“A semântica da soberania e a defesa da União Europeia”
Introdução
O discurso da soberania esteve, durante muito tempo, reservado aos círculos nacionalistas. A soberania, nascida na modernidade, foi um conceito fulcral na consolidação da ideia de Estado, na autodeterminação governativa de um Povo e na sua isenção e autonomia face às interferências externas. Contudo, em razão da sua essência, também serviu a perpetuação de confrontos bélicos mediante movimentos de afirmação étnica e nacional. A soberania presta-se a tudo isto porque é um conceito muito próximo das ideias de poder e de autoridade. Ser soberano, seja através de um processo de delegação democrática ou através da usurpação totalitária dos aparelhos do Estado, significa possuir a autoridade para emitir uma ordem e o poder para a executar. Também por isso, enquanto exerce o poder e a autoridade que lhe cabem, o soberano torna-se o responsável pela defesa, proteção e segurança da respetiva população e território.
É sabido que a formação da UE – União Europeia requereu a partilha de parcelas da soberania nacional dos Estados membros. A dita indivisibilidade da soberania tornou-se um artefacto poeirento. Os próprios processos de globalização e interdependência económica – também militar através da participação em alianças, – não eliminou o facto da segurança e da defesa permanecerem como responsabilidades centrais do Estado. Na UE, o poder e as suas diversas manifestações passassem a ser exercidas num sistema multinível sustentado em negociações específicas entre os Estados membros e as respetivas instituições, agências e comités, consoante o assunto e o nível de integração. Assim, a UE definiu-se como um esforço para a paz e para integração dos povos europeus e, em suma, como a antítese do hard power. A meu ver, foi um esforço bem-sucedido.
Não é que a UE e a soberania sejam noções que se excluem mutuamente, mas, postas as observações anteriores, afigura-se pertinente, para esta reflexão, considerar as consequências da recente proliferação da semântica da soberania para a área da defesa.
A semântica da soberania e a defesa da UE
A European sovereignty popularizada por E. Macron, através do discurso da Sorbonne de 2017, representa um compromisso com o processo de integração europeu. A sua origem está relacionada com os enormes desafios da época. A nível interno, a UE vivia, por exemplo, a catástrofe da crise dos refugiados, a consolidação de movimentos políticos eurocéticos, os reveses ao princípio do Estado de direito e o primeiro processo de saída de um Estado membro. A nível externo, a tomada de posse de D. Trump comprometia a posição estratégica da UE, uma vez que os E.U.A. optavam por uma conduta mais protecionista. Estas e outras coisas indicam que a escolha da palavra “soberania” não foi fortuita. Por um lado, a European sovereignty procurava desmitificar a vocação eurocética e nacionalista do conceito, combatendo a crescente retórica populista no interior da UE, especialmente, na véspera das eleições europeias de 2019. Por outro lado, na contingência da perda de um dos seus membros militarmente mais poderosos e perante o comprometimento da defesa europeia no seio da NATO, a aproximação discursiva da UE à soberania representava a necessidade de atingir uma desejável autossuficiência, não só na dimensão da segurança e da defesa, mas em todos os domínios de projeção externa. Isto, como mais tarde se ouvirá, chama-se a necessidade de reaprender a linguagem do poder. Nada melhor para exprimir essa linguagem do que um conceito que, desde T. Hobbes a C. Schmitt, está associado às ideias de afirmação una e indivisível de poder.
O primeiro dos seis pontos de ação traçados pela Iniciativa para a Europa de E. Macron admitia a importância da segurança e da defesa. Partindo desse facto, lê-se: “In defence, Europe needs to establish a common intervention force, a common defence budget and a common doctrine for action”. O apelo à criação de um exército europeu procurava dar um novo fôlego a uma ideia antiga. Porém, na iminência de falta de vontade política e, principalmente, de uma visão de futuro comum entre Estados membros, continua, em 2023, um projeto de difícil execução. De resto, até ao momento, todas as iniciativas para a defesa são escassas e não reproduzem o carácter de urgência em que a UE se encontra, sabendo, claro está, que não é fácil chegar a um consenso entre 27 participantes.
Noutro lugar ainda, E. Macron disse, perentoriamente: “Some will tell you it’s not the right moment. But it’s never the right moment”. A bem ou a mal, a guerra entre a Rússia e a Ucrânia é esse momento certo que materializa aquilo que, em 2017, era, para muitos, uma grande abstração. O próprio conceito de European sovereignty que, em razão do seu tom político, foi ofuscado pelo conceito mais tecnocrático de strategic autonomy, voltou a recuperar alguma proeminência.
Verdadeiramente, não há discordâncias sobre a necessidade da UE garantir a sua autossuficiência nas áreas da segurança e da defesa. No entanto, a questão principal parece ser os termos da relação entre uma UE militarmente ativa e a NATO. Em comparação com 2017, os contornos desta discussão alteraram-se bastante, visto que a presidência de J. Biden contribuiu para a reafirmação do compromisso atlântico dos E.U.A, o que diminuiu, temporariamente, a preocupação com a posição americana. Todavia, apesar de não estar em causa o alinhamento geral com os E.U.A., existem diferenças na maneira de pensar a European sovereignty, especialmente, no que toca às suas implicações para a área da defesa.
