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No ano passado, o mundo esperava com apreensão as palavras de Vladimir Putin, nas anuais celebrações do Dia da Vitória, a 9 de maio. A celebração da vitória soviética sobre as forças do Eixo havia, desde os tempos de Brezhnev, sido transformada numa afirmação do excecionalismo russo. Eis aqui o esplendor das forças da Mãe Rússia, sempre inocente e imaculada. O que se seguiria, então? Uma declaração formal de guerra? Mobilização em massa? Em vez disso, o discurso incidiu sobre a mudança de foco para a frente no Leste da Ucrânia, nomeadamente o Donbas, assim como a “proteção” que as forças russas ofereciam à população russófila da região. Os próximos doze meses só serviram para expor de forma mais crua as brechas na fachada apresentada pelo Kremlin, dos avanços ucranianos em Kherson e Kharkiv, ao reforço do apoio ocidental a Kyiv e à falta de vitórias significativas da contraofensiva russa. A 20 de maio, o líder do grupo mercenário Wagner – Yevgeny Prigozhin – declarou vitória sobre a cidade de Bakhmut, em Donetsk. Assumindo que seja verdade, a tomada da 56ª maior cidade ucraniana, depois de 10 meses e cerca de 100 mil mortos e feridos no campo russo é uma vitória meramente simbólica que em nada altera as esperanças da Rússia no conflito, segundo o Institute for the Study of War.

O dia 9 de maio deste ano não se viu um desfile aéreo em Moscovo. O “Regimento Imortal”, com as fotografias dos soldados caídos na II Guerra, não marcou presença. A parada contou apenas com uma fração do equipamento e forças militares habituais. Mas o retrato mais claro da fraqueza da Rússia enquanto potência militar foi o tanque que desfilou na Praça Vermelha. O tanque. O único tanque, um T-34-85 produzido na era estalinista. 11 dias depois, os Estados Unidos anunciaram o seu consentimento ao envio, pelos seus aliados, de jatos F-16 para a Ucrânia. Mais uma linha vermelha atravessada e mais um exemplo de que o mundo já não teme as ameaças vazias do Kremlin. Pelo contrário, a paranoia reinante nos círculos militares russos aumenta a cada dia que passa, à medida que se aproxima a muito badalada contraofensiva ucraniana. Relata o Wall Street Journal que 20 novas brigadas, com cerca de 3 a 5 mil homens cada, têm sido treinadas com meios ocidentais. Estas encontram-se longe dos combates ativos, à espera da luz verde para avançarem sobre o que resta das posições russas.

O que esperar da contraofensiva? Analistas como Mike Martin, investigador visitante sénior no departamento de Estudos de Guerra da King’s College em Londres, afirmam que as últimas semanas têm sido marcadas por “operações de moldagem” (shaping operations), ou seja, ataques precisos em alvos logísticos como depósitos de munições, centros de comando, etc. Isto, em termos muito simples, visa preparar as condições para um futuro avanço ucraniano e, ao mesmo tempo, criar incerteza e paranoia no inimigo sobre de onde em concreto esse avanço partirá. Observando as posições atuais no mapa, Martin demonstra que os ucranianos podem movimentar muito mais facilmente as suas forças comparado com os russos. Com isto em mente, projeta três cenários nos quais os primeiros podem “testar” a resistência dos últimos: atravessar o rio Dnipro no oblast de Kherson; avançar sobre o Norte de Luhansk, próximo das cidades de Svatove e Kreminna; tentar cercar os exaustos soldados em Bakhmut.

O alvo mais apetecível da contraofensiva, muito provavelmente, será o oblast de Zaporizhzhia, no qual para além da capital regional homónima se situam as cidades de Melitopol, Mariupol e Berdyansk. A libertação desta região cortaria em duas a faixa litoral ocupada desde o início da invasão. Outro cenário possível seria o já mencionado oblast de Kherson, apesar dos desafios que implica o atravessar da barreira natural que é o rio Dnipro. Por enquanto, não há muito mais a fazer senão esperar. Esperar e especular. Centremo-nos então não em apontar a rota que a Ucrânia precisa de seguir para libertar o máximo do seu território, mas sim no grande prémio. Na fortaleza a partir da qual a Rússia projeta o seu controlo do Mar Negro e ameaça todos os portos ucranianos. Na Crimeia, o pano de fundo final da guerra.

