Avançar para o conteúdo
A “guerra do alecrim e da manjerona”: a lamentável “crise dos submarinos” da Austrália

Uma clarificação acerca dos meandros do mercado de defesa

Quem trabalhou mais de trinta anos nos meandros de opacidade e pouca transparência da chamada “cooperação de equipamentos e tenologias militares”, tanto no âmbito da NATO como da União Europeia (UE), conhece perfeitamente como a vontade política dos Estados e as suas políticas externas se subordinam e adaptam aos interesses económicos, tecnológicos e industriais em jogo, para que as suas bases tecnológicas e industriais de defesa tirem o maior proveito possível resultante dessa “cooperação”. A “confidencialidade” é a alma do negócio! Numa democracia ocidental liberal, esta política está mais orientada para assegurar empregos qualificados e desenvolvimento económico de cada país, que são o garante de votos eleitorais em que o conceito básico de democracia assenta. É por isso que a tão almejada cooperação de defesa para o desenvolvimento conjunto das capacidades militares prioritárias de curto, médio e longo prazos, em função da dinâmica dos desafios e ameaças comuns identificados, só muito ocasionalmente ou por mero acaso acontece.

Durante o longo processo de desenvolvimento, produção, qualificação, certificação e aceitação de um grande e complexo sistema de armas, como é um submarino da última geração, é natural que sejam introduzidas alterações nos requisitos operacionais e técnicos iniciais, em virtude de alterações geopolíticas e tecnológicas, que provocarão o “deslizamento” dos cronogramas temporais e da data de entrega do produto final, com os consequentes aumentos de custos.

Submarino da classe-Collins da Marinha de Guerra da Austrália – 2006

A fórmula de cálculo do custo final do de um grande sistema de armas, é uma equação complexa com imensas variáveis que só estará finalizada com a entrega e aceitação final do produto.   A juntar a esta complexidade natural, deve-se incluir o princípio da confidencialidade constante do respetivo contrato de aquisição, que perdurará durante vários anos ao longo do seu ciclo de vida. Portanto, falar em custos do negócio dos submarinos, ainda na sua fase muito inicial, é sempre prematuro, arriscado, subjetivo e sujeito a várias interpretações. Normalmente, por sistema, devemos esperar sempre uma “derrapagem” crescente dos montantes inicialmente acordados.

Os problemas e obstáculos a uma real e efetiva cooperação de defesa no desenvolvimento de capacidades militares essenciais, são hoje muito idênticos aos dos anos 80s do século passado, às vezes disfarçados com roupagens diferentes. Muito pouco ou nada se avançou, apesar das muitas promessas declaratórias e tentativas efetuadas. Isto porque, de uma forma geral, os países dão mais prioridade aos seus interesses individuais do que aos interesses coletivos.

A perpetuação desta situação ao longo do tempo, tem conduzido à falta de uma verdadeira “cultura de cooperação de defesa europeia”, onde se não aproveitam as sinergias e as economias de escala proporcionadas pela cooperação, mas antes provocando grandes distorções no mercado europeu de defesa, devido aos protecionismos nacionais que originam fragmentação, duplicações, ineficiências e falta de interoperabilidade. Uma maior e melhor cooperação intereuropeia em relação ao investimento em defesa poderia proporcionar uma poupança da ordem de €30-50 mil milhões/ano[1], que poderiam ser direcionados para o desenvolvimento das capacidades militares comuns críticas necessárias.

Admite-se que os novos instrumentos financeiros e mecanismos incentivadores e promotores das virtudes da cooperação de defesa europeia, criados na UE a partir de 2016/2017, tais como o Plano de Desenvolvimento de Capacidades (CDP), a Revisão Anual Coordenada de Defesa (CARD), a Ação Preparatória sobre Investigação e Tecnologia de Defesa (PADR), o Programa Europeu de Desenvolvimento Industrial no Domínio da Defesa (EDIDP), o Fundo Europeu de Defesa (EDF) e a Cooperação Estruturada Permanente (PESCO), possam abrir o caminho para uma nova “cultura de cooperação de defesa europeia”, introduzir  transparência no processo, reduzir burocracias e facilitar a cooperação transfronteiriça das PMEs, que constituem o núcleo central da Base Tecnológica e Industrial de Defesa Europeia (BTIDE). Mas é um processo lento e sujeito aos imponderáveis geopolíticos e geoeconómicos do mundo pós-moderno. O grande problema que hoje se coloca, é que a constante evolução geopolítica, as vertiginosas inovações tecnológicas e a alteração do caráter da guerra requerem ações rápidas, coerentes e eficazes, tanto no campo da doutrina como na área do desenvolvimento de capacidades militares.

