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Introdução

A província de Cabo Delgado situa-se no norte de Moçambique, a mais de 1600 quilómetros da capital, Maputo. Em 2017 assistiu ao despoletar de um violento conflito armado que é hoje responsável por perto de 1 milhão de deslocados internos, segundo os mais recentes dados da Organização Internacional para as Migrações (OIM) e mais de 4.000 mortes de acordo com o projeto ACLED (Armed Conflict Location & Event Data Project). A autoria dos sucessivos ataques levados a cabo ao longo dos últimos cinco anos é reivindicada pelo grupo terrorista “Ansar-Al-Sunaa” (conhecidos em Moçambique por “mashababos”), que possui ligações com o autoproclamado Estado Islâmico e que conduz a sua ação por via de violentos ataques a aldeias e aos residentes, incluindo os próprios islamitas. A província de Cabo Delgado possui uma enorme reserva de gás natural, sendo por isso palco de um número muito significativo de investimentos privados de grandes dimensões que contrastam em larga escala com os índices de pobreza da região, uma das mais pobres do país. Nos últimos anos, o papel da comunidade internacional tem sido fundamental no apoio direto a Cabo Delgado, não só ao nível do auxílio de Estados vizinhos como o Ruanda ou, numa maior proximidade, a Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC), mas também proveniente de países Ocidentais como Portugal, Estados Unidos da América ou a própria União Europeia. Os últimos contornos revelam uma melhoria nas condições de segurança ilustrada na reabertura dos serviços públicos em regiões mais afetadas, como é exemplo o distrito de Mocímboa da Praia, apesar de um eventual cenário de paz parecer ainda bastante distante.

Não obstante a pertinência de outras teorias, é evidente que as motivações que suscitaram o conflito em Cabo Delgado são de natureza religiosa e seguem uma ideologia e um modelo civilizacional próprio inspirado nas interpretações mais radicais do Islamismo, nomeadamente nos termos do movimento salafita, procurando implementar na população os seus costumes e hábitos religiosos e também sociais, como explica Fernando Jorge Cardoso, especialista em assuntos africanos. Existe, porém, um conjunto de outros fatores que influenciam o desenrolar do conflito em Cabo Delgado. Sendo certo que os cérebros do grupo que atormentam a região são provenientes de outros países como a Tanzânia em conjunto com indivíduos moçambicanos radicalizados, um dos grandes motores da ação terrorista prende-se com o recrutamento de jovens moçambicanos que veem na adesão uma oportunidade para atingir melhores níveis de vida, irrealistas numa comunidade que evidencia dificuldades em acompanhar o desenvolvimento que se verifica em outras partes do país e que, de certa forma, se sente abandonada e distante do governo central.

Soluções

O desenrolar dos acontecimentos em Cabo Delgado despertou o governo de Maputo, que adotou, desde cedo, uma postura fortemente direcionada para uma resposta armada, que revelar-se-ia insuficiente, pouco organizada, reveladora da falta de preparação e de equipamento das forças militares moçambicanas, e ao mesmo tempo marcada pela contratação de empresas de segurança privada estrangeiras, que mais serviram para prestar segurança aos investimentos relacionados com o gás natural do que propriamente para combater efetivamente a ameaça terrorista. De certa forma, o comportamento belicoso assumido pelas entidades governativas de Moçambique levanta algumas questões quanto à sua eficácia tendo em conta as especificidades que compõem a dinâmica terrorista sentida na região.

A adesão em grande escala de jovens moçambicanos parece ser motivada mais por uma questão de revolta face às falhas do modelo governativo, afastando-se, em parte, de matrizes religiosas fundamentalistas. Neste contexto, as soluções e os mecanismos de resposta ao terrorismo devem ser equacionados além do combate armado por si só. O diálogo, a proximidade e o investimento na população de Cabo Delgado devem complementar a ação militar no combate ao terrorismo, sobretudo no seio desta fação jovem que luta pela sua sobrevivência mais do que luta por ideais ou por uma identidade.

Por sua vez, o diálogo direto com a associação terrorista, cenário já mencionado por alguns analistas, parece constituir uma possibilidade menos viável por duas razões essenciais: por um lado, seria naturalmente desafiante dialogar com um tipo de estrutura que carece de um líder assumido e, portanto, de um rosto com o qual seja possível chegar a alguma via de consenso; numa outra visão, é difícil crer ser possível chegar a pontos e considerações comuns, sabendo antecipadamente da existência de posições antagónicas, para além de ser fictício pensar que o grupo terrorista reúne disponibilidade para iniciar algum tipo de conversação.