Tal como o “culto da vitória” celebrado anualmente a 9 de maio, a posse russa da Crimeia é uma das principais bandeiras da amálgama ideológica que pode ser descrita como “putinismo”. Quem conferir alguma credibilidade às palavras do líder russo afirmará que a Crimeia foi historicamente sempre russa e que a anexação ilegal de 2014 foi nada mais que a retificação de uma injúria histórica. A sua singularidade levou a que grandes vultos da autoproclamada “escola realista” das relações internacionais, como o ex-Secretário de Estado norte-americano Henry Kissinger, propusessem que Kyiv renunciasse a esse território, pela “paz”. Até elementos da administração Biden, admitindo que a Ucrânia possui as capacidades para recuperar a península, exprimiram receios sobre o eternamente adiado uso de armas nucleares por parte da Rússia de Putin. Com tudo isto em mente, mergulhemos numa breve contextualização histórica da Crimeia até aos nossos dias, no imenso valor estratégico e geopolítico da península para ambos países e o que a sua libertação significaria para o desfecho da guerra russo-ucraniana.

A Crimeia é a chave para a tentativa multissecular da Rússia se apresentar como a legítima sucessora do Império Romano e, por conseguinte, da tradição clássica greco-romana. Os primeiros registos históricos da Crimeia surgem no século IX antes de Cristo. Durante um milénio, a península (sobretudo o litoral) foi alvo de colonização grega, passando por mãos romanas e genovesas. A fragmentação do Império Mongol no século XIII deu origem a quatro canatos, entre os quais o Canato da Horda Dourada, cujo domínio se estendia da Europa Oriental às estepes da Eurásia, englobando o norte do Cáucaso, o atual Cazaquistão e boa parte da Rússia europeia e da Ucrânia, inclusive a Crimeia. Por sua vez, a sua decadência teve início no século seguinte, salientando-se a tomada de Kyiv pela Lituânia em 1322 e a derrota na batalha de Kulikovo em 1380, que simbolizou o fim do domínio mongol sobre a Rússia e a ascensão do principado de Moscovo. Em 1441, separatistas encabeçados por Hacı I Giray estabeleceram o Canato da Crimeia na península e leste litoral da Ucrânia. Três décadas depois, este novo potentado muçulmano tornou-se um protetorado do emergente Império Otomano, situação essa que perdurou até ao século XVIII. A Guerra Russo-Turca terminou em 1774 com a assinatura do Tratado de Küçük Kaynarca. Neste, o canato voltou a ser independente, contudo em 1783 a Rússia de Catarina a Grande invadiu e anexou o território sem resistência da população local. Durante o seu reinado, o príncipe Potemkin lançou o “Plano Grego”, no âmbito do qual foram fundadas cidades com nomes gregos – Sevastopol, Tiraspol, Mariupol, Odessa, Kherson, etc. – na Crimeia e ao longo da “Nova Rússia”, a faixa litoral no sul da Ucrânia. A culminação do plano seria uma nova ofensiva contra o Império Otomano, que resultaria na libertação de Constantinopla e dos Balcãs e na restauração do Império Romano Oriental. Esta fase, que contaria com apoio austríaco, nunca se materializou.

Não obstante, o alegado batismo do príncipe Vladimir do Rus de Kyiv no antigo porto grego de Chersonesos e a sua integração pacífica no Império Russo contribuíram para a elevação da Crimeia a um papel de relevo na legitimação do projeto imperial muscovita. Em 1954, Nikita Khrushchev transferiu o oblast autónomo da Crimeia da república soviética da Rússia para a Ucrânia, citando motivos económicos e a proximidade cultural entre ambas regiões. Depois da implosão da União Soviética, em 1991, a Crimeia votou a favor do referendo da independência ucraniana, com 54%. Dado o seu estatuto enquanto porto principal da Frota do Mar Negro, a cidade de Sevastopol dispunha de autonomia face o resto da península, votando 57% a favor. É importante realçar que em ambos os casos, menos de 40% do eleitorado participou no referendo de 1991. Mesmo assim, até à sua anexação ilegal em 2014, ambos territórios desfrutavam de um estatuto de autonomia na Ucrânia. Apesar de ter reconhecido a independência e integridade territorial deste país, a Rússia de Putin lançou uma operação militar para tomar a Crimeia e legitimar a sua anexação via um referendo fraudulento. Esta contou com o apoio esmagador da população russa e uma resposta acanhada da comunidade ocidental, passando assim a ser considerada a pièce de résistance da reafirmação imperial russa e do legado pessoal de Vladimir Putin. Não é de espantar que a falta de oposição interna e externa tenha motivado o ditador russo a modificar a sua canção para corresponder a toda a Ucrânia, conduzindo isto à situação atual. Claro que toda esta mitificação da Crimeia ignora a presença multissecular dos tártaros muçulmanos na região. Alvos de sucessivas campanhas de “russificação”, realçando a deportação de cerca de 200 mil tártaros em 1994, decretada por Stalin e resultando na morte de aproximadamente 20 a 48% destes. O censo ucraniano de 2001 subdividia a Crimeia em 60% etnicamente russa, 24% ucraniana e 10% tártara. A partir de 2014, a repressão dos tártaros voltou em força, com organizações de direitos humanos a registar casos de detenções, raptos e tortura, assim como a supressão de associações culturais/religiosas, órgãos governamentais e da própria linguagem. Com a invasão em larga escala de 2022, a repressão aos tártaros da Crimeia estendeu-se aos que se refugiaram nos territórios ucranianos presentemente ocupados. Realça-se o apertar da legislação contra a oposição à guerra e a tentativa de mobilização forçada dos tártaros da Crimeia no exército russo, considerado um crime de guerra à luz do Direito internacional e da Quarta Convenção de Genebra.