Para dar uma ideia pálida da importância económica e dos interesses mais díspares que giram à volta das despesas militares a nível mundial e dos investimentos em desenvolvimento tecnológico-industrial das novas gerações de equipamentos e tecnologias de defesa, comecemos por afirmar que cada 1€ investido em defesa gera um retorno económico de 1,6-2,0€, particularmente em emprego altamente qualificado, inovação tecnológica e exportações[2].

Em 2020, a despesa militar a nível mundial foi de €1684 mil milhões, correspondendo a 2,4% do PIB mundial.  Os cinco países mais investidores em defesa em 2020 (Top 5) foram os EUA, a China, a Índia, a Rússia e o Reino Unido, representando 62% da despesa militar mundial, seguidos muito de perto pela Arábia Saudita e França. A UE, no seu conjunto, está ao nível da China representando 14,5% da despesa militar mundial[3].

No que diz respeito ao mercado de defesa europeu, em 2020 verificou-se um retorno económico de €100 mil milhões, gerando 1,5 milhões de empregos diretos e indiretos altamente qualificados, distribuídos por 44.000 empresas de defesa, num universo de 25 milhões de empresas a nível europeu (civis, defesa, duais), das quais 98% são start-ups, micro e PMEs. Destes €100 mil milhões de retorno económico europeu, é importante relevar que 50% dizem respeito ao setor aeroespacial, sendo os restantes 50% repartidos igualmente pelos setores de defesa terrestre e naval. Por outro lado, é importante ter presente que os custos das tecnologias emergentes e disruptíveis, que constituem a base da inovação, crescem a um ritmo de 6-8%/ano, o que significa que, em média, duplicam a cada 10-12 anos.

Um melhor entendimento sobre a prioridade estratégica dos EUA em relação à região Indo-Pacífico

Desde há vários anos que os políticos europeus estão avisados e conscientes de que as prioridades estratégicas dos EUA têm vindo a focalizar-se na região Ásia-Pacífico e mais concretamente na região Indo-Pacífico. Estes avisos de alerta de vária ordem e natureza remontam aos tempos do Presidente Barack Obama, agravados com as narrativas tergiversantes do Presidente Trump.

Há quase dez anos o Presidente Barack Obama visitou o Parlamento da Austrália, tendo anunciado um novo eixo estratégico para a Ásia ao afirmar “os EUA são uma potência do Pacífico e nós estamos aqui para ficar[4]”.

A nova Administração de Joe Biden percebeu que a tradicional hegemonia norte-americana é hoje disputada pelas potências autoritárias, num mundo que passou a ser multipolar. Assim, a política externa americana será mais assertiva e robusta segundo os princípios e valores da ordem liberal americana e, portanto, mais aberta ao multilateralismo assente na negociação pacífica das disputas e no diálogo diplomático, utilizando o recurso à força militar apenas como “ultima ratio”. As relações euro-atlânticas serão reforçadas na base dos interesses mútuos, tendo a NATO sido reconfirmada como o cimento agregador fundamental da segurança coletiva da área euro-atlântica, sem perder de vista, contudo, que a rivalidade EUA-China continuará a ser a primeira prioridade dos EUA.

Os primeiros sinais de alerta desta mudança de orientação estratégica dos EUA, talvez tenham ocorrido com a intervenção militar na Líbia em 2011, onde os EUA ensaiaram um novo conceito de “leading from behind”, e, posteriormente, com a sua relutância em liderar uma intervenção militar no conflito da Síria. Por outro lado, em várias reuniões da NATO, o Secretário da Defesa da Administração Obama, Robert Gates, referiu veementemente que a Europa teria de estar preparada para compreender a deslocação em curso dos interesses estratégicos dos EUA para a região Ásia-Pacífico e passar a contribuir mais para a sua defesa, reduzindo a sua dependência dos EUA e aliviando simultaneamente o “fardo” dos EUA. Com a Administração Trump, os avisos de alerta tornaram-se em ameaças.

