“Making peace with nature is the defining task of the 21st century”
Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres, 2020
1. Introdução
Em 2019, em vésperas da Conferência das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas (COP25), o Secretário-Geral António Guterres apelou, pela primeira vez, ao fim da “guerra contra a natureza”. Em 2020, reforçou o apelou, afirmando que a humanidade está a cometer um “ato de suicídio”. Neste ano classificou a crise climática como um “cavaleiro do apocalipse”, que inviabiliza o cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, e ainda alertou que “não há vacina para o aquecimento do planeta”. Em 2021, no Dia Mundial do Ambiente (5 junho), referiu que o mundo está a aproximar-se “de um ponto sem retorno”, no qual a “degradação da natureza já está a comprometer o bem-estar de 3,2 mil milhões de pessoas” (40% da Humanidade).
Para efeitos de clareza, note-se que a expressão “guerra contra a natureza” remete para dois significados: quer para a utilização abusiva humana dos recursos naturais finitos, em detrimento da utilização sustentável dos recursos; quer para a mobilização de esforços para reverter a situação ambiental corrente. Este artigo incide sobre o primeiro significado, tendo como objetivo explorar, de forma sintética, a relação entre as alterações climáticas e os conflitos internacionais. Iniciamos com um breve enquadramento político sobre a problemática e terminamos, como informação complementar, com uma nota sobre a situação em Portugal e a abordagem da Defesa Nacional.
2. Enquadramento político
A discussão sobre o ambiente nas agendas políticas e diplomáticas remonta ao pós Segunda Guerra Mundial, a 1949, com a realização da primeira Conferência Científica da ONU sobre a Conservação e Utilização de Recursos. Todavia, é a partir da década de 1970, com o desenvolvimento da green politics e da globalização, que se assiste a um crescido interesse sobre as questões ambientais e a escassez de recursos, como evidencia a realização da Conferência de Estocolmo (1972) (ONU) e da primeira reunião do Conselho Europeu sobre esta matéria (Paris, 1972), que marca o início da política ambiental europeia. Na década de 1980, em virtude do trabalho pioneiro de Barry Buzan, “People, States and Fear” (1983), o ambiente é definido como uma nova ameaça à segurança dos estados, além das ameaças militares, e em finais da década de 1990, segundo Bjola e Kornprobst (2018), contavam-se mais de 200 tratados internacionais relativos ao ambiente, reforçados na década seguinte com a adoção do Protocolo de Quioto (2005) e do Acordo de Paris (2015).
A Lei Europeia do Clima, aprovada durante a Presidência Portuguesa do Conselho da União Europeia (PPUE) (2021), que se compromete alcançar a neutralidade carbónica em 2050, confirma a atualidade da problemática, alertando para a urgência no combate. As alterações climáticas não são apenas um discurso, mas uma evidência científica: as atividades humanas, como a queima de combustíveis fósseis e a exploração intensiva dos recursos naturais, constituem as principais causas da concentração de Gases com Efeito de Estufa (GEE) que provocam as alterações climáticas, isto é, a ocorrência de fenómenos meteorológicos extremos, cada vez mais frequentes e gravosos, tais como o aumento da temperatura média anual; o degelo acelerado das calotes polares; secas; perda de biodiversidade; chuvas torrenciais; cheias; incêndios; ciclones; tufões…etc. As manchetes em 2021, apenas, são evidentes da emergência climática:
Janeiro: “Imagens da NASA mostram que as alterações climáticas são reais”
Fevereiro: “Novo estudo indica que alterações climáticas podem ter impulsionado aparecimento do vírus”
Março: “Green Deal: a corrida europeia para alcançar a neutralidade climática em 2050”
Abril: “Estudo conclui que só 2% a 3% do planeta permanece ecologicamente intacto”
Junho:
“Alterações climáticas podem gerar perdas económicas superiores às da Covid-19, alertam especialistas”
“Crianças do presente enfrentam alterações climáticas drásticas”
“Alterações climáticas matam quase 200 pessoas por ano em Portugal”
Julho:
“Onda de calor. Canadá regista temperatura recorde de 46 graus”
“A onda de calor que aquece o Canadá já cozeu mil milhões de mexilhões”
“O aquecimento global secou o Sul de Madagáscar: “Não há comida”
“Já quase não se vê água na Califórnia. É a pior seca desde 1977”
“Calor extremo nos EUA: Vale da Morte da Califórnia chega aos 54,4°C”
“Portugal pode ter mais de 85 mil mortes só por causa do calor em 2100”
“Último mês foi o Junho mais quente de sempre na América do Norte e o segundo na Europa”
“The climate crisis will create two classes: those who can flee, and those who cannot”
“Extreme temperatures kill 5 million people a year with heat-related deaths rising, study finds”
Este panorama global tem impactos em diversos setores, desde a agricultura, a biodiversidade, passando pela economia e a saúde, até à segurança.
3. As alterações climáticas e os conflitos internacionais
“É claro que com os países mais frágeis, e já com situações de confrontos armados, o impacto das alterações climáticas acelera a instabilidade, a segurança alimentar e gera migrações de larga escala. Nalguns casos, as alterações climáticas podem impulsionar sociedades e estados para uma espiral de violência.”