A península da Crimeia faz fronteira a leste em Kerch com o krai de Krasnodar, na Rússia, estando ligada a esta região por duas pontes paralelas, construídas em 2018 e atacadas em 2022. A norte, o istmo de Perekop e o conjunto de lagos salgados conhecido como “Mar Podre” ou Sivash formam uma barreira natural a ter em consideração quando se discute ofensivas futuras. Dos cossacos de Zaporizhzhia no século XVII, aos independentistas ucranianos durante a Guerra Civil Russa e às forças nazis comandadas por Erich von Manstein em 1941, todos estes constituem exemplos do uso bem-sucedido das particularidades naturais e artificiais do nordeste da Crimeia. Um dos problemas crónicos da região é o seu clima árido que fez com que 70-80% da água utilizada pela população advenha de um canal construído na década de 70, partindo de Nova Kakhovka em Kherson. Em 2014, a Ucrânia cortou o acesso de água via uma barragem, destruída em 2022 por forças russas. Logo, é seguro dizer que um hipotético sucesso ucraniano a sul reabriria esta problemática para os ocupantes. Mas sem dúvida o fator mais importante, a nível geoestratégico, diz respeito ao porto de Sevastopol. O único porto de águas profundas capaz de receber a Frota do Mar Negro, é imprescindível não só para a projeção de poder da marinha russa no mesmo – afetando toda a circulação naval ucraniana – mas também no Mediterrâneo e, principalmente, na Síria. Assuma-se então uma vitória do exército ucraniano a sul, que apesar de vantagens a nível de apoios ocidentais e moral não é garantida, dada a falta do elemento surpresa presente no ano passado. E agora? Eventuais retiradas para o Donbas e a Crimeia podem ser condicionadas através de um novo ataque à ponte de Kerch, aprisionando os ocupantes na península e sujeitando-os ao fogo de mísseis e drones. A dúvida então surgirá se a Ucrânia de Zelensky estará pronta a sujeitar-se a baixas pesadas ao avançar sobre a fronteira a norte, ou se optará por um modelo de desgaste prolongado do exército russo. Esta é a opção escolhida pelo general reformado Ben Hodges, devendo os ucranianos neutralizar as bases navais, aéreas e logísticas russas com recurso a forças blindadas e armas de precisão de longo alcance, como sistemas de mísseis MGM-140 ATACMS e GLSDB. Independentemente da estratégia tomada, é crucial tomar em conta que a eventual reconquista da Crimeia implicará uma operação em grande escala, envolvendo boa parte do poderio militar de Kyiv em terra, mar e ar, assim como grandes esforços nos campos da informação e diplomacia. Novamente cito Mick Ryan, que argumenta que o sucesso de tal empresa está dependente de quatro fatores: o aumento do envio, pelo Ocidente, de munições, blindados, helicópteros, aviões e artilharia; a posse ucraniana dos repetidamente mencionados oblasts de Kherson e Zaporizhzhia; o assegurar à população da Crimeia de que não haverá represálias coletivas; o continuar da paciência estratégica demonstrada pelos aliados ocidentais da Ucrânia. Por sua vez, a própria NATO pode desempenhar um papel ativo, aceitando as propostas da Roménia para estabelecer uma presença permanente no Mar Negro e colocar termo ao domínio naval russo tanto neste como no Mar de Azov. Ao mesmo tempo, tal investimento poderia assegurar a continuação do acordo de cereais e contribuir para a manutenção da segurança alimentar global.