Estes avisos de alerta tiveram finalmente repercussão no célebre Conselho Europeu de dezembro de 2013, especialmente dedicado à defesa, sob o lema “Defence Matters”. Deste Conselho Europeu emanou a ideia-força de que a Europa teria de caminhar no sentido da sua autossuficiência militar, tecnológica e industrial, tendo por base um complexo tecnológico industrial moderno, competitivo e inovador, num contexto harmonioso de cooperação, complementaridade e reforço mútuo com a NATO, que continuaria a ser o alicerce fundamental da defesa coletiva da Europa.

É dentro deste espírito de uma maior ambição estratégico-militar da UE que, em junho de 2016, foi aprovada a Estratégia Global da UE, com um novo e mais ambicioso nível de ambição de “autonomia estratégica”. Com a implementação da Estratégia Global da UE nos domínios da segurança e defesa, em novembro de 2016, o Presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, lançou as primeiras sementes para um novo instrumento financeiro de apoio à investigação tecnológica de defesa e ao desenvolvimento tecnológico-industrial de defesa, fomentador de uma verdadeira e mais transparente e eficaz cooperação de defesa europeia, que hoje se convenciona chamar o Fundo Europeu de Defesa. Trata-se de uma “revolução” em marcha.

Na sequência dos acontecimentos trágicos que ocorreram com o “colapso” do Afeganistão, cuja reverberação das ondas de choque ainda hoje se fazem sentir, a Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, anunciou perante o Parlamento Europeu que no primeiro semestre de 2022, durante a presidência rotativa da França, iria ser convocado um Conselho Europeu totalmente dedicado à Segurança e Defesa, tendo em vista dar um novo impulso no sentido da concretização da “autonomia estratégica da UE”[5], com base nas conclusões e recomendações do exercício em curso intitulado “Bússola Estratégica”.

A focalização estratégica dos EUA na Ásia-Pacífico, particularmente na região Indo-Pacífico, fica a dever-se a três fenómenos fundamentais que se desenvolvem simultaneamente:

  • A deslocação acelerada do centro de gravidade do poder económico do Ocidente para Oriente[6];
  • Os imponderáveis relacionados com a rápida ascensão económica, demográfica, tecnológica e militar da China, assim como a sua agressividade crescente como fonte de poder mundial desafiante dos EUA;
  • O limitado poder operacional, logístico e financeiro das forças armadas dos EUA, desgastadas e desmotivadas por guerras sem fim no Afeganistão e Iraque, para operar e sustentar, em simultâneo, uma intervenção militar de alta intensidade em dois Teatros de Operações

A NATO, pela primeira vez na sua já longa história, declarou na Cimeira de Bruxelas (15jun2021) que “a China representa desafios sistémicos que importa saber conter de forma inteligente”. Por sua vez, na Cimeira UE-EUA (Bruxelas, 16jun2021) falou-se de “abordagens multifacetadas com a China, que incluirão elementos de cooperação, competição e rivalidade sistemática”, sem, contudo, deixar de reiterar uma vez mais a vontade política de fortalecer e aprofundar o papel fundamental da relação euro-atlântica.

Assim, esta eventual insuficiência de meios aeronavais norte-americanos para combater simultaneamente em dois Teatros de Operações significativos, sendo um deles o Mar do Sul da China, faz relevar a importância estratégica que a NATO e a UE, como um todo com os seus importantes instrumentos de “soft power”, ou alguns Estados-membros com maiores capacidades aeronavais, e outros parceiros internacionais (Japão, Coreia do Sul, Taiwan, Singapura, Austrália e Nova Zelândia, ASEAN[7], QUAD Plus[8]), poderão vir a ter, em complemento das carecidas forças norte-americanas, para a manutenção da paz e estabilidade naquela ampla região do Indo-Pacífico, e para garantir um acesso livre e aberto às linhas de comunicação marítimas vitais.

A “Integrated Review of Security, Defence, Development and Foreign Policy”, do Reino Unido, de 24mar2021[9], identifica a NATO como sendo o fundamento da segurança coletiva euro-atlântica, sendo a Rússia a mais séria ameaça, assumindo também o compromisso pela segurança para além da área euro-atlântica, particularmente o grande espaço Indo-Pacífico.

