As ameaças híbridas são crescentemente uma razão de preocupação para a União Europeia e os seus Estados membros. No entanto, este é um termo sem uma definição consensual, questão esta derivada, em parte, da natureza altamente mutável e variada destas ameaças (Comissão Europeia, 2016). Neste sentido, esta reflexão pretende, acima de tudo, clarificar o que constituem ameaças híbridas, partindo depois para uma visão geral do seu combate no contexto da União Europeia.
Apesar de não haver uma definição consensual de ameaças híbridas, existe uma certa unanimidade quanto às características que as distinguem, nomeadamente no contexto europeu. Assim, partindo da conceptualização oficial das instituições europeias, presente no ‘Quadro comum em matéria de luta contra as ameaça híbridas’, ameaças híbridas são:
“a combinação de atividades coercivas com atividades subversivas, de métodos convencionais com métodos não convencionais (ou seja, diplomáticos, militares, económicos, tecnológicos) que podem ser utilizados de forma coordenada por intervenientes estatais ou não estatais para atingir objetivos específicos, mantendo-se, no entanto, abaixo do limiar de uma guerra formalmente declarada. Em geral, coloca-se a ênfase na exploração das vulnerabilidades do objetivo e na criação de ambiguidade para entravar o processo de tomada de decisões.” (Comissão Europeia, 2016, p. 2).
Ou seja, o termo ameaça híbrida não se refere a uma única ação, mas sim a um conjunto delas, que no seu todo são consideradas híbridas por, tal como a palavra indica, conjugarem diferentes tipos de ações (como desinformação, ciberataques, espionagem, sabotagem, campanhas militares, entre outros). Estas ações, para além de poderem ser de um âmbito coercivo ou subversivo, convencional ou não convencional (e.g. campanhas de desinformação, ataques informáticos), podem ainda ser visíveis para os seus alvos, ou encobertas, evitando assim a sua deteção (Andersson & Tardy, 2015).
Esta conjugação de variadas ações dá origem um importante elemento das ameaças híbridas: a sua ambiguidade. Os atores híbridos procuram “esbater as fronteiras tradicionais da política internacional e operam nas interfaces entre o externo e o interno, o legal e o ilegal, e a paz e a guerra” (Hybrid CoE, n.d.). Na prática, a ambiguidade dificulta a atribuição, ou seja, a identificação do autor da ação com recurso a provas, o que, por sua vez, cria consideráveis impedimentos a uma resposta dentro dos trâmites do Direito Internacional por parte dos Estados atacados (Costa, 2021). Um bom exemplo para demonstrar as dificuldades a nível da atribuição e resposta são as campanhas de desinformação. Estas campanhas são muitas vezes desenvolvidas com recurso a falsos sites noticiosos, assim como múltiplas contas em redes sociais, parecendo, deste modo, apenas um fenómeno de usuários da internet e não uma campanha concertada por parte um ator híbrido com vista a atingir objetivos específicos. Deste modo, mesmo que seja possível identificar o autor das campanhas, não é possível ligar diretamente as contas individuais e sites de desinformação a um ator estatal ou não-estatal, o que impede a atribuição e resposta.
Adicionalmente, tendo em conta a ambiguidade e a confusão que caracterizam as ameaças híbridas, é necessário para além de identificar as ações desenvolvidas, entender as ligações e associações entre estas, assim como conhecer as peculiaridades do ator híbrido, de modo a se inferir os objetivos do ator (Costa, 2021) – um puzzle complexo que muitas vezes não é resolvido na sua totalidade.
Apesar de estas ameaças não serem um fenómeno recente, sendo estas táticas utilizadas durante a Guerra Fria (Andersson & Tardy, 2015), o contexto atual é particularmente propício à sua utilização e impacto. Em primeiro lugar, o momento atual é marcado pela transição de poder em curso no sistema internacional, com a decadência dos EUA e a ascensão da China. Este contexto é caracterizado por uma maior conflitualidade e luta por influência entre as potências, revelando-se as ameaças híbridas como um veículo para os Estados autocráticos enfraquecerem sociedades democráticas e os seus valores, num jogo de soma nula em que a exploração das vulnerabilidades do alvo se torna uma fonte de força para o ator híbrido (Hybrid CoE, n.d.). Em segundo lugar, os desenvolvimentos tecnológicos e o uso generalizado de redes sociais proporcionam aos atores híbridos um ambiente fértil para as suas ações, através de meios mais eficazes, mais económicos e com menores riscos de atribuição (Costa, 2021; Hybrid CoE, n.d.). Estas circunstâncias possibilitam que os atores híbridos tenham consideravelmente mais poder sobre os seus alvos do que se forem apenas considerados meios convencionais.