Atrevamo-nos a imaginar que a batalha é um sucesso e que a Crimeia está, pela primeira vez em quase uma década, em mãos ucranianas. Devemos temer uma resposta nuclear? Essa questão deve estar sempre presente, mesmo à medida que o recurso a bombas nucleares se torne cada vez mais a última ameaça do Kremlin capaz de fazer algum eco. A importância que o imperialismo russo dá à Crimeia pode levar a crer que, se alguma vez essa carta for jogada, será com a perda desse território. Mas consideremos o seguinte: nenhum dos quatro oblasts anexados por Putin no ano passado estão inteiramente na sua posse. Nem então, nem agora. Se tomarmos como válida a palavra do regime russo, então a linha vermelha já teria sido ultrapassada. Se dermos credibilidade alguma às reivindicações russas sobre a Crimeia, estaremos a ressuscitar o direito à conquista, assim como a negar décadas de Direito internacional, nomeadamente os acordos de Belovezha de 1991 e o memorando de Budapeste de 1994, nos quais a integridade territorial da Ucrânia era reconhecida pela Rússia.

Por outro lado, argumenta Pawel Kowal, a retirada russa da Crimeia e de Sevastopol significaria o verdadeiro fim das ilusões imperiais russas sobre os seus vizinhos. Caso existam negociações, o regresso da autoridade ucraniana à península provavelmente implicará a sua temporária desmilitarização, bem como a concessão de maior autonomia à população tártara. A expulsão da Rússia da Crimeia seria uma punhalada mortal no seu projeto imperial. Simbolizaria o fim do Mar Negro enquanto “lago russo”. Como escreve Michael Allen, o sacrifício do povo ucraniano na defesa do seu território e de futuras ofensivas russas na Europa deu-lhes o direito de, pelo menos, tentar lutar pela Crimeia. E, ao mesmo tempo, o esforço empreendido pelos Estados Unidos, o Reino Unido, a União Europeia e outros no apoio económico e militar a Kyiv pode revelar-se um desperdício, se for permitido a Putin congelar o conflito e eventualmente reinvadir a Ucrânia, usando a Crimeia de novo como rampa. Concluo estas observações com uma citação da monumental História de Roma, de Tito Lívio – “Iustum enim est bellum quibus necessarium, et pia arma ubi nulla nisi in armis spes est” (Pois a guerra é justa para aqueles a quem ela é necessária, e as armas são piedosas onde não há esperança exceto nas armas).


26 de maio de 2023

Alexandre Almeida
EuroDefense Jovem Portugal


WEBGRAFIA USADA:

Russian Offensive Campaign Assessment, May 20, 2023 (Institute for the Study of War)

Putin’s Victory Day Brings Evidence of Defeat (Leonid Bershidsky, The Washington Post)

Zelenskiy Signals Bakhmut Falling, Russian Casualties High (Jordan Fabian, Jenny Leonard, Bloomberg)

U.S.: Russia has suffered 100K casualties in Bakhmut since December (Ryan Chatelain, Spectrum News NY1)

Putin’s ‘one-tank’ military parade was an embarrassment for Russia, analysts say (Holly Ellyatt, CNBC)

F-16 fighter jets: Biden to let allies supply warplanes in major boost for Kyiv (Jonathan Beale, James Gregory, BBC)

Ukraine Races to Forge New Army Ahead of Offensive (Ian Lovett, Nikita Nikolaienko, The Wall Street Journal)

Ukraine’s counter-offensive: The options for attack – and which is best (Mike Martin, Telegraph)

Kissinger’s outdated remedy for the Ukraine war (Imran Khalid, Daily Sabah)

A Biden admin official recently told members of Congress that Ukraine has the military capability to take back Crimea (Carol E. Lee, Courtney Kube, Dan De Luce, NBC News)

Russia’s Most Amazingly Absurd Imperial Myth (Vlad Vexler, YouTube)

Putin’s Crimea Mythmaking (Anya Free, Wilson Center)

Myths and misconceptions in the debate on Russia: Myth 12 – “Crimea Was Always Russian” (Duncan Allan, Annette Bohr, et al., Chatham House)

What Started in Crimea Should End in Crimea (Elena Davlikanova, Maria Kurinna, Center for European Policy Analysis)

The Discrimination and Persecution of Crimean Tatars in 2014-2022 (Anti-Discrimination Centre “Memorial”)

The Sivash: A Key Strategic Point in the Retaking of Crimea (Ihor Kabanenko, Jamestown)

Why Crimea is the key to the Ukraine war (Peter Rutland, Responsible Statecraft)

Crimea’s past, and its postwar future (Pawel Korwal, GIS Reports)

Ukraine Is Serious About Taking Back Crimea (Anchal Vora, Foreign Policy)

Russia’s Lake: How to Liberate the Black Sea (Olya Korbut, Center for European Policy Analysis)

Russia’s last red line: Will the West help Ukraine liberate Crimea? (Dennis Soltys, Atlantic Council)

All Roads Lead to Crimea (Mick Ryan, Substack)

Ukraine should—and, properly supported, can—seize Crimea, argues Ben Hodges (The Economist)

Why Crimea is Not a Bridge Too Far (Michael Allen, Foreign Policy)


NOTA:

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