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Alterações climáticas, potencial económico e riscos estratégicos: os domínios da Segurança no Ártico

O Ártico sempre foi visto como uma região inexplorável, apelidado por muitos da “A última fronteira”, sendo que o seu potencial geoestratégico foi constantemente desvalorizado, por um lado pelas dificuldades de exploração económica devido à ausência de tecnologia adequada à realidade da região, e por outro lado pelos complexos desafios que as condições naturais da região apresentavam para o estabelecimento humano permanente.

O final do século XIX assinalou uma mudança de paradigma face ao Ártico: deixaria de ser uma região recheada de mistério para passar a ser uma região cheia de potencial: os Estados Unidos e o Canadá começam a apresentar um maior interesse na região, reconhecendo o seu potencial económico. Ao mesmo tempo, a Rússia sentiu financeiramente o potencial do Ártico no que diz respeito a recursos naturais, abrindo a porta à exploração de carvão, diamantes, níquel e bronze. Os olhares começavam agora a direcionar-se para a exploração comercial de petróleo e gás natural, mas só em 1967 foi descoberto aquele que seria, à altura, o maior campo petrolífero dos Estados Unidos: Prudhoe Bay, no Alaska. Nos anos 70 começam também explorações na Sibéria, e hoje em dia têm também sido desenvolvidas no Canadá e na Noruega em grande escala.

O potencial económico e, consequentemente, geoestratégico do Ártico não é uma questão linear nem pode ser analisada sem ter em conta uma série de variantes. Primeiro, os dados: é estimado que o Ártico detenha 13% dos depósitos não descobertos de petróleo e 30% dos depósitos de gás natural no globo (US Geographical Survey, 2008). Os hidrocarbonetos representam uma porção relevante do valor económico do Ártico, mas não é de descurar a presença de diamantes, ouros, níquel, rubis, urânio, zinco e bauxite (Domingues et al, 2018: 23).

Nem só de recursos naturais se faz o Ártico: as alterações climáticas criaram condições perfeitas para a abertura de rotas marítimas que podem ser alternativas baratas a uma série de rotas de transporte atuais com custos substancialmente mais altos, como aquelas que cruzam o canal do Suez ou do Panamá (Miklola et al, 2013: 6). Apesar dos desafios à navegação no Ártico persistirem, a possibilidade de existirem rotas de transporte (inicialmente regionais, mais tarde transcontinentais) no Oceano Ártico e nos seus variados mares vizinhos é real, nomeadamente resultante das atividades de exploração energética e mineira crescente na região. Todo um conjunto de setores económicos beneficiaram desta realidade: a indústria da Energia e da construção naval, para nomear algumas. O degelo do Ártico é uma tragédia ambiental repleta de potencial económico para as nações árticas (Canadá, Noruega, Dinamarca, Finlândia, Suécia, Rússia, Estados Unidos, Islândia).

Grande potencial económico vem acompanhado de grandes perspetivas de investimento. Estima-se que os investimentos na região possam ir desde os 100 aos 225 mil milhões de euros (Lloyd’s, 2012) nos próximos anos, relacionados maioritariamente com a exploração de recursos não-renováveis e pelo subsequente desenvolvimento de infraestrutura de suporte para tal.

A prospeção do valor económico do Ártico não é linear. Existem uma série de variáveis que podem desviar o valor económico energético do Círculo Ártico, sendo que não é de descurar a mudança dos paradigmas energéticos globais: a passagem do consumo energético exclusivo de recursos não-renováveis para energia renovável e “verde” de forma acelerada pode mudar as dinâmicas económicas do Ártico. A esta variável juntam-se outras de muito maior imprevisibilidade: o ritmo das alterações climáticas e o seu efeito no degelo ártico; a governação multilateral do Ártico e os seus interesses conflituantes; o aumento do conhecimento regional do Ártico, suprindo falhas de conhecimento que ainda persistem através da ciência e da tecnologia; o desenvolvimento de outras atividades de cariz económico e estratégico na região, como é o caso do turismo e da exploração científica e ainda o potencial das energias renováveis na região (solar, hidráulica e eólica), se a sua exploração tiver viabilidade financeira. Não é, portanto, de estranhar que o maior relevo económico e geopolítico do Ártico venha acompanhado de um reforço do papel estratégico do Conselho do Ártico, o fórum intergovernamental inicialmente dedicado à proteção do meio ambiente e que ganha cada vez mais um papel político na gestão ativa da região (Guedes, 2016, pág. 160).

Geoestrategicamente e economicamente, o potencial do Ártico está claro para as diferentes nações com interesse na região. Este interesse tem levado a uma mudança clara na perspetiva militar da “última fronteira”, com os reajustamentos estratégicos e presença militar a aumentarem com o aumento da relevância da região (Ferrão, 2018). É importante registar que no capítulo diplomático e militar, o Ártico tem sido marcado pela cooperação e bilateralidade, existindo uma convivência de paz na região que pode vir a ser ameaçada pelo crescente interesse militar (Hubert et al, 2018), nunca esquecendo que na região convivem potências militares de enorme relevância à escala mundial, como é o caso dos Estados Unidos e da Rússia.

