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A Europa e a Ásia Central: o caso de aproximação ao Cazaquistão no contexto de uma Europa de Leste beligerante

Uma ex-república soviética fronteiriça com a Rússia, o Cazaquistão inclui dentro das suas fronteiras cerca de três milhões de pessoas de etnia russa, para além de ser um dos aliados mais antigos da Federação Russa. Mas isto não impediu o Cazaquistão de rejeitar um apoio à “operação militar especial” desencadeada pela Rússia na Ucrânia[1].

Ultimamente, anúncios “claramente dirigidos a cazaques” publicitam a promessa de um pagamento direto e imediato de 495 mil rublos (aproximadamente 4800 euros) àqueles que assinassem um contrato com o exército russo, para além de um salário mensal de não menos que 190 mil rublos (cerca de 1850 euros) e de benefícios adicionais mais vagos. Surgidos como pop-ups de utilização da internet, o carregamento nos mesmos leva a um website que oferece a recrutas potenciais a possibilidade de se juntarem ao exército russo a partir da região russa de Sakhalin, já perto do Japão. A lei cazaque proíbe a participação de nacionais em conflitos militares no estrangeiro[2]. Segundo a Reuters, residentes de outras repúblicas ex-soviéticas afirmam que os alguns dos seus compatriotas têm-se juntado ao exército russo ou a aglomerados militares privados russos como o Grupo Wagner[3].

Estas ações digitais feitas pela Rússia têm vindo a ser descritas como uma maneira de o país obter fontes adicionais de recrutamento de soldados, num contexto de uma contraofensiva ucraniana notoriamente eficiente e face ao risco de enfurecer o povo russo com um possível reforço do exército a lutar de um dos lados do conflito russo-ucraniano[4].

A Rússia, tal como a China, os Estados Unidos da América (EUA) e a União Europeia (UE), tem vindo a dominar a Ásia no sentido da prossecução de interesses, embora claramente excecionais relativamente às outras três potências, norteados por táticas clássicas de “dividir e dominar”. O maior país do mundo em extensão territorial (Rússia) tem tentado conservar a sua presença na região através da iniciativa na formação de alianças económicas e de segurança: o Tratado de Segurança Coletiva, assinado a 15 de Maio de 1992 pela Arménia, Cazaquistão, Quirguistão, Rússia, Tadjiquistão e Uzbequistão (o Azerbaijão, a Bielorrússia e a Geórgia aderiram no ano seguinte); a União Económica Eurasiática (UEE), assinado a 29 de Maio de 2014 pela Rússia, Bielorrússia e Cazaquistão[5].

Em Outubro de 2022, o Presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, realizou a sua primeira visita oficial à capital do Cazaquistão, Astana, para participar numa cimeira com os chefes de estado do Cazaquistão, do Quirguistão, do Tajiquistão, do Turquemenistão e do Uzbequistão A referência a essa cimeira como “mais do que um simples diálogo entre duas regiões”, regiões essas que estariam “cada vez mais próximas” e “cada vez mais ligadas”, traduz uma reivindicação do reforço da cooperação entre a UE e a Ásia Central[6].

Ainda em Junho deste ano, o Presidente alemão Frank Walter Steinmeier realizou uma visita de estado ao Cazaquistão, mais concretamente de dia 19 a 21 de Junho. A Alemanha aparenta ser mais um país revelador de um interesse crescente da Europa pelo Cazaquistão e o resto da Ásia Central. Na verdade, a União Europeia (EU), ou uma parte significativa dos países que a constituem, associa-se a esta viagem no âmbito de uma tentativa internacional de contenção de países como a China e a Rússia[7].

Durante a visita, os representantes dos dois países, certamente com uma participação importante dos chefes de Estado e dos ministros dos negócios estrangeiros da Alemanha e do Cazaquistão, discutiram assuntos relacionados com a política, a economia (nomeadamente o comércio e a cooperação económica), a ciência e a educação, sendo que as discussões políticas se terão centrado na Guerra Russo-Ucraniana, nas sanções aplicáveis à Rússia e nas relações do Cazaquistão com a UE e a China. A parte da economia também deve ter sido tratada com recorrência, visto que mais que oitenta por cento do comércio exterior alemão com a Ásia Central provem do Cazaquistão[8]. O Presidente Tokayev chegou a convidar empresas alemãs a investirem em energia verde, pelo que os presidentes dos dois países saudaram o início da construção de uma usina capaz de produzir hidrogénio verde, a ser implementada pela empresa germano-sueca Svevind Energy. Para além disso, também foi salientada o desejo de desenvolver uma cooperação mútua mais sólida na exploração da indústria mineira[9].