Fiel a este compromisso para com o espaço Indo-Pacífico, o Reino Unido fez deslocar uma força-tarefa aeronaval centrada no novíssimo porta-aviões HMS Queen Elizabeth, equipado com aviões de combate americanos F-35B da 5ª geração, acompanhado de uma escolta plurinacional de navios de combate incluindo um submarino da classe Astute (propulsão nuclear). Ao longo do seu extenso percurso, esta força-tarefa tem participado em exercícios conjuntos com países amigos na região Indo-Pacífico (Índia, Japão, Coreia do Sul e Austrália). Além desta força-tarefa, o Reino Unido fez deslocar recentemente para a região Indo-Pacífico um destacamento permanente de dois Navios Patrulha Oceânicos (OPV) por um período de cinco anos, numa demonstração de compromisso para com a defesa e segurança coletiva daquela região nas próximas décadas.

Por sua vez, a França, na implementação da Estratégia da França para o Indo-Pacífico[10] e na sequência da Cimeira da NATO (Bruxelas, 15set2021), fez deslocar para a região do Índico uma força-tarefa naval constituída pelo super modernizado porta-aviões Charles de Gaulle, que é o maior porta-aviões da Europa Ocidental, equipado com os modernos aviões de combate Rafale F-3 da 4ª geração ++, acompanhado de uma escolta naval, incluindo um submarino A deslocação desta força-tarefa faz parte de uma estratégia que visa dispor de uma significativa presença naval na região e reforçar a cooperação com a Austrália e a Índia.

De acordo com a Estratégia de Segurança Nacional dos EUA de 2017, a Estratégia de Defesa Nacional dos EUA de 2018, a “Nuclear Posture Review” dos EUA de 2018 e a “Interim National Strategic Guidance” dos EUA de março de 2021[11], “a China é simultaneamente um parceiro, um competidor e um rival, dependendo do comportamento da China”. No que respeita à sua política militar expansionista, a China tem mostrado uma grande assertividade e agressividade crescente em relação aos países vizinhos e às disputadas ilhas do Mar do Sul da China (Japão, Coreia do Sul, Taiwan, Vietname e Filipinas).

Não obstante toda a retórica à margem da Assembleia Geral da ONU (20-24set2021), a relação EUA-China continuará a ser a prioridade estratégica dos EUA, centrada na competição entre autocracia e valores liberais, no contexto em que a China, sendo o segundo mercado mundial, já representa 18% do PIB mundial e 22% do global das exportações. Segundo Rush Doshi[12], no seu livro “The Long Game”, a a China, através da sua política da Nova Rota da Seda (Belt and Road Initiative), tem por objetivo global alcançar a supremacia em 2049, quando o Partido Comunista da China celebrar os 100 anos no poder.

A primeira Cimeira presencial do QUAD (EUA, Japão, Índia e Austrália) realizou-se na Casa Branca em Washington, em 24set2021, sendo as suas principais conclusões na área da segurança marítima as seguintes[13]:

  • Perseguir o objetivo de uma região Indo-Pacífico livre e aberta, não intimidada pela coerção, constituindo uma frente unida que partilha as mesmas preocupações sobre a China;
  • Defender o estado de direito, a liberdade de navegação e sobrevoo, a resolução pacífica das disputas, os valores democráticos e a integridade territorial dos Estados.

No fim de julho de 2021, decorreu no nordeste da Austrália (Queensland) um grande exercício militar “Talisman Sabre 2021”, para reforçar a interoperabilidade entre forças aliadas, tendo como “leitmotiv” o escalar das tensões com a China no Pacífico Ocidental. Participaram 17.000 militares de sete países (Austrália, Canadá, Coreia do Sul, EUA, Japão, Nova Zelândia e Reino Unido, tendo este último país participado com componentes de forças pertencentes ao grupo-tarefa do porta-aviões HMS Queen Elizabeth).

O lamentável episódio do negócio dos submarinos

Numa adaptação permanente e coerente às grandes mudanças geopolíticas no Pacífico Ocidental, as forças armadas australianas têm feito um enorme esforço nos últimos 10-15 anos de modernização das suas estruturas de comando e controlo e das suas capacidades militares, incluindo interoperabilidade, plataformas e sistemas de armas e munições de última geração. Este longo e dispendioso processo de modernização, particularmente no que respeita às suas capacidades aéreas e navais, para operarem conjuntamente com forças aliadas e amigas no contexto das várias instituições multilaterais em que a Austrália participa, tem sido impulsionado pela expansão e agressividade crescente da China na região Indo-Pacífico.