A cooperação vivida no Ártico enfrenta agora desafios significativos, com o aumento do potencial da região e com a possibilidade da segurança regional do Ártico poder não ser meramente regional e poder ser mundial.

Um dos maiores desafios centra-se no novo clima de inimizade e na ameaça à coexistência pacífica entre Estados Unidos e Rússia. As duas nações endureceram posições após a invasão da Crimeia em 2014 e, com a invasão do território ucraniano já no presente ano, o choque de posições entre o governo russo e a administração americana escalou para níveis não observados desde a Guerra Fria. A este ingrediente junta-se o maior reconhecimento dos interesses estratégicos do Ártico para a política externa de ambas as nações.

Um segundo desafio adivinha-se ainda de mais complexa resolução: existe um interesse maior de estados não-árticos na região. A liderar uma nova vaga de interesse está a China, mas os estados asiáticos do Japão, Coreia do Sul e Singapura, e ainda alguns países europeus, como França, Holanda, Itália, Alemanha, Reino Unido e Polónia também representam esta nova vaga de interesse estratégico na região. (Lanteigne, 2019)

A relevância geoestratégica do Ártico viveu os seus “anos dourados” durante a Guerra Fria, mas, devido a uma conjugação de fatores, o Ártico volta a ter um papel de destaque na geoestratégia mundial hoje. As questões de segurança na região prendem-se maioritariamente com as áreas científicas e económicas: cooperação científica, preservação do meio ambiente, exploração económica sustentável e integração das populações (Domingues et al, 2018, pág. 30).

Um dos países que deposita no Ártico maior expetativa face ao seu potencial económico tem sido a Rússia. Sucessivamente isolada pelo Ocidente devido ao efeito das sanções económicas na sua já frágil economia, o regime de Putin tem encontrado no Ártico um refúgio de exploração económica alternativa, apoiada na possibilidade de uma nova rota marítima no Mar do Norte, um estímulo ao comércio euro-asiático e através da exploração energética que tem um peso significativo na estrutura económica russa, totalizando mais de 60% das exportações russas em 2021 (Trading Economics, 2021). Este isolamento ocidental vai além da posição americana e europeia face ao conflito armado na Ucrânia, sendo que uma série de instituições importantes na governação do Ártico, como é exemplo o Conselho do Ártico, o Conselho de Ministros Nórdico e o Conselho Económico do Ártico já condenaram abertamente a invasão, sinalizando ainda um maior isolamento russo na região.

Não só a China parece estar a aumentar os seus interesses estratégicos no Ártico, como parece estar a desenvolver esses interesses em conjunto com a Rússia. Numa declaração conjunta (Xinhua News, 2022) os dois países anunciaram as bases para maior cooperação bilateral, no qual o Ártico é parte integrante. A posição mais ativa da Rússia face ao Ártico e o interesse crescente da China em promover estratégias de diplomacia científica na região levaram os Estados Unidos a endurecer a sua posição sobre o Ártico. Do ponto de vista militar isso traduziu-se em mais exercícios militares e num reforço da inovação tecnológica da Segunda Armada da Marinha Americana, para capacitar a mesma para melhor operar no Ártico e, ainda, a renovação da base de Keflavik, na Islândia, desativada desde 2016 (Lanteigne, 2019). Também a retórica americana segue a mesma linha de pensamento do ramo militar, com uma posição mais perentória e ambiciosa na região, acompanhada por um discurso que alerta para as ambições russas e chinesas no Ártico.

É importante ainda destacar que das 8 nações árticas, 5 das mesmas pertencem à NATO. A presença da Aliança nas nações árticas pode ainda estender-se para a Finlândia e Suécia, que anunciaram recentemente o seu interesse em aproximar-se da NATO. A aliança militar ganhou um propósito renovado e uma influência na esfera política bastante significativa após a invasão russa da Ucrânia, acrescentando aqui mais um palco de confronto geopolítico entre o bloco da NATO e o bloco russo, que encontra na China um aliado estratégico importante nesta questão.

A NATO tem agendado para o mês de fevereiro e março deste ano exercícios militares na região, liderados pelas Forças Armadas Norueguesas (Cold Response, 2022) e que irão fazer testes a nível terrestre, marítimo e aéreo. Aproximadamente 30 mil tropas irão participar nestes exercícios militares.

Entramos agora no capítulo da geoestratégia militar. Dois grandes capítulos do ponto de vista militar sublinham a importância do Ártico: a relevância dos mísseis convencionais de médio e longo alcance para a Rússia e a importância das linhas de comunicação do Atlântico Norte para a NATO, crucial para a defesa europeia (Mikkola, 2019: 5).

Os últimos anos têm marcado uma alteração da visão estratégica militar para o Ártico por parte da Rússia, estratégia esta englobada numa agenda de política externa marcadamente mais agressiva nos últimos anos. Esta mudança no Ártico consistiu num aumento da presença militar na região, alterando os pressupostos predominantes de exploração económica da região conviverem agora com a vertente militar.

