATO, enquanto Aliança de Estados-nação, mais robusta e recentrada no seu sentido original: a proteção do Ocidente

Uma das consequências mais impressivas da atual guerra na Ucrânia é o regresso de Marte, o velho Deus da guerra, ao imaginário da nossa Europa. É que nos últimos anos os europeus consideravam-se adoradores de Vénus: apenas paz e amor. E subitamente, nos idos de março, a Europa da paz perpétua, do conforto do Estado-providência, teve um sobressalto e, em nome da liberdade e dos valores do Ocidente, os europeus são confrontados pelos seus líderes com a inevitabilidade de construir uma Europa à defesa.

Quando, em 2017, Michael Burleigh publicou o seu livro Uma História do Presente considerava a Europa como um império de virtudes, terra de regras, de paz e de comércio, no seio do que designou o melhor e opior dos mundos. Não o império da virtude, por contraposição a um qualquer império do vício, mas um império das clássicas virtudes liberais: o Estado de Direito, os direitos fundamentais, o pluralismo político, a tolerância social, a defesa da liberdade. Afinal, uma Europa sem fronteiras, territórios ou identidades. Uma verdadeira utopia. Um império do direito e da liberdade face aos impérios da força da opressão.

Estava-se, nesse tempo, muito longe de imaginar o pesadelo que estamos a viver. De repente, do nada que é tudo, como dizia Pessoa, a guerra irrompe e de imediato se anunciam aos quatro ventos, e sem qualquer critério ou sentido crítico, investimentos em armas e outros sistemas sofisticados de defesa e ataque.

Como, com que meios, estruturas e resultados imediatos? Quem assumirá os custos desses investimentos, quem gerirá a nova força? Os Estados nacionais, a União Europeia, uma nova entidade? Ninguém diz. Recorde-se que, atualmente, a Europa, no seu conjunto, já gasta muitas vezes mais em defesa que a Rússia ou a China. Será ainda conveniente recordar que a Europa não deixou de ter as suas usuais prioridades orçamentais com o bem-estar presente e o futuro dos europeus.

Claro que a guerra na Ucrânia é o acontecimento impactante do momento, mas esta guerra não é um cisne negro, o totalmente inesperado. Devemos, por isso, evitar a pressão da espuma dos dias, ainda que chocante e inaceitável, ceder à pressão das redes sociais ou aos lobbies das indústrias de armamento. É preciso que, perante a urgência da crise, não nos precipitemos em anúncios oportunistas, no abuso das “linhas vermelhas” grandiloquentes, a que todos os políticos gostam de aludir. É necessário que, da pretensa unidade em torno das políticas de segurança e defesa, não se passe rapidamente à desintegração e à desilusão. É fundamental que haja bom senso e tempo para a devida ponderação, decidindo à margem do efémero. Até porque os investimentos em defesa de hoje só servirão para evitar ou combater as guerras de amanhã.

Depois é incontornável não esquecer que a vocação do atual projeto europeu, hoje consubstanciado na União Europeia, nunca foi a guerra, mas assegurar a paz depois da última grande guerra. Aliás, no início do atual projeto europeu, ainda se tentou criar uma União Europeia de Defesa, mas esta nunca chegou a avançar, com a NATO a consolidar-se, desde então, como a União militar do Ocidente. Ou seja, e usando as expressões cunhadas por Joseph Nye, a União Europeia sempre foi um projeto de soft power, ficando o hard power a cargo da NATO.

É certo que, hoje, em vez do fim das fronteiras e das identidades, assistimos à reterritorialização da política internacional, ao regresso das identidades, ao regresso dos impérios. E serão os impérios, e não as civilizações, a conferirem sentido à geopolítica. Isto é, em vez da hiperdemocracia à escala planetária, com o inerente fim da História, assistiremos a um verdadeiro e permanente choque de impérios. Vivemos, ainda que muitos não o queiram admitir, na transição para uma nova ordem dos impérios, poliárquica e multipolar.

Nesse confronto será bom que reine a paz, será bom que a Europa continue a ser considerada um império das virtudes. Tal desiderato implica preservar uma Europa da orientalização. Evitar uma Eurásia dominada pela Rússia ou uma Eurásia dominada pela China. Tal suporá também ultrapassar a utopia pós-nacional de tentar impor pela força, a outros espaços geopolíticos, o nosso modelo e, sim, com maior ou menor autonomia estratégica, preservá-lo ou, eventualmente, conseguir ampliá-lo pela persuasão e pelo bom exemplo.

Ou seja, a defesa da Europa e do seu modo de vida só se consolidará se soubermos resistir a uma qualquer precipitada militarização da União Europeia e reforçarmos, ao invés, os nossos laços euroatlânticos, através da NATO, enquanto Aliança de Estados-nação, mais robusta e recentrada no seu sentido original: a proteção do Ocidente.

E, por fim, quando o velho deus pagão, Marte, regressa ao solo europeu, não devemos esquecer as recentes palavras do Papa Francisco: “Deus é só o Deus da paz, não da guerra, e quem apoia a violência profana o seu nome”.


6 de abril de 2022

José Conde Rodrigues 

Presidente do Movimento Europeu em Portugal

Este artigo foi publicado no dia 06 de abril no jornal expresso em: https://expresso.pt/opiniao/2022-04-06-A-Europa-a-defesa-2a4a5dd7

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