Face a este panorama preocupante, a União Europeia adotou em 2016 o já mencionado ‘Quadro comum em matéria de luta contra as ameaças híbridas’ (Comissão Europeia, 2016). Este quadro clarifica que, por se tratar de uma questão de segurança nacional, o combate às ameaças híbridas é primariamente uma responsabilidade dos Estados Membros, no entanto reconhece a importância de uma resposta coordenada a nível da UE, visto que muitas das ameaças enfrentadas são comunitárias. Neste sentido, o quadro define um conjunto de medidas destinadas a melhorar a coordenação, das quais se destacam a criação do EU Hybrid Fusion Cell – um centro de intelligence dedicado somente às ameaças híbridas, com vista à análise e partilha de informações dos Estados Membros – e a iniciativa de criação de um Centro de Excelência destinado a combater ameaças híbridas. Este Centro de Excelência, apelidado The European Centre of Excellence for Countering Hybrid Threats (Hybrid CoE), foi estabelecido como um centro de excelência conjunto da UE e da NATO em 2017, após o apoio à iniciativa expresso na Declaração Conjunta UE-NATO de 2016 (Presidente do Conselho Europeu, Presidente da Comissão Europeia e Secretário-Geral da Organização do Tratado do Atlântico Norte, 2016), que define as ameaças híbridas como uma área de cooperação prioritária. Em 2018, a Comunicação Conjunta ‘Aumentar a resiliência e reforçar a capacidade de enfrentar ameaças híbridas’ (Comissão Europeia, 2018a) define medidas adicionais com vista a melhorar a resposta da UE e seus Estados Membros. A esta estratégia de combate às ameaças híbridas adicionam-se múltiplos quadros setoriais em áreas como a desinformação (Comissão Europeia, 2018b) e a cibersegurança (Comissão Europeia, 2020a).
A crise pandémica e a sua instrumentalização pelos atores híbridos com vista à desestabilização das sociedades europeias trouxeram uma renovada consciência da ameaça e da consideração que para a combater será necessário fomentar a resiliência e a participação de todos os setores dos governos (whole-of-government) e das sociedades (whole-of-society), tanto a nível nacional como europeu. Estas reflexões expressas na Estratégia da UE para a União de Segurança (Comissão Europeia, 2020b) e nas Conclusões do Conselho de Dezembro de 2020 (Conselho da União Europeia, 2020), procuram, concretamente, a integração no quadro geral de elaboração de políticas nacionais e europeias de considerações sobre ameaças híbridas, assim seguindo uma abordagem inclusiva que visa consciencializar e criar resiliência em todas as frentes.
04 de fevereiro de 2022
Rita Costa
EuroDefense Jovem-Portugal
Referências
Andersson, J. J. & Tardy, T., 2015. Hybrid: what’s in a name?, Paris: European Union Institute for Security Studies.
Comissão Europeia, 2016. Comunicação Conjunta ao Parlamento Europeu e ao Conselho – Quadro comum em matéria de luta contra as ameaças híbridas: uma resposta da União Europeia. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:52016JC0018&from=EN
Comissão Europeia, 2018a. Comunicação Conjunta ao Parlamento Europeu, ao Conselho Europeu e ao Conselho – Aumentar a resiliência e reforçar a capacidade de enfrentar ameaças híbridas. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:52018JC0016&from=PT
Comissão Europeia, 2018b. Joint Communication to the European Parliament, the European Council, the Council, the European Economic and Social Committee and the Committee of the Regions – Action Plan against Disinformation. Disponível em: https://eeas.europa.eu/sites/default/files/action_plan_against_disinformation.pdf
Comissão Europeia, 2020a. Joint Communication to the European Parliament and the Council – The EU’s Cybersecurity Strategy for the Digital Decade. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/PDF/?uri=CELEX:52020JC0018&from=EN
Comissão Europeia, 2020b. Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social e ao Comité das Regiões sobre a Estratégia da UE para a União de Segurança. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:52020DC0605&from=EN
Conselho da União Europeia, 2020. Council conclusions on strengthening resilience and countering hybrid threats, including disinformation in the context fo the COVID-19 pandemic. Disponível em: https://data.consilium.europa.eu/doc/document/ST-14064-2020-INIT/en/pdf
Costa, R., 2021. Hybrid Threats in the Context of European Security – Report of the international conference organized at the National Defence Institute (IDN) on 18 May 2021 under the framework of the Portuguese Presidency of the Council of the European Union. Instituto da Defesa Nacional (IDN E-Briefing Papers).
Hybrid CoE, n.d.. Hybrid threats as a concept.
Disponível em: https://www.hybridcoe.fi/hybrid-threats-as-a-phenomenon/
Presidente do Conselho Europeu, Presidente da Comissão Europeia e Secretário-Geral da Organização do Tratado do Atlântico Norte, 2016. Joint Declaration by the President of the European Council, the President of the European Commission, and the Secretary General of the North Atlantic Treaty Organization. Disponível em: https://www.consilium.europa.eu/media/21481/nato-eu-declaration-8-july-en-final.pdf