Pelo menos três fundamentos podem ser apontados para a recente intensificação do envolvimento dos países europeus, à margem ou pela voz da UE, em direção a uma maior cooperação transfronteiriça entre a Europa mais integrada e a Ásia Central.

O primeiro é a pretensão da UE em tornar-se num importante jogador geopolítico capaz de competir com os EUA, a China e a Rússia, deixando de chamar aos países da Ásia Central simples “vizinhos dos seus vizinhos”. Daí que a UE tenha feito questão de incluir a Ásia Central na lista dos destinatários da Política Europeia de Vizinhança (PEV)[10], o “quadro de política externa que visa aproximar a EU e os seus vizinhos orientais e meridionais dos seus benefícios e interesses mútuos”, lançado em 2004[11]. Em 2015, a PEV foi revista, por iniciativa da Alta Representante e pela Comissão Europeia, no sentido de introdução de propostas de “formas de criar parcerias mais eficazes na vizinhança”, acrescentando três prioridades comuns de cooperação: o desenvolvimento económico para a estabilização; a segurança; a migração e mobilidade[12]. Contudo, tanto a crescente afirmação da Rússia e da China como a crescente perceção relativa à importância das diferenças de objetivos daqueles dois estados impuseram à UE uma reformulação da sua política externa. Aqui chegamos a 2019, aquando da adoção da Nova Estratégia Para a Ásia Central, que é considerada uma política pública mais pragmática e resiliente do que a anterior. A Nova Estratégia Para a Ásia Central introduz mudanças na Estratégia Global Para a Política Externa e de Segurança, apresentada em Junho de 2016, nomeadamente pelo reconhecimento da geopolítica como um fator não menos que essencial da política externa da UE no século XXI[13].

O segundo fator é a satisfação das ambições geoeconómicas da UE por meio da intensificação da cooperação com a Ásia Central e com o fim de aumentar a conectividade euro-asiática. Esta ideia de conectividade intercontinental traduz-se no aumento de infraestruturas (materiais e não-materiais) pelas quais bens, pessoas, ideias e serviços podem circular livremente. Foi já na Estratégia da Ásia Central de 2007 que a UE estabeleceu como prioridade o estabelecimento de ligações de transporte e energéticas entre as duas regiões, tendo reforçado essa pretensão no final de 2018, com atualizações que consideraram a necessidade de incrementar a conectividade digital. Revelando mais atenção para as caraterísticas particulares de cada país ásio-central, incluindo o Cazaquistão, a UE demonstrou intenções em reforçar relações bilaterais baseadas nas Enhanced Partnership and Cooperation Agreement (EPCA) em detrimento de abordagens mais regionais e gerais[14]. Este tipo de relação é definido como uma “estrutura legal destinada à cooperação em áreas como a segurança no espaço, no combate à proliferação de armas de destruição maciça, no combate ao terrorismo, no diálogo entre administrações públicas, nas alterações climáticas, nos cuidados de saúde, na gestão das finanças públicas, na tributação, entre outros”[15]. Uma dessas parcerias já foi assinada com o Cazaquistão (no final de 2015), tendo entrado em vigor em Março de 2020[16]. Na segunda metade de 2021, a Presidente da Comissão Europeia Ursula Von Der Leyen declarou que a EU iria mobilizar mais que 300 bilhões de euros de investimentos na Estratégia Global Gateway 2021-2027, que pode ser entendida mais como resposta à Iniciativa da Rota da Seda chinesa do que propriamente uma resposta às pegadas da Rússia na Ásia Central. A Estratégia Global Gateway 2021-2027 é apresentada como o “contributo da EU para reduzir o défice global de investimento a nível mundial” e como consequência de um compromisso estabelecido pelos líderes do G7 de “lançar uma parceria de infraestruturas baseadas em valores, transparente” e capaz de responder a “padrões elevados, a fim de satisfazer as necessidades mundiais em matéria de desenvolvimento de infraestruturas”[17].