A Marinha australiana está equipada com 6 submarinos elétricos a diesel da classe Collins, fabricados na Austrália, sob licença da empresa sueca Saab Kockums, que se encontram desatualizados e que necessitam de ser substituídos. O Livro Branco de Defesa da Austrália de 2016[14], prevê que os 6 submarinos sejam abatidos ao inventário em 2030, devendo ser substituídos por 12 submarinos da nova geração.

Em 2016, contactos oficiais foram estabelecidos com a empresa francesa DCNS (Naval Group), no sentido de substituir os 6 submarinos da classe Collins por 12 submarinos de uma nova geração, tendo por base uma variante de propulsão convencional do submarino “Shortfin Barracuda”. Um contrato de princípio foi estabelecido, num valor aproximado de €31.000 milhões[15], na condição de os 12 submarinos serem construídos na Austrália e entregues por volta de 2030.

Desde cedo, que as autoridades australianas começaram a mostrar a sua insatisfação em relação ao desenvolvimento do programa, nomeadamente no que respeita ao cumprimento de alguns requisitos operacionais e técnicos, incluindo a data de entrega dos submarinos, dado que em 2030 os submarinos Collins atingem o seu tempo de vida útil e serão abatidos[16]. Entretanto com a introdução e/ou alteração de alguns novos requisitos e adaptações a mudanças tecnológicas, o que é normal num processo longo de desenvolvimento e produção de um grande sistema de armas, a “fita do tempo”[17] e os custos foram “derrapando” e diz-se que já teriam atingido um valor superior a €50.000 milhões..

Com as lições aprendidas no exercício acima referido “Talismam Sabre 2021”, realizado nos fins de julho de 2021, nomeadamente no que respeita à necessidade do reforço da interoperabilidade com as forças navais americanas e britânicas, surgiu a ideia da criação, em 15 de setembro de 2021, de um “Acordo de parceria estratégica de cooperação tecnológica e de segurança entre os EUA, Reino Unido e Austrália” (AUKUS)[18], para defender conjuntamente os seus interesses na área Indo-Pacífico e conter a ambição expansionista de Pequim.

Por outro lado, por uma razão de interoperabilidade operacional, esta aliança permitirá à Austrália substituir os seus envelhecidos submarinos de propulsão convencional da classe-Collins, por, pelo menos, uma frota de oito novos submarinos estratégicos de propulsão nuclear norte-americanos, assim como criar uma complexa infraestrutura para a manter e desenvolver[19], em detrimento do contrato-programa de tecnologia francesa DCNS (Naval Group), já em estado avançado de negociações[20].

Esta parceria tripartida, além de, naturalmente, não ter agradado à França[21], que assim viu perder um negócio importantíssimo da ordem de €31-50 mil milhões, foi criada e anunciada sem conhecimento e coordenação com a UE, o que poderá significar o pouco interesse dos EUA em relação à União Europeia, quando se trata de questões relacionadas com a segurança e defesa da região Indo-Pacífico, podendo pôr em causa o processo de aprofundamento euro-atlântico, reiniciado na sequência da visita de Joe Biden à Europa (jun2021). Por outro lado, Pequim chegou mesmo a classificar esta parceria como um reflexo de uma “mentalidade de Guerra-Fria de soma zero e um preconceito ideológico”. A China sempre teve a perceção de que a rede global de alianças criadas pelos EUA eram uma forma de conter o crescimento da China e de encobrir o seu empenho em alcançar a hegemonia[22].

Trata-se, evidentemente, de transferência de tecnologia americana altamente sensível, sujeita a regras e controlos internacionais muito rigorosos, que os EUA apenas partilharam esta tecnologia com o Reino Unido. Os submarinos de propulsão nuclear constituem de facto uma questão muito sensível do ponto de vista político-diplomático e da segurança internacional, não apenas pelo seu alcance, velocidade e furtividade, mas sobretudo porque o seu sistema de propulsão utiliza urânio enriquecido, com uma alta proporção do isótopo U-235, que é a mesma matéria físsil que é utilizada para a construção de bombas e mísseis nucleares[23].

A introdução de uma nova frota de submarinos de propulsão nuclear em região altamente estratégica como o Indo-Pacífico, onde prevalecem equilíbrios regionais instáveis em torno do expansionismo da China, além de ser um bom negócio para a indústria de defesa dos EUA e, talvez em menor grau, do Reino Unido, contribui significativamente com valor acrescentado, como fator dissuasor de contenção da China, sendo uma forma de sublinhar a importância do ambiente marítimo como o eventual futuro teatro de operações para a competição entre as grandes potências.