A saber, num cenário internacional definido pela rivalidade sino-americana, E. Macron ambiciona afastar a UE de uma lógica de blocos, estabelecendo-a como uma terceira alternativa à predominância da China e dos E.U.A. Seria como uma espécie de fortalecimento do pilar europeu da NATO, deixando em aberto os termos da relação comercial entre a UE e a China. Em parte, esta ideia pode ecoar uma determinada linhagem da política externa francesa, porém, a grandiosidade deste desafio, sobretudo na dimensão tecnológica, deve ser motivo de uma séria reflexão. Do outro lado da discussão, estão os Estados membros de Leste que não equacionam a sua defesa fora do poderio americano e que, de resto, sugerem que as ideias de E. Macron não passam de interesses nacionais camuflados. É que, numa UE a 27, a França é o único país com energia nuclear e com um exército capaz de projeção mundial. A Alemanha, apesar do aumento no orçamento para a defesa, mantém uma certa ambiguidade e continua a comprar armamento americano. Por fim, existem ainda outros líderes nacionais, como V. Órban, que aspiram a uma reforma estrutural da UE porque acreditam que é demasiado morosa e burocrática o que, na conjuntura geopolítica atual, a torna inadequada às necessidades de prontidão de resposta.
Conclusão
Vários especialistas referem que não haverá UE militarizada, fora da NATO. Pessoalmente, tendo a aproximar-me desta posição. A relação ideológica, política, cultural e histórica entre ambas as partes do Atlântico não é passível de contestação e, queira-se ou não, representa um vínculo decisivo. Porém, a questão torna-se mais complexa se a pensarmos do lado avesso. O que fará a UE se uma futura presidência dos E.U.A. coloca em risco a parceria atlântica? Será preciso encontrar um balanço. É inquestionável que a UE precisa de fortalecer a sua ação coordenada e garantir a sua defesa coletiva, mas com isso não deve, idealmente, comprometer a sua presença na NATO. O aumento de capacidade militar da UE deve, sobretudo, ser sinónimo de uma NATO mais forte. Não esquecendo que, por um lado, em caso de conflitos de interesses, os americanos – qualquer que seja o seu presidente – vão dar primazia aos seus objetivos e que, por outro lado, a fomentação de divisões no interior da NATO é um fator de satisfação para a China e para a Rússia. Em todo o caso, estas necessidades só são possíveis através de um repensar dos tratados e da organização institucional da UE.
Se perguntarmos o que sobra desta discussão sobre a função semântica da soberania, porventura, sobrará pouco. Se seguirmos Olaf Scholz, reconfirmamos que os objetivos existem independentes das palavras que os comunicam: “My interest here is not in semantics. After all, what European sovereignty means, in essence, is that we grow more autonomous in all fields”. Creio, ao invés, que o discurso político é capaz de efetivas repercussões na preparação das mentes para a execução de futuras reformas políticas, não sendo uma mera questão acessória. De maneira que, para mim, a apropriação do conceito de soberania para os propósitos integracionistas significa também um reconhecimento indireto da atualidade da conceção vestefaliana das relações internacionais. Ou seja, ao propor a European sovereignty, a UE está a reconhecer a própria perenidade da soberania, no que parece manifestar-se, internamente, num combate retórico à ideia de que a defesa é propriedade exclusiva dos Estados membros e, externamente, numa legitimação da lógica de atuação que encara os Estados como os derradeiros agentes políticos, transmitindo, a aliados e a adversários, uma mensagem de unidade.
30 de novembro de 2023
André Craveiro
EuroDefense Jovem-Portugal
Bibliografia
Barbou des Places, S. (2020) Taking the language of “European sovereignty” seriously. European Papers, Vol. 5, No. 1, pp. 287-297. https://doi.org/10.15166/2499-8249/392
Briançon, P. (2017) 5 takeaways from Macron’s big speech on Europe’s future. Politico, [online] 26 September, Disponível em: https://www.politico.eu/article/5-takeaways-from-macrons-big-speech-on-europes-future/ [Acesso a 23-10-2023]
Emmanuel Macron’s vision of a more muscular Europe is coming true. The Economist, [online] 8 March 2023, Disponível em:https://www.economist.com/international/2023/03/08/emmanuel-macrons-vision-of-a-more-muscular-europe-is-coming-true [Acesso a 20-10-2023]
Lefebvre, M. (2021) Europe as a power, European sovereignty and strategic autonomy: a debate that is moving towards an assertive Europe. Fondation Robert Schumann, European issues, n°582.
Macron, E. (2017) President Macron gives speech on new initiative for Europe. [online] Disponível em: https://www.elysee.fr/en/emmanuel-macron/2017/09/26/president-macron-gives-speech-on-new-initiative-for-europe [Acesso a 20-10-2023].
Pestel, E. (2022) What Remais of Macron’s Sorbonne Speech Five Years Later? Friedrich Naumann Foundation [online] 26 September, Disponível em: https://www.freiheit.org/european-union/what-remains-macrons-sorbonne-speech-five-years-later [Acesso a 20-10-2023]
Verellen, T. (2020) European Sovereignty Now? A Reflection on What It Means to Speak of ‘European Sovereignty’. European Papers, Vol. 5, No. 1, pp. 307-318. https://doi.org/10.15166/2499-8249/383
NOTA:
- As opiniões livremente expressas nas publicações da EuroDefense-Portugal vinculam apenas os seus autores, não podendo ser vistas como refletindo uma posição oficial do Centro de Estudos EuroDefense-Portugal.
- Os elementos de audiovisual são meramente ilustrativos, podendo não existir ligação direta com o texto.