No que diz respeito às propostas de soluções para o conflito no norte de Moçambique existem ainda outros aspetos a considerar que complementam o diálogo e a ação da força militar. Neste ponto, olhemos para o papel dos atores oriundos do próprio continente africano, que devem olhar para uma ideia de paz em Cabo Delgado como forma de garantir também a paz e a segurança no continente africano como um todo. O Institute for Security Studies (ISS Africa) através de uma das suas publicações aponta para a coordenação como o fator crucial para uma solução em Cabo Delgado. Efetivamente, os diferentes atores africanos devem adotar uma postura de colaboração mútua e maior capacidade de organização, desenvolvendo a comunicação entre partes envolvidas, cooperando com vista a desenvolver uma solução de longo prazo para o conflito na região e trabalhar no sentido de intervir junto das populações com o objetivo de evitar recrutamentos.

Papel do Ocidente

Face às notórias dificuldades do Governo de Maputo em conter as ofensivas terroristas, a importância do apoio da comunidade internacional e de atores externos Ocidentais adquire um ainda maior significado, particularmente se tivermos em consideração as debilidades na estrutura e organização de entidades do continente africano, como no caso da União Africana (UA), cuja reação às diferentes fases do conflito nem sempre ocorreu a tempo e teve, por vezes, influência limitada, considerando a dimensão da organização no quadro do continente. Assim, Estados como os EUA ou Portugal contribuíram significativamente em termos do fornecimento de equipamento e da capacitação das impreparadas forças moçambicanas, através de treinos conjuntos e partilhas de experiências militares. A formação com vista à contenção da ameaça conta também com a ajuda da União Europeia, que lançou no final do ano transato a Missão de Formação Militar da União Europeia em Moçambique, que resulta de um esforço conjunto de Estados-Membros da UE. O papel do Ocidente desenrola-se, do mesmo modo, na vertente humanitária, onde o elevado número de deslocados desencadeia situações de pobreza extrema, fome e propagação de doenças. Destaca-se ainda o papel das ajudas financeiras, que auxiliam a componente militar e na salvaguarda das populações afetadas, como é exemplo a recente notícia de um apoio adicional por parte da União Europeia a Moçambique no valor de 15 milhões de euros.

O interesse em garantir a paz na província de Cabo Delgado tem vindo a ser uma prioridade na agenda da UE, mesmo depois de uma fase inicial em que a pandemia Covid-19 ofuscou a problemática vivida. Recentemente, o Alto Representante da União Europeia para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança afirmou que na ótica da União “um Moçambique seguro e próspero dará um contributo importante para a segurança, a paz e a prosperidade de todo o mundo – e também nossa”, declaração que enfatiza a ideia de um sistema internacional disciplinado capaz de servir e beneficiar todos, também numa perspetiva de multilateralismo e cooperação. Adicionalmente, situações como a que sucede em Cabo Delgado podem vir a trazer consequências no seio da própria União Europeia, no que concerne, por exemplo, a refugiados de guerra que migram para solo europeu, fator que tem gerado discussão, cisões internas e problemas logísticos para a UE, sendo, portanto, do seu maior interesse minimizar este tipo de ocorrências. Por outro lado, é também importante considerar os exemplos em que conflitos localizados e distantes da realidade europeia se expandem e tomam outras proporções, afetando de maneira mais ou menos direta todo o globo: a atual guerra na Ucrânia é prova clara de um problema localizado que tem implicações em todo o mundo, designadamente, no fornecimento de cereais. É igualmente esta amplificação que um conflito pode atingir que deve alertar não só a Europa, mas a generalidade dos Estados, tendo em conta a dinâmica de um mundo globalizado.

No seguimento do raciocínio que invoca a prática de uma estratégia de diálogo como via de resolução, os atores ocidentais devem empenhar-se em estabelecer mecanismos de comunicação no interior das populações afetadas com vista a procurar opções para esfriar revoltas violentas de indivíduos radicalizados e precaver uma possível nova investida no recrutamento de jovens.

Atual Cenário

A situação em que se encontra atualmente o conflito de Cabo Delgado transmite a ilusão de uma acalmia no cenário dos ataques. Na verdade, o clima de segurança na região sofreu consideráveis progressos no decorrer do ano de 2021, conjuntura que se estendeu ao presente ano civil e surge por consequência das intervenções militares bem-sucedidas por parte das tropas provenientes do Ruanda no âmbito da missão militar da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SAMIM). Factualmente, o clima de violência na região melhorou substancialmente com a chegada destas tropas que aterrorizam o grupo terrorista islâmico. Fontes do próprio grupo declaram até que os seus membros “fogem assim que ouvem os primeiros tiros ruandeses”, tendo ordens dos líderes para não atacar de volta. Esta situação representa uma evidência do êxito da cooperação internacional na resolução do conflito, com especial valor tendo em conta que acontece dentro do continente africano.