Curiosamente, por mera coincidência temporal, no meio desta recente “crise diplomática” da França com os EUA e a Austrália[24], a UE aprovou e publicou, em 16set2021, a “Estratégia da UE para a Cooperação com a região Indo-Pacífico”[25]. Com esta Estratégia a UE pretende aumentar o seu empenhamento na região Indo-Pacífico, para construir parcerias que reforcem a ordem internacional baseada em regras, tentar encontrar soluções para os principais desafios existentes, assim como criar os alicerces para uma recuperação económica rápida, justa e sustentável, tendo em consideração as parcerias de cooperação já existentes nessa vasta região (ASEAN, QUAD, CPTPP[26], RCEP[27], etc). A UE incluirá a China[28] no seu empenhamento bilateral multifacetado, para promover soluções para os desafios comuns e cooperação em assuntos de interesse comum, assim como encorajar a China a participar na pacífica e próspera região Indo-Pacífico.

É indubitavelmente certo que a França tem razões de sobra para estar indignada com a forma pouco digna, insultuosa e desprestigiante como foi tratada em relação ao negócio dos submarinos, de importância relevante para a sua indústria naval (pressupondo a perda de um negócio que poderia rondar os €50 mil milhões), o que não abona nada eticamente em favor dos três parceiros do AUKUS, tanto mais que se trata de países aliados e parceiros em outras organizações multilaterais de segurança e defesa a nível global.

A meu ver a coisa mais surpreendente acerca deste lamentável incidente, não é propriamente a natural reação forte da França, mas sim a reação da UE através dos seus representantes institucionais mais relevantes, como o Presidente do Conselho Europeu, a Presidente da Comissão Europeia e o Alto Representante da UE para a Política Externa e Segurança. De facto, os negócios que envolvam compras e vendas de equipamento e tecnologias militares com países fora da esfera da União e que não beneficiem dos instrumentos de cofinanciamento comunitário, como é o caso vertente da “crise dos submarinos”, são assuntos da reserva de soberania nacional e da exclusiva responsabilidade dos países em causa, estando longe de serem um assunto da UE como um todo institucional. Sobre os aspetos jurídico-legais da declinação do contrato existente entre a Austrália e a França, esta estará mais bem colocada e habilitada a tomar as iniciativas que melhor entender sobre o assunto.

A outra face da moeda, contudo, consiste em determinar se o aprofundamento da relação euro-atlântica, tal como tinha sido gizado nas Cimeiras da NATO e UE-EUA, de 14-15jun2021, sofreu alguma secundarização, em virtude de uma vez mais ficar demonstrado que o interesse estratégico vital dos EUA reside efetivamente na região Ásia Pacífico. Sobre esta questão é de facto surpreendente e preocupante que os EUA não tenham sentido a necessidade de consultar os seus aliados europeus, além do Reino Unido[29].

Mas as feridas abertas nas relações entre a França e os EUA, assim como as dúvidas levantadas sobre o futuro eventual papel da NATO e UE em relação à região Indo-Pacífico, começaram a ser tratadas, saradas e clarificadas logo no dia 22set2021, com uma conversa telefónica entre Joe Biden e Emmanuel Macron, a qual deu origem a um Comunicado da Casa Branca[30], do qual se podem extrair as seguintes ideia-força principais:

  • Biden reafirma a importância estratégica do empenhamento da França e da Europa na região Indo-Pacífico, incluindo no quadro da Estratégia da UE para o Índico-Pacífico[31], recentemente publicada;
  • Os EUA também reconhecem a importância de uma Europa da Defesa mais forte, coesa e eficaz, capaz de contribuir positivamente para a segurança transatlântica e global, em complementaridade com a NATO.

Haverá uma Cimeira EUA-França no final do próximo mês de outubro, que terá como pano de fundo o acima citado Comunicado da Casa Branca de 22set2021, onde serão discutidas as consequências do pacto AUKUS nas suas várias facetas. Por outro lado, o Presidente Macron aproveitará a oportunidade para apresentar ao Presidente Biden a sua estratégia sobre a criação de uma “capacidade militar europeia autónoma, mas complementar com a NATO”.