O terceiro fator é a ambição da EU em fortalecer a cooperação em segurança nos estados da Ásia Central. A Estratégia Global Para a Política Externa e de Segurança afasta um reconhecimento explícito de “estados democráticos bem-governados” enquanto a “melhor proteção para” a “segurança” europeia, presente na Estratégia Europeia de Segurança elaborada em 2003, pois a disseminação de boa governança e democracia não corresponderam às expetativas dos autores dessa Estratégia do início deste século. Mais profundamente, a erupção de crises resultantes da ausência de governos qualificados e democráticos demonstrou que a UE não apresentava sempre a vontade e a capacidade necessárias para implementação e disseminação desses dois valores. Isto pode ser visto como um regresso ao Realpolitik, ao realismo puro nas relações internacionais que o liberal alemão oitocentista Ludwig Von Rochau sugeriu para identificar um conceito de convergência de uma rejeição do utopianismo liberal e uma aderência a valores liberais. Trata-se de ser realista quanto aos meios para atingir os fins, que andam em torno da promoção do liberalismo. A Estratégia Global Para a Política Externa é clara quanto a um “envolvimento responsável” que seja a origem de uma “mudança positiva”. Aqui, a UE finalmente é clara quanto à necessidade de defesa de interesses, reconhecidos como a base da política[18].

O “pragmatismo de princípios” coloca, portanto, a segurança, a vizinhança e o hard power à frente de ênfases na democratização. A segurança recebeu mais atenção nestas políticas públicas, principalmente no que toca às fronteiras e à gestão da crise dos refugiados e do impacto do terrorismo, enquanto a vizinhança derivou mais do aproveitamento das capacidades de influência da UE (“Há uma conceção direta entre a prosperidade europeia e a segurança asiática”). Há um destaque menos claro para a promoção da democracia, havendo um maior foco na preservação da estabilidade dos regimes do que propiamente na sua alteração (referida comummente como “mudanças de regime”), algo que pode ser realizado com a ajuda no fortalecimento da sociedade divil desses países, nomeadamente através do combate à pobreza e à desigualdade[19]. Por último, há uma preocupação mais expressa com a titularidade de meios militares credíveis, derivada de uma perspetiva de promiscuidade entre o soft power e o hard power e de observações que denotam a disponibilidade das potências em usarem a força e a chantagem para atingir objetivos geopolíticos[20].

Na atualidade, é muito conveniente para a prossecução da paz mundial que as potências mundiais consideradas titulares de boas intenções e projetos funcionais consigam demonstrar interesse em países que se revelam, por vezes, indecisos nos lados que escolhem. Os países da Ásia Central são um exemplo de necessidade de atenção por parte daqueles que afirmar querer atingir uma paz duradoura, nas quais os interesses sejam os mais homogéneos possíveis. Se a UE conseguir conjugar aqueles três fatores, pode ter sucesso no afastamento daqueles que consideram mais perigosos para a paz mundial.


02 de outubro de 2023

Lourenço Pinto Ribeiro
EuroDefense Jovem Portugal


[1] https://english.alarabiya.net/News/world/2023/08/03/Russia-targets-neighbor-Kazakhstan-with-army-recruitment-ads-amid-Ukraine-conflict

[2] Ibidem

[3] https://news.yahoo.com/russia-turns-kazakhstan-desperately-tries-163400549.html

[4] Ibidem

[5] https://thediplomat.com/2022/11/what-explains-growing-european-engagement-in-central-asia/

[6] Ibidem

[7] https://thediplomat.com/2023/06/kazakhstan-and-germany-dissecting-president-frank-walter-steinmeiers-visit/

[8] https://www.akorda.kz/en/kassym-jomart-tokayev-and-frank-walter-steinmeier-hold-negotiations-in-extended-format-205383

[9] Ibidem

[10] https://thediplomat.com/2022/11/what-explains-growing-european-engagement-in-central-asia/

[11] https://www.eeas.europa.eu/eeas/european-neighbourhood-policy_en?etrans=pt

[12] Ibidem

[13] https://thediplomat.com/2022/11/what-explains-growing-european-engagement-in-central-asia/

[14] Ibidem

[15] EUROACTIV Research. (n.d.). EU-kazakhstan on the move – en.euractiv.eu. https://en.euractiv.eu/wp-content/uploads/sites/2/special-report/EU-Kazakhstan-on-the-move-_-Special-Report-1-1.pdf 

[16] https://www.consilium.europa.eu/pt/documents-publications/treaties-agreements/agreement/?id=2015045

[17] https://commission.europa.eu/strategy-and-policy/priorities-2019-2024/stronger-europe-world/global-gateway_pt

[18] Págs. 1-2, Biscop, S. (2015a). The EU Global Strategy: Realpolitik with European Characteristics – CORE. https://core.ac.uk/download/pdf/84598547.pdf 

[19] Pág. 2, Ibidem

[20] Pág. 3,  Ibidem


NOTA:

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