Torna-se crucial inteirar que o incremente e avanço no âmbito da segurança e defesa da UE, esteve sempre de alguma forma embalado pelas circunstâncias do contexto internacional fixado. Inicialmente imbuído por um otimismo que se revelou excessivo sobre uma paz duradoura na Europa, advertido por exigências securitárias que se viriam a verificar após o término da Guerra Fria (1991), com ameaças bem diferentes daquelas reconhecidas no mundo bipolar. Traduzidas quer em novas dinâmicas de conflito (a guerra dos Balcãs), quer na emergência de novas ameaças (o terrorismo, com o 11 de setembro de 2001). Contribuindo ainda com a questão de o fim da NATO ser nessa altura uma possibilidade bem presente.
Como ainda mais tarde, pela redefinição da estratégia geopolítica dos EUA, mais regrada quanto ao seu investimento na Europa, impulsionada por um redireccionamento das suas prioridades estratégicas para palcos afastados da Europa, como a região Indo-Pacífico, pela emergência de novas potências, entre elas a China. Algo que vem impor uma posição de maior intervencionismo dos Estados europeus em matéria de segurança e defesa.
Tais condicionalismos foram incutindo, no intelecto europeu, uma necessária aposta na sua autonomia estratégica como componente fundamental para a sua autossegurança e afirmação como ator securitário de relevo na ordem internacional. Nessa linha de intenção, sinaliza-se a Estratégia Global para a Política Externa e de Segurança da UE de 2016, sob o lema “Visão Partilhada, Ação Conjunta: Uma Europa mais forte” trazendo consigo a renovada missão de uma Europa mais autónoma em matéria de defesa, equilibrando o seu soft power com o hard power, num ambiente cooperativo entre todos os EM e dedicado quer à estabilidade interna quer dos seus Estados vizinhos.
A operacionalização dessa Estratégia é centrada, desde logo, pelo reforço da PCSD, parte integrante da PESC via Tratado de Lisboa, através da criação de mecanismos, como a CEP (Cooperação Estruturada Permanente), a Análise Anual Coordenada da Defesa (AACD), o FED (Fundo Europeu de Defesa), o Mecanismo Europeu de Apoio à Paz (MEAP), e, com última aquisição, a “Bússola Estratégica”, conferindo maior orientação política em matéria de defesa pelo reconhecimento dos desafios atuais e do ambiente estratégico existente.
As controvérsias da criação de um “Exército Europeu”
As tentativas de criação de um “exército europeu” não é assunto novo, podendo-se remeter para o ano de 1952, com a tentativa de criação de uma Comunidade Europeia de Defesa (CED), que, contudo, viu o seu projeto fracassar. Ainda assim a defesa europeia demonstra ganhar, na atualidade, um novo ânimo, com suposições de uma possível materialização do Plano Pleven (preconizador da proposta CED) (Resende, 2023).
Existe nesse sentido várias visões e opiniões sobre o que rodeia e significa o termo “exército europeu”, sendo indispensável compreender aquilo que este incorpora. A verdade é que este “exército” não pode ser visto como um fim em si mesmo, estando inserido em algo maior e muito mais complexo, isto é, a autonomia estratégica da UE como produto final.
Sobre isto, encontram-se vários conceitos que se parecem afunilar numa ideia base “strategic autonomy could also mean the capability to take care of one’s traditional territorial defence” (Vargas, 2017, p. 5). A forma como essa autonomia é alcançada entende-se ancorada em três dimensões relacionadas de forma complementar: a autonomia política, operacional e industrial (Silva, 2018).
Inteirando esta ideia, permanece uma complexidade imersa na capacidade interpretativa que se encontra presente em cada um dos EM relativamente a este objetivo, consoante as motivações estratégicas e o que se considera ser o melhor caminho para alcançar essa mesma autonomia. Veja-se desde logo a convergência que se foi estabelecendo entre a Alemanha e a França para uma maior integração no domínio da defesa europeia, incentivada em grande parte pelo sentimento de insegurança produzido por ciclos de crise contínuos na Europa (a mais recente a guerra na Ucrânia), mas que não por isso, deixou de assumir um traço ideológico-estratégico distinto sobre essa demanda. À medida que a França assume uma posição mais ambiciosa e seletiva sobre as potencialidades dos EM, focada em operações concretas e bem-sucedidas, a Alemanha demonstra uma postura mais inclusiva, com intenções a longo prazo de um aperfeiçoamento das fragilidades encontradas na cooperação securitária e relutante quanto à utilização de forças militares (Pimentel, 2021).
Por outro lado, países como Suécia, Roménia, Finlândia ou, no seu expoente máximo, a Polónia, são Estados com uma visão claramente distinta comparativamente às maiores potências da Europa. Sendo mais céticos quanto à possibilidade de uma defesa europeia comum e cautelosos quanto aos possíveis riscos que poderiam daí advir, tanto nas relações com a NATO como, por derivação, com os EUA. O ministro da Defesa sueco, considerou mesmo o “Exército” Europeu irrelevante, uma vez as necessidades militares serem já garantidas pelas relações transatlânticas, querendo com isto dizer a NATO (Sputnik, 2021).
Deste ponto de vista, parece que qualquer vantagem que se poderia retirar de um maior investimento no I&D ou no incremento da capacitação militar dos EM venha a ser minimizada, uma vez a falta de alinhamento político, penalizando a criação de uma estratégia de defesa comum, guiada por objetivos comuns. Um dos seus efeitos mais expressivos acaba por ser a duplicação e desperdício nos gastos da defesa, reduzindo o pooling and sharing a mera formalidade, o que em nada favorece a interoperabilidade militar precisa (Daehnhardt, 2014).
