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1. Introdução

O Mediterrâneo é um espaço que se encontra tal como na aceção de seu nome, entre terras, concretamente entre o Sul da Europa e o Norte de África, com uma extensão (Este-Oeste), que vai desde Marrocos/Espanha até ao Médio Oriente. Ainda assim a circunscrição do Mediterrâneo não se esgota nas suas fronteiras geográficas, reconhecendo uma dimensão bem mais extensa do ponto de vista político, estratégico e religioso/cultural, interconectando várias sub-regiões que transcendem as mediações das suas margens.

Nesse entendimento encontra-se uma diversidade de relações e assimetrias de expressão paradoxal, coabitando fortes afinidades históricas e intensas divisões políticas e culturais firmadas ao longo dos séculos (Pinto, 2004). Por essa razão compreender o Mediterrâneo assume-se sempre uma tarefa intrincada e complexa, face à interdependência que, contudo, aí existe.

Não obstante, a narrativa dominante sobre a região demonstra assentar na indissolúvel instabilidade política e económica dos Estados da margem Sul, com prevalência num estado de insegurança, configurado ainda por inúmeras outras ameaças extra-estatais, o que propicia o desenvolvimento de um imaginário de «ameaça» que simboliza a região, do ponto de vista das sociedades europeias.

Essa preocupação face às regiões circundantes ao espaço europeu, encontra razão de ser, devido ás transformações do conceito de segurança, influenciado por um novo contexto internacional (globalizado), onde a necessidade de externalizar a segurança interna se torna primordial, e encontra suporte no próprio Direito Internacional Humanitário. O processo de Barcelona simbolizou bