Conferência na Escola Superior de Educação de Viseu
Gostaria de começar por manifestar o meu apreço pela organização desta Conferencia no âmbito do Fórum de Geopolítica e Politica Internacional da Escola Superior de Educação de Viseu, num contexto propício para se falar sobre os tempos difíceis que hoje vivemos na Europa e compreender melhor os desafios, crises e ameaças que hoje afetam a Ordem Mundial e especialmente o nosso País e o espaço geoestratégico onde nos localizamos, com implicações na vida de todos nós.
Na minha exposição vou abordar três pontos: em primeiro lugar, falarei sobre os desafios e ameaças num mundo em transformação; depois, sobre a Nova Estratégia Global para as Relações Externas e a Segurança da União Europeia; e, finalmente, algumas considerações sobre a dimensão transatlântica da segurança.
1. Desafios e ameaças num mundo em transformação
Para melhor compreendermos como a geopolítica evoluiu a partir da última década do século XX, comecemos por recordar que, depois da 2ª Guerra Mundial, em 1945, se instalou uma situação de equilíbrio geoestratégico que durou mais de 50 anos e acabou com a queda do muro de Berlim em novembro de 1989.
Foi um longo período dominado por dois blocos – o Bloco Soviético e o Bloco Ocidental – que se opunham ideologicamente, dividiram o mundo e, apesar de se terem envolvido em diversos conflitos regionais, nunca se enfrentaram diretamente.
Foi um tempo de “guerra improvável e paz impossível”, como muito bem o definiu Raymond Aron. Guerra improvável graças ao efeito dissuasor produzido pela elevada capacidade de destruição das armas nucleares em poder das duas grandes potências e paz impossível por causa do temor que tais armas geravam.
Desfeita, em 1989, a lógica de repartição do poder assente em dois grandes blocos político-ideológicos, diversos conflitos eclodiram um pouco por todo o Mundo. A desagregação do bloco soviético conduziu à implosão da Jugoslávia e à emergência de novos Estados que lutaram pela sua independência. Reacendem-se velhos conflitos étnicos, territoriais e religiosos no coração da Europa.
Já em pleno Séc. XXI, o sistema internacional sofre um novo abalo com os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001 em Nova Iorque e Washington e de 11 de março de 2004 em Madrid, assim como, pouco depois, as bombas no Metro de Londres.
Os atentados de 11 de setembro de 2001 marcaram o início de uma nova ordem mundial. Nada voltaria a ser como antes em matéria de Segurança e Defesa, devido aos efeitos deste rude golpe, desferido em pleno coração do Mundo Ocidental – um golpe cujas consequências se vêm, desde então, multiplicando por todo o globo, com profundas mudanças no cenário geopolítico europeu e ocidental. Nunca é demais recordar a invasão do Iraque decidida pelo Presidente George Bush com o fundamento de que Sadan Hussein tinha ligações à Al-Qaeda e produzia armas de destruição maciça… Sabemos hoje como milhões de pessoas foram e continuam a ser vítimas desta decisão….
Mais recentemente, a Europa confronta-se com o agravamento dos conflitos na vizinhança estratégica a leste e a sul da Europa.
A leste, temos a pressão ameaçadora da Rússia, com a anexação da Crimeia e a intervenção na Ucrânia.
No Mediterrâneo Oriental, com a guerra interminável na Síria, os atentados terroristas no Iraque, a presença devastadora do Daesh, o chamado Estado Islâmico.
A sul e a sudeste o terror e o caos instalado na região do Sahel, esse imenso espaço na Africa Subsaariana, uma faixa de território que vai do Atlântico ao Mar Vermelho, onde, presentemente, o Mali representa o principal foco de tensão.
Ainda na região do Sahel, além dos conflitos armados, há que acrescentar o problema da fome. Segundo dados da ONU, 10 a 15 milhões de pessoas podem ser muito brevemente afetadas pela falta aguda de alimentos, devido às prolongadas secas e às tensões políticas na Líbia, o conflito no Mali, ação de rebeldes no Níger e os radicais islâmicos na Nigéria.
E também temos de referir a prolongada guerra civil no Sudão que está a provocar verdadeiro genocídio, conforme o alerta lançado há dias pelas Nações Unidas.
Tudo isto tem provocado a morte de milhões de cidadãos e a fuga maciça de refugiados em direção à Europa.
Temos assim de concluir que a paz duradoura sonhada pelas multidões que na noite de 9 de novembro de 1989 derrubaram o muro de Berlim tem vindo a ser sucessivamente adiada.