Na sequência do Comunicado da Casa Branca, os embaixadores da França em Washington e Camberra regressaram às suas funções normais, tendo sido dada por fim a tensão/crise originada com o lamentável episódio da compra de submarinos pela Austrália.

Curiosamente, a “crise dos submarinos” entre os EUA e a França acabou por ser clarificadora, não só quanto ao empenhamento dos EUA na defesa coletiva da Europa e quanto ao papel da NATO e da Europa na região Indo-Pacifico, mas também quanto ao conceito atual de que comércio, tecnologia e geopolítica se interligam de forma muito complexa, que é preciso ter sempre presente em todos os atos de relações internacionais, mesmo entre amigos, parceiros e aliados.


30 de setembro de 2021

Augusto de Melo Correia
Vice-presidente do Conselho Consultivo

Baixar documento


[1] Discurso da Presidente da Comissão Europeia, Ursula von del Leyen, perante o Parlamento Europeu, 10set2019.

[2] Comissão Europeia, 2019

[3] Trends in World Military Expenditure 2020, SIPRI, April 2021.

[4] “America is at last getting serious about countering China in Asia”-The Economist, 24Sep2021.

[5] Discurso do Estado da União, 15set2021.

https://ec.europa.eu/info/strategy/strategic-planning/state-union-addresses/state-union-2021_pt

[6] De acordo com a Estratégia da França para o Indo-Pacífico, dentro de duas décadas a região Indo-Pacífico será a nova “locomotiva” do crescimento económico global. O Indo-Pacífico inclui seis membros do G-20 e a região gera cerca de 40% da riqueza global. Segundo o Fundo Monetário Internacional, em 2040 o Indo-Pacífico poderá representar mais de 50% do PIB mundial e os seus membros poderão representar 40% do consumo global.

[7] ASEAN-Associação de Nações do Sudeste Asiático. É uma organização intergovernamental de dez países do sudeste asiático, fundada em 08ago1967, com sede em Jacarta (Indonésia), que promove a cooperação intergovernamental e facilita a integração económica, política, de segurança, militar, educacional e sociocultural entre os seus membros e outros países da Ásia.

[8] O Quad é um grupo das quatro maiores democracias mundiais (EUA, Austrália, Japão e Índia) que foi constituído para prestar auxílio na sequência do tsunami de 2004 no Oceano Índico. Em 2020/2021 o Quad foi alargado à Nova Zelândia, Coreia do Sul e Vietname, tendo-se transformado num fórum informal de segurança, com a intenção de contenção da China na sua ascensão e expansão assertiva, especialmente no domínio marítimo do Indo-Pacífico.

[9] https://commonslibrary.parliament.uk/research-briefings/cbp-9182/

[10] Durante a sua visita à Austrália em maio de 2018, o Presidente Emmanuel Macron lançou a Estratégia da França para o Indo-Pacífico. “France’s Indo-Pacific Strategy”, May 2018.

[11] https://www.whitehouse.gov/wp-content/uploads/2021/03/NSC-1v2.pdf

[12] Rush Doshi é um conselheiro de Joe Biden para a política da China, no Conselho de Segurança Nacional dos EUA. The Economist, 31Jul2021.

[13] Reuters, 25set2021.

https://www.reuters.com/world/china/quad-leaders-meet-white-house-amid-shared-china-concerns-2021-09-24/

[14] “2016 Australia’s Defence White Paper”.

https://www1.defence.gov.au/about/publications/2016-defence-white-paper

[15] Sabe-se, por experiência própria, que a “confidencialidade é a alma do negócio” e que os encargos financeiros dos contratos constituem sempre uma nebulosa com grande opacidade.

[16] Informação colhida dos meios de comunicação social, aponta para a data provável de entrega dos submarinos franceses nunca antes de 2034.

[17] Como precaução para o deslizar da “fita do tempo”, o Governo australiano fez um contrato com a empresa Saab Kochums (projeto SEA 1450), no valor de €4 mil milhões, visando a extensão de vida dos submarinos Collins até 2040, a fim de evitar a perda de capacidade dos submarinos Collins a partir de 2030. Janes Weekly Defense, 29Sept2021.