Surge, no entanto, um outro problema. A realidade demonstra que apesar das intervenções militares triunfantes, a província de Cabo Delgado encontra-se ainda afastada de um cenário de paz. Perante as intervenções ruandesas, o grupo rebelde desorganizou-se, separou-se e atua agora sem o habitual rigor através de ataques isolados e espalhados geograficamente, esquecendo, por vezes, a componente estratégica que outrora marcava a sua atuação e que teve a vila de Mocímboa da Praia como exemplo da procura de pontos estratégicos. Consequentemente, existe agora o perigo de assistirmos à extensão do conflito a outros locais fora da província de Cabo Delgado como aliás aconteceu na vizinha província de Nampula, em que os ataques provocaram cerca de 47 mil deslocados no passado mês de setembro. A realidade de Nampula é merecedora de atenção, na medida em que pode significar não apenas uma expansão geográfica do problema, como também ser sinónimo do advento da radicalização em outras áreas do Estado de Moçambique. Ao mesmo tempo, Moçambique vai reforçando os acordos de cooperação com outros atores do mesmo continente, desta vez com a Tanzânia, Estado fronteiriço que poderá ter um papel importante no desenrolar dos acontecimentos, não só pela participação militar nas forças da SADC, mas também no combate à radicalização no seio das populações e no controlo das deslocações dos terroristas provenientes daquele país.

Ao longo do recente mês de setembro, a situação no norte de Moçambique tem assistido a alertas de expansão do conflito ao mesmo tempo que a situação em Cabo Delgado melhora e onde já se iniciam processos de realojamento. Por outro lado, as respostas em termos da segurança e da defesa ganham agora outro tom, através de reforços no policiamento e pela atribuição do pacote de ajuda em armamento não-letal por parte da União Europeia. Existe ainda outra dimensão do conflito bastante ativa e que tem a ver com o ataque a indivíduos católicos sediados na região onde predomina a religião islâmica. Neste aspeto, a Igreja Católica tem desempenhado um papel importante no campo da ajuda humanitária por meio de associações e missionários, mas também na resistência ao radicalismo. Com as complicações derivadas do conflito entre a Rússia e a Ucrânia abre-se uma nova porta no que toca à questão do gás em Cabo Delgado, que pode neste momento constituir uma nova solução à crise que se faz sentir em solo europeu. Porventura, Cabo Delgado poderá tirar proveito desta situação, precisamente, por haver um interesse acrescido na resolução do conflito que assombra o território, ainda que as explorações de gás natural, forçadas suspender os trabalhos perante o clima de insegurança, ainda não regressaram à atividade, não existindo para já nenhuma previsão para tal.

Conclusão

Diante do exposto, é percetível inferir que estamos perante uma “new war”, segundo a elaboração de Mary Kaldor, conceito que caracteriza um conflito armado no pós-Guerra Fria, motivado por uma identidade ao invés de uma ideologia e capaz de grandes demonstrações de violência. O conflito em Cabo Delgado nasce, de facto, de pretensões religiosas que tentam estabelecer um determinado modelo social, todavia, efetuando uma análise mais aprofundada sobre a vivência na região é possível observar uma clara deterioração do órgão do Estado moçambicano nesta mesma província. Estas falhas e o abandono do governo central para com a região apagam perspetivas em termos da criação de emprego, da melhoria nos rendimentos das famílias e das condições de higiene e segurança, sendo ampliadas na sua gravidade pelo fracasso dos serviços públicos e da administração local, circunstância que abre caminho a insurreições e revoltas das populações e, neste caso, à radicalização. No combate a esta, o Ocidente tem capacidade para contribuir significativamente pelo uso da sua influência junto dos residentes numa lógica de “soft power”, além da responsabilidade noutros fatores como a formação militar e o apoio no combate ao tráfico humano e de armas que ocorre. Por último, o foco no momento deve consistir na delimitação geográfica do conflito perante a ameaça na expansão dos ataques a outras localidades; os investimentos na exploração do gás natural devem ser retomados como forma de responder às ameaças e na tentativa de ensaiar um regresso ligeiro à normalidade. Em relação a este último ponto, os investimentos devem beneficiar, em primeiro lugar, a província de Cabo Delgado, com os lucros a serem direcionados para a reconstrução das aldeias alvos de destruição e para o desenvolvimento da região, também numa tentativa de estender a mão a quem vê no terrorismo a sua própria sobrevivência e, portanto, numa ideia de combate a violência que se faz sentir.


10 de outubro de 2022

Guilherme de Sousa Taxa
EuroDefense Jovem Portugal

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Feijó, J. (2021). Conflito e Desenvolvimento em Cabo Delgado. Escolar Editora.


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