Aliás, a lógica da guerra fria parece estar de regresso, com uma crescente degradação das relações entre o Ocidente e a Rússia. Além da anexação da Crimeia e outras violações do direito internacional, não podem deixar de causar motivo de sérias preocupações para o Ocidente certas decisões unilaterais tomadas por Moscovo há poucos meses, tais como:
- A suspensão de três acordos nucleares com Washington; a deslocação de mísseis com capacidade nuclear para Kaliningrado, um enclave russo no Báltico, entre a Lituânia e a Polonia, a uma curta distância da Alemanha; o desvio de três navios de guerra russos, equipados com mísseis de cruzeiro, do Mar Negro para o Mediterrâneo oriental; e ainda a denúncia feita pelos serviços secretos americanos sobre os hackers russos por trás dos e-mails embaraçosos da campanha de Hillary Clinton. Sem falar na intervenção russa na Síria e no seu fortíssimo potencial de conflito entre os EUA e a Rússia.
Surpreendentemente, a Europa não só não tem sido capaz de dar uma resposta adequada a estes novos fenómenos e desafios, nomeadamente no caso da crise migratória, como tem evidenciado sinais preocupantes de debilidade e retrocesso do processo de construção europeia, nos seus pilares fundamentais da solidariedade, da coesão e da unidade no respeito pela diversidade.
A Europa, enfraquecida politicamente, a braços com uma crise económica e financeira vê-se agora numa situação agravada pelo referendo britânico que decidiu a saída do Reino Unido (Brexit) e pelo crescimento dos partidos e movimentos eurocéticos, populistas, nacionalistas e xenófobos.
Segundo um estudo publicado no último número de Revista Foreign Affairs, os partidos populistas e antieuropeus ocupam atualmente um largo número de assentos parlamentares em cinco Estados Membros da UE: Grécia, Hungria, Itália, Polonia e Eslováquia. Além disso, em três outros países – Finlândia, Lituânia e Noruega, – há partidos populistas nas coligações governamentais ou a conceder apoio parlamentar ao governo como é o caso em Portugal (acrescento eu, porque o nosso País não é citado no artigo).
A maioria destes partidos são de extrema-direita, embora nem todos sejam radicas; outros são de extrema-esquerda ou integram plataformas difíceis de colocar no espectro direita /esquerda, como é o caso do “movimento italiano 5 estrelas” liderado pelo comediante Beppe Grillo….
Felizmente hoje temos uma boa notícia com a derrota do candidato de extrema-direita à Presidência da Áustria e a vitória de um candidato amigo da Europa.
Mas, ao mesmo tempo, uma má noticia com a crise gerada na Itália, na sequência do referendo que reprovou as propostas de reforma constitucional do Primeiro-ministro Matteo Renzi. O que levou à sua demissão, com os partidos populistas e extremistas a proclamarem vitóriae a reclamarem eleições antecipadas.
2. Nova Estratégia Global da União Europeia
Foi para responder a este ambiente geopolítico e geoestratégico perigoso e ameaçador, que a Alta Representante da União Europeia para a Politica Externa e de Segurança, Frederica Mogherini, coordenou a elaboração da Nova Estratégia Global sob o lema “Visão Partilhada, Ação Conjunta: Uma Europa Mais Forte”, com a participação de todos os Estados Membros, dos governos, dos parlamentos e da sociedade civil.
A Nova Estratégia Global – “uma estratégia para unir e defender a Europa” – foi submetida ao Conselho Europeu do passado mês de junho, onde foi bem acolhida, e logo no mês seguinte o Conselho de Ministros dos Negócios Estrangeiros confirmou a sua disponibilidade para dar início e continuidade à sua implementação, tendo convidado a Alta Representante a apresentar no outono de 2016 um programa detalhado e respetiva calendarização, para a operacionalização das diversas dimensões setoriais da Estratégia, incluindo a Segurança e Defesa.
Na Cimeira de Bratislava, em setembro de 2016, Mogherini apresentou aos ministros da Defesa e dos Negócio Estrangeiros e estes aprovaram na sua reunião do passado dia 14 de novembro, um plano para a implementação de uma nova estratégia da política europeia para segurança e defesa.
No que respeita à dimensão da Segurança e Defesa, a Estratégia sublinha que o objetivo principal é “proteger a segurança e prosperidade dos cidadãos da Europa e no espaço circunvizinho, o que não poderá ser alcançado só com “soft power”, isto é, carece de força militar.
Neste contexto, sem prejuízo da soberania dos Estados Membros em relação às suas decisões dos assuntos de defesa – a defesa permanece como política intergovernamental e não comunitária – a Nova Estratégia Global apela a um esforço cooperativo e concertado dos Estados Membros, uma vez que “nenhum Estado Membro por si só estará capacitado para responder a este desafio isoladamente”.
Proclama igualmente a necessidade de um forte relacionamento e uma melhor cooperação entre a União Europeia e a NATO. O que aparentemente poderia estar em contradição com a ambição de vir a alcançar para a União Europeia uma autonomia estratégica.
Mas Mogherini explica a razão desta cooperação fundamental, defendendo que “a melhor maneira de garantir os nossos interesses comuns é no quadro de um sistema internacional assente em regras e no multilateralismo. …. Por isso, continuaremos a aprofundar a relação transatlântica e a nossa parceria com a NATO, estabelecendo também laços com novos intervenientes e explorando novos formatos”.
É reconhecida também a necessidade urgente de a Europa investir mais e melhor na defesa, para que as forças militares estejam “melhor equipadas, treinadas e organizadas”, seja para contribuir para o esforço de defesa coletiva (NATO) ou para atuar autonomamente, se e quando necessário, para fomentar a paz e salvaguardar a segurança dentro e fora das nossas fronteiras.
A este respeito a Estratégia sublinha a imprescindibilidade de fundos europeus para apoiar projetos de investigação tecnológica de defesa, indispensáveis para o desenvolvimento das capacidades militares de que a Europa necessita.
Nesse sentido, a Comissão Europeia já decidiu apresentar no próximo Conselho Europeu o seu Plano de Acão para a Defesa, compreendendo a criação de um Fundo Europeu de Defesa destinado a apoiar o investimento na investigação e no desenvolvimento conjuntos de equipamentos e tecnologias de defesa, alimentados pelos Fundos Estruturais e de Investimento Europeus e o Banco Europeu de Investimento.
Podemos assim concluir neste ponto que, treze anos após a primeira Estratégia Europeia de Segurança, proposta por Xavier Solana, a Nova Estratégia Global de Mogherini parece ser mais do que um documento teórico de boas intenções políticas, porque nele são estabelecidos os objetivos, as ambições políticas e as prioridades estratégicas da União Europeia e um número significativo de iniciativas inovadoras, que, devidamente consideradas e implementadas, têm potencial para relançar a Política Comum de Segurança e Defesa (PCSD) consagrada no Tratado de Lisboa.
3. Dimensão euro-atlântica da segurança e defesa europeia
O projeto de defesa comum europeia era já uma das ambições dos fundadores do projeto europeu, considerando que só em condições de segurança se poderia garantir a sustentação de uma zona de paz e estabilidade, baseada no progresso económico e social, na liberalização dos mercados e na livre circulação dos cidadãos.
Apesar de todos os apelos e aspirações manifestadas ao longo dos anos, a verdade é que a política de defesa europeia, dada a sua natureza intergovernamental, só pode avançar se essa for a vontade politica dos governos nacionais.
No passado pouco se avançou e a justificação era a reiterada oposição do Reino Unido a qualquer proposta de implementação da Politica Comum de Segurança e Defesa consagrada no Tratado de Lisboa. Agora com o Reino Unido fora da EU, com o Brexit, alguns líderes europeus acreditam que é o tempo oportuno para progredir nesta área.
Mas podemos estar aqui perante uma certa ambiguidade. A verdade é que a vontade política depende essencialmente do apoio que, a nível nacional, os governos possam obter, em última análise, das suas bases eleitorais. Ora o que nos dizem as sondagens hoje é que a grande maioria dos cidadãos europeus considera que as migrações e o terrorismo constituem o desafio mais importante que a União Europeia deve ser capaz de enfrentar. Estão, por isso, dispostas a apoiar o desenvolvimento das estratégias e das políticas europeias de segurança interna, com impacto, especialmente, no reforço da prevenção e do combate ao terrorismo e o controlo das fronteiras externas (a decisão de constituir uma Guarda Costeira é o resultado das pressões da opinião pública face ao descontrolo da gestão dos fluxos migratórios).
Mas quando se trata de questões geopolíticas e de defesa, na maioria dos Estados-Membros, a opinião pública mostra-se cada vez menos interessada revelando um nível de ambição relativamente limitado no que se refere ao desenvolvimento de capacidades militares autónomas de defesa, ou seja, não estão preparados para pagar mais para a defesa.
Talvez por isso mesmo, num recente inquérito divulgado pelo European Center for Foreign Relations, em cada um dos 28 Estados-Membros, sobre as perceções e os desafios que o novo presidente americano pode colocar nos respetivos países, a maioria das respostas mostrou-se favorável à continuidade e à estabilidade das relações transatlânticas e manifestava claramente o seu forte desejo de que os EUA e a NATO continuem a ser o principal garante da defesa da Europa.