O Ártico representa uma área estratégica do ponto de vista militar de importância primordial para o regime de Putin. A frota norte da marinha russa concentra mais de 80% da capacidade militar nuclear marítima da Rússia (Conley et al, 2015: 12), uma ilustração perfeita do peso da região na estratégia militar do país. A estratégia russa (que já provém da era soviética) de desenvolver bastiões que resguardem as suas capacidades nucleares em enclaves marítimos fechados encontra no Ártico um espaço de convergência perfeito, assegurando não só uma proteção geográfica clara com a camada de gelo ártica, bem como um espaço amplo para experimentação militar que anda lado a lado com a campanha de modernização que o país tem empregado gradualmente nos seus pressupostos de segurança.

É impossível dissociar a presença militar russa no Ártico dos seus objetivos geoestratégicos, nomeadamente em relação aos países nórdicos. A estratégia russa passa não só por uma perspetiva de dissuasão de uma possível expansão da NATO para os países nórdicos (Finlândia e Suécia) e ainda criar condições para um dificultar de exercícios militares ocidentais na região, sob o argumento de colocarem em risco a presença militar russa na região.

Olhando para o posicionamento da NATO no Ártico, existe uma ausência de planeamento estratégico para a região. Olhando para o Strategic Concept 2020, documento estratégico mais recente que define o posicionamento estratégico da Aliança para a próxima década, não existe sequer menção à região (NATO, 2010) A mesma posição se mantém se olharmos para o documento estratégico da década anterior. Os interesses conflituantes dos seus membros são parte da explicação para este distanciamento estratégico: a Noruega reivindica a presença da NATO na região, motivada nomeadamente pelas iniciativas militares russas nos seus territórios árticos, enquanto que uma fação da NATO, encabeçada pelo Canadá, defende a continuidade da “regionalização” do Ártico, uma estratégia que pretende evitar uma provocação à Rússia e impedir uma escalada de tensões na região (Mikkola, 2019, pág. 6).

Estas posições estão claramente a ser reequacionadas após o escalar de tensões entre o Ocidente e a Rússia fruto da invasão à Ucrânia. Será interessante acompanhar como a posição da NATO se vai alterar no pós-conflito, e de que forma é que, face aos exercícios nucleares recentes no Mar de Barents pela Rússia já durante a invasão ucraniana, pode haver um reajustar dos olhares da Aliança para a região como um eixo fundamental de defesa ocidental.

Um aumento da presença da NATO no Ártico pode partir da necessidade crescente de defesa dos seus membros, reconhecida no orçamento de defesa particularmente dos países nórdicos. A Noruega, a título de exemplo, dispende 1.68% do seu orçamento em Defesa em 2021 (Macro Trends, 2019), valor mais alto desde 2014 no país e que representa uma subida de quase 25% em termos relativos face a 2015. A Finlândia e a Suécia apresentam também uma tendência ascendente de despesa relacionada com a defesa, alinhado com aquilo que tem sido a posição dos países nórdicos face a uma preocupação com a crescente retórica bélica da Rússia.

É importante refletir que a falta de planeamento estratégico delineado para a região não vai de encontro às ações militares na região. A NATO realizou recentemente um dos maiores exercícios militares no Ártico, envolvendo mais de 50 mil soldados, marcado pelo regresso de um porta-aviões americano ao Círculo Ártico, algo que já não acontecia há cerca de 30 anos (NATO, 2018). As várias dimensões da guerra moderna também se cruzam no Ártico, com o ciberespaço gradualmente a acrescentar uma nova dimensão às tensões na região.

Em jeito de conclusão, o Ártico parece estar a recuperar a sua importância no capítulo geoestratégico e de segurança no panorama internacional, motivado por uma série de fatores, dos quais é importante destacar o renovado interesse económico na região, o aumento da presença militar russa no Ártico e a procura de tornar a região num hub de desenvolvimento de tecnologia militar. A resposta da NATO a esta mesma relevância que a Rússia está a dar ao Círculo Ártico não pode também ser descurada, consciente da ameaça que a mesma representa para os países nórdicos e para a segurança europeia, bem como para a sua infraestrutura de comunicações chave na região.

Não é possível dissociar a ascensão da posição do Ártico a nível internacional com a entrada das ambições chinesas neste quadrante, o que, inevitavelmente, gera a atenções redobradas por parte dos Estados Unidos e da Rússia, ainda que com posições contrastantes face ao interesse chinês no território ártico. O Ártico como palco marcado pela paz e convivência pacífica pode estar em causa se as dinâmicas de segurança e os interesses contrastantes levarem a um escalar progressivo da tensão militar na região, adicionando mais uma ameaça à “última fronteira”, também ela assolada pelos fortes efeitos das alterações climáticas e da exploração económica atual por parte de diferentes agentes públicos e privados.


22 de março de 2022

Miguel Ferreira
EuroDefense Jovem-Portugal


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NOTA:

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