Veja-se que, apesar dos europeus terem atingido um recorde nos gastos para a defesa europeia em 2021 (214 mil milhões), Josep Borrell, AR e Chefe da AED, sublinha que esses gastos devem ser acompanhados agora por uma maior cooperação, estando essa colaboração entre Estados em défice (European Defence Agency, 2022).
A meu ver o debate sobre uma maior autonomia estratégica da Europa é crucial, não só pelas crises sentidas, acumulando desafios securitários de diversas naturezas (migrações, pandemias, guerras, novos tipos de criminalidade), como pelo intelecto de um continente dependente da capacidade militar do tradicional aliado ocidental, assente na suposição de que os seus interesses estratégicos estarão perpetuamente aliados com os dos europeus, algo, no mínimo, imprudente, mas que nos leva a questionar: qual deverá ser, então, o caminho?
O estabelecimento de uma autonomia estratégica, considerando uma leitura realista sobre o cenário das relações internacionais, parece assumir uma direção necessária. Para aqueles que consideram o fomento do poderio militar europeu uma ameaça às relações com os EUA, este parece ser, ao inverso, uma fonte de consonância com os seus interesses. Tanto pelas vantagens de uma Europa mais forte, representando uma frente de bloqueio às investidas do oriente, como pela capacidade de reforçar o papel da NATO, com a ampliação das forças europeias.
Essa necessidade pode, porém, não ser exequível, receando-se o seu encaixe numa ideia promissora, mas que na prática esbarra com alguns desafios, desfasando o nível de ambição pretendido com a realidade verificada. Tal como refere Melo (2022) permanecem questões importantes por responder (de que forma seria constituído o exército europeu, os comandos das forças, a soberania dos Estados, o financiamento, o modo de recrutamento).
A questão da soberania dos Estados, parece ser negligenciada nos discursos políticos, inclusive, dos defensores do “Exército Europeu” (França). Tal como refere Cudell (2023) é preciso analisar bem essa trocar de soberania por proteção, especialmente nas pequenas potências, onde, no caso português, significaria a perda da Zona Económica Exclusiva.
Em suma, parece que mais importante e realista do que estabelecer uma autonomia estratégica efetiva – algo que, exigindo a transcendência dos interesses nacionais para o comunitário, levaria algumas décadas, na melhor das hipóteses – é o foco no melhoramento da defesa em áreas como um melhor investimento e tratamento dos recursos militares e o direcionamento das atuações para objetivos comuns ainda que sob a dependência do poder decisório dos EM.
Nessa linha, algumas iniciativas já deram os primeiros passos, como a EDIRPA, estabelecida com o objetivo de aquisição de equipamentos militares conjuntos, ou ainda a “Bússola Estratégica”, estabelecendo as responsabilidades que devem ser tomadas em conjunto na União até 2030. A interoperabilidade assume-se a chave para o reforço da capacidade de defesa europeia no futuro próximo, colocando dúvidas ao engendro de algo mais vinculativo do que isso no presente momento.
30 de novembro de 2023
João Oliveira
EuroDefense Jovem-Portugal
Cudell, F. (2023, julho 03). A necessidade e as implicações de um Exército Europeu. Observador. https://observador.pt/opiniao/a-necessidade-e-as-implicacoes-de-um-exercito-europeu/
Daehnhardt, P. (2014). A Parceria União Europeia-NATO: A Persistência de uma Relação Complexa. Nação e Defesa, (137), 45-73. https://comum.rcaap.pt/bitstream/10400.26/14686/1/DAEHNHARDTPatricia_A%20parceria%20Uni%c3%a3o%20Europeia_NATO_Na%c3%a7%c3%a3o%20e%20Defesa_N137_2014_p_45_73.pdf
European Defence Agency (2022, dezembro 08). Gastos europeus com a defesa ultrapassam pela primeira vez os 200 mil milhões de euros. https://eda.europa.eu/news-and-events/news/2022/12/08/european-defence-spending-surpasses-200-billion-for-first-time-driven-by-record-defence-investments-in-2021
Melo, N. S. (2022, dezembro 13). A utopia perigosa de um “Exército” Europeu. Observador. https://observador.pt/opiniao/a-utopia-perigosa-de-um-exercito-europeu/
Pimentel. R. A. M. (2021). A Segurança e Defesa na Europa: o Exército Europeu um futuro (in)certo. [Dissertação de Mestrado]. Universidade dos Açores. https://repositorio.uac.pt/bitstream/10400.3/6375/1/DissertMestradoRuiAlexandreMeloPimentel2022.pdf
Resende, M. (2023, maio 05). É este o exército europeu?. Observador. https://observador.pt/opiniao/e-este-o-exercito-europeu/
Silva, T. D. H. (2018). A Autonomia Estratégica e a Defesa Europeia. Proelium VIII, (1), 189-214.
Sputnik. (2021, setembro 05). Suécia rejeita criação de Exército europeu. Diplomacia Business. https://www.diplomaciabusiness.com/suecia-rejeita-criacao-de-exercito-europeu/
Vargas, G. (2017). Towards European Strategic Autonomy? Evaluating the New CSDP Initiative. Institute For Foreign Affairs and Trade. https://www.academia.edu/34771843/Towards_European_Strategic_Autonomy_Evaluating_the_New_CSDP_Initiatives
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