Cândida Pinto, abertura da mesa redonda “Alterações Climáticas e Conflitos”
Conferência “Ação Climática – Desafios Estratégicos”,
Secretaria-Geral do Ambiente (2020)
O debate sobre as alterações climáticas e os conflitos enquadra-se num nexus mais amplo, relativo à relação entre clima e segurança que integra várias dimensões: clima-escassez de recursos; clima-energia; clima-migrações ou clima-conflitos/violência/terrorismo (Asaka, 2021; UE, 2008). De acordo com a Professora Ana Santos Pinto, na conferência “Ação Climática – Desafios Estratégicos” da Secretaria-Geral do Ambiente (2020), há uma linha de argumentação que “defende que as alterações climáticas não provocam conflitos, mas exacerbam os conflitos já existentes”. Ou seja, tal como indica a ONU, atuam como um multiplicador de riscos e desafios: em sociedades vulneráveis, com fracos mecanismos de governação, desigualdades a nível político-económico, ou com um histórico de conflitualidade, os efeitos das alterações climáticas reforçam a competição por recursos, alimentando as tensões socioeconómicas, a violência, o extremismo violento ou o terrorismo. Aliás, recentes estatísticas apontam que 70% dos países mais vulneráveis ao clima estão entre os mais frágeis política e economicamente”, o que pode potenciar deslocamentos em massa, levando ao aparecimento de “refugiados climáticos”, cujo estatuto não está previsto no Direito Internacional Humanitário ou Ambiental.
Do ponto de vista empírico, refere a Professora, “dos 20 países mais vulneráveis às alterações climáticas, pelo menos 12 estão em conflito”, apontando os casos do Afeganistão, Iémen, Mali, República Democrática do Congo, Somália, Sudão e ainda do Darfur, considerado em 2017 “como o primeiro conflito resultante das alterações climáticas” por Ban Ki-Moon. As Nações Unidas atestam também que, por exemplo, “as secas em África e na América Latina estão diretamente relacionadas com a violência e a agitação política”. O elo central entre estes países é a inexistência de mecanismos estatais fortes que consigam responder, de forma adequada, à crise climática.
4. Portugal, alterações climáticas e a Defesa Nacional
Portugal não está incluído no grupo dos países vulneráveis, ou em risco de conflito. Aliás, em 2020, foi o estado-membro da UE mais próximo de atingir as metas climáticas para 2030 no âmbito das emissões de GEE, porém não é imune às mudanças ambientais. Em 2018, a FFMS enunciou um conjunto de consequências alarmantes e, em 2020, um estudo da Universidade de Aveiro concluiu que os países da Península Ibérica serão dos mais afetados com o aquecimento global: os investigadores alertam para um “aumento muito preocupante”, estimando “três meses por ano onde as temperaturas máximas diárias poderão estar acima de 40ºC.” Estudos científicos portugueses estimam ainda que, em 2050, “o nível do mar terá subido cerca de 30 centímetros e afetará 150 mil residentes que vivem em zonas costeiras vulneráveis”. Setúbal será o distrito mais afetado, mas Lisboa, Faro e Aveiro contam com prognósticos preocupantes.
As alterações climáticas são, pois, uma preocupação transversal a todas as áreas governativas, como a Defesa Nacional. O último Conceito Estratégico de Defesa Nacional (CEDN) (2013) enumera diversos riscos ambientais – i.e. alterações climáticas; ocorrência de ondas de calor e de frio; alterações no ecossistema, terrestre e marítimo – caracterizando-os como potenciais ameaças à segurança nacional. Porém, salienta a necessidade de melhoria na prevenção destes fenómenos que, aliás, são uma preocupação desde o fim da Guerra Fria. “Uma Defesa Nacional empenhada num amanhã sustentável e preparada para os desafios futuros” é a principal missão da Diretiva Ambiental para a Defesa Nacional (2020), que atualiza a primeira Diretiva aprovada em 2011, complementando os esforços iniciados em 1993, com a criação e Prémio anual de Defesa e Ambiente; e do Núcleo de Estudo de Assuntos Ambientais (NEAA).
Na conferência “Impactos Sociais, Políticos e Ambientais das Alterações Climáticas” do Instituto da Defesa Nacional (2021), o Ministro João Gomes Cravinho enfatizou que estes fenómenos “exigem de nós uma capacidade de previsão, planeamento, e de resposta diferentes”, e que a Defesa Nacional está empenhada no seu combate, operando na “lógica da salvaguarda operacional das Forças Armadas”, através de duas dimensões: a mitigação, que pretende “melhorar a sustentabilidade ambiental da Defesa”; e a adaptação, quer no âmbito da doutrina quer operacional. Este esforço deve ser efetuado em cooperação com aliados, parceiros, e organizações internacionais, com destaque para as Nações Unidas e a NATO.
5. Nota final
A prevenção e o combate às alterações climáticas depende da implementação de estratégias nacionais centradas numa abordagem multilateral e em consonância com os princípios do Direito Internacional, adaptadas aos riscos e vulnerabilidades de cada estado. Prevê-se que a COP 26, agendada para outubro-novembro de 2021, na Escócia, reforce esta narrativa, abordando também as consequências da Covid-19.
Joana Araújo Lopes é Doutoranda em “História, Estudos de Segurança e Defesa” no Iscte. É bolseira da FCT e trabalha numa tese sobre o contraterrorismo em Portugal e Espanha, no contexto da União Europeia (2004-2020). É Mestre em Ciência Política e Relações Internacionais pela Universidade NOVA de Lisboa (2017). Trabalhou como estagiária na Embaixada Americana em Lisboa (Assuntos Consulares), no Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) (Direção-Geral de Política Externa) e no Instituto da Defesa Nacional (IDN). Os seus principais interesses de investigação incidem sobre a segurança internacional, o terrorismo, o contraterrorismo, a radicalização, o extremismo violento e a diplomacia.