[18] O acrónimo AUKUS significa Austrália, Reino Unido e EUA. Numa declaração conjunta de Joe Biden, Boris Johnson e Scott Morrison, em 15set2021, foi dado a conhecer que o AUKUS permitirá aos três países uma “integração mais profunda de ciência, tecnologia, bases industriais e cadeias de fornecimentos relacionados com a segurança e defesa no Indo-Pacífico”. Foi ainda afirmado que “como democracias marítimas estamos comprometidos em apoiar a Austrália na aquisição de submarinos com propulsão nuclear”. A nível global há atualmente apenas 6 países que estão equipados com submarinos estratégicos de propulsão nuclear (EUA, Rússia, França, Reino Unido, China e Índia). A Austrália poderá vir a tornar-se no sétimo país, até 2030. Há ainda outros países, tais como o Japão e o Brasil, que tencionam desenvolver submarinos de propulsão nuclear. The Economist, 27Sep2021.

https://www.theguardian.com/politics/2021/sep/16/what-is-the-aukus-alliance-and-what-are-its-implications

https://brasil.elpais.com/internacional/2021-09-15/eua-reino-unido-e-australia-anunciam-alianca-estrategica-contra-a-china-na-regiao-do-indo-pacifico.html

[19] Na recente visita do 1º Ministro australiano, Scott Morrison, a Washington, foi designado um representante dos EUA (antigo Secretario da Marinha dos EUA, Donald Winter), como conselheiro para apoiar a colaboração entre Camberra e Washington sobre a implementação do novo projeto de submarino de propulsão nuclear, ao abrigo do Acordo AUKUS. Janes Defence Weekly, 29Sept2021.

[20] Não obstante a recente decisão de cancelar o negócio dos submarinos como os franceses, o Governo australiano manteve o contrato com a empresa sueca Saab Kochum (projeto SEA 1450) para extensão de vida dos Collins até 2040. Janes Defence Weekly, 29Sept2021.

[21] O Secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, tentando acalmar a indignação francesa, apressou-se em reafirmar que a França é um “parceiro vital”, mas sobre o negócio perdido pela França disse nada. Público, António Saraiva Lima, 18set2021, pag.31.

[22] The Economist, 25Sep2021.

[23] The Economist, 17Sep2021.

[24] A França chamou para consultas os seus embaixadores nos EUA e Austrália, situação diplomática que releva a gravidade da crise, sobretudo por serem países aliados e parceiros.

[25] “Joint Communication to the European Parliament and the Council-JOIN (2021), 16Set2021.

[26] CPTPP – Comprehensive and Progressive Agreement for Trans-Pacific Partnership. Trata-se de um tratado comercial trans-Pacífico que junta onze países asiáticos e americanos, liderado pelo Japão, que, no seu conjunto, representam 13,4% do PIB mundial. É o tratado comercial sucessor do TPP (Trans-Pacific Partnership), promovido ainda na Presidência de Barack Obama e que não chegou a entrar em vigor por denúncia do acordo de Donald Trump. Pediram a adesão ao CPTPP o Reino Unido, a China, a Coreia do Sul e Taiwan. Sinalizaram interesse em aderir ao acordo as Filipinas, a Indonésia, a Colômbia e a Tailândia. Admite-se que, com a Administração de Joe Biden, os EUA venham a aderir ao acordo.

[27] RCEP – Regional Comprehensive Economic Partnership. Trata-se de um acordo de parceria de comércio livre, assinado em 5nov2020, do qual fazem parte 15 países do Pacífico Ocidental e da Ásia Oriental, do Japão, China, Coreia do Sul à Nova Zelândia, não incluindo a Índia, a Rússia e os EUA. É o maior polo comercial da história, representando 30% da população mundial e 30% do PIB global.

[28] Joint Communication EU-China; a Strategic Outlook, 12Mar2019.

[29] A este propósito da falta de sensibilidade para consultar/esclarecer parceiros e aliados sobre decisões importantes que possam afetar um bom relacionamento euro-atlântico, trago à colação o Acordo UE-China, de 30dez2020, “EU-China Comprehensive Agreement”, assinado 20 dias antes da tomada de posse do Presidente Joe Biden, pese embora o Gabinete de Joe Biden ter aconselhado atrasar a sua assinatura.

[30] “Joint Statement on the Phone Call between President Biden and President Macron, 22Sep2021.

https://whitehouse.gov/briefing-room/statements-releases/2021/09/22/joint-statement-on-the-phone-call-between-president-biden-and-president-macron/

[31] “Joint Communication to the European Parliament and the Council-JOIN (2021), 16set2021.

Partilhar conteúdo:
LinkedIn
Share

Formulário Contato