Não admira, por isso, que a maioria das respostas claramente indicasse um grande receio com a possível eleição de Donald Trump, dadas as repetidas declarações de enfraquecimento da NATO.
Numa entrevista concedida ao The New York Times o presidente eleito chegou a dizer que abandonaria a globalização a favor do nacionalismo americano, além de descrever como iria forçar os aliados a assumirem finalmente os custos da defesa que os Estados Unidos têm suportado ao longo de décadas, apelando a uma maior participação nas despesas militares.
Sabemos que tem sido recorrente esta insistência dos EUA para que os aliados europeus reforcem as suas capacidades militares, alocando, pelo menos, 2% do PIB aos orçamentos da defesa, de acordo com os critérios de avaliação das justas contribuições dos aliados para a segurança coletiva assumidos no fim da guerra fria (burden-sharing). Até agora apenas 5 dos 22 países europeus membros da NATO satisfazem este requisito (UK, Grécia, Polonia, França e Estónia).
Ou seja, para Donald Trump, a América poderia não honrar o artigo V do tratado do Atlântico Norte, que constitui desde sempre a pedra angular da Aliança Atlântica, segundo o qual um ataque a um Estado membro é um ataque contra todos.
Estas como muitas outras declarações foram repudiadas pelos próprios republicanos e do lado europeu poucos acreditam que Trump Presidente dos EUA seja capaz de prosseguir com estas ideias.
No entanto, não podemos ignorar que esta visão de Donald Trump sobre as relações com os aliados europeus corresponde também a convicções de longa data de muitos americanos.
O Inquérito atrás referido demonstra, finalmente, que, de uma maneira geral, os europeus manifestam uma profunda relutância em acreditar que a retórica da campanha eleitoral sobre a redução do papel dos EUA no exterior se venha a traduzir em alterações efetivas da sua política externa.
Opinião contrária é a de muitos comentadores norte-americanos e europeus cientes de que as tendências políticas nos Estados Unidos apontam para que o seu papel no mundo terá de mudar face à inevitável revisão das suas prioridades.
É sua convicção que os americanos aceitariam que, nesta revisão das prioridades externas dos EUA, se inclua um reforço das suas alianças tradicionais e sobretudo da comunidade transatlântica. Exigirão, porém, que os aliados europeus assumam maiores responsabilidades, tanto na sua própria segurança e defesa, como na sua contribuição para a segurança internacional.
Segundo alguns autores, a questão fundamental a que o próximo Presidente dos EUA terá que responder, na área da política externa, não diz respeito à Europa. Será antes a de saber como lidar com a ascensão da China ao nível de potência económica global e potência militar, o que se torna no maior desafio estratégico dos EUA, além de ser um dos fatores mais importantes na construção de uma nova ordem mundial no século XXI.
A NATO – descrita pelo presidente eleito dos EUA Donald Trump como “obsoleta” – não se desintegrará, seguramente, com a sua eleição. No entanto, os gastos europeus com a defesa podem ter de subir mais rapidamente.
As declarações de Donald Trump em que acusa os europeus de não estarem a fazer tanto quanto deviam no âmbito da sua participação da NATO criaram alarme em vários setores, em particular nos que encaram a Rússia como uma ameaça existencial e vêm na NATO a garantia da sua defesa.
Trump sabe, no entanto, que o que diz vai ao encontro de uma maioria da opinião pública americana que se mostra cansada da deficiente distribuição desse esforço militar, apesar de a NATO continuar a ser vista por 77% dos americanos como uma boa aliança.
Aliás, Trump não disse, sobre a repartição dos encargos da NATO “burden Sahring” nada que não tenha sido dito anteriormente, em diversas ocasiões, por políticos e até altos responsáveis da administração americana. Por exemplo, o senador John McCan (Senador Republicano e candidato derrotado por Obama), Robert Gates (Secretário da Defesa) em discurso de despedida em reunião da NATO e o próprio Presidente Obama nas suas viagens à Europa, fazendo apelo aos Europeus para reforçarem os seus investimentos com a defesa.
Estará a resposta a estas questões na Estratégia Global da União Europeia de que temos vindo a falar?
Sim, se houver vontade política dos governos nacionais para concretizar as orientações estabelecidas e reforçar as capacidades de defesas, aproveitando ao máximo oportunidades de investimento em investigação tecnológica e defesa, disponibilizadas pelos fundos europeus num gesto inédito da Comissão Europeia.
É necessária uma decisão oportuna dos líderes europeus e nacionais, antes que seja a pressão da instabilidade e a insegurança que se instalou na vizinhança estratégica da Europa a ditar as medidas a tomar apressadamente.
Tudo será então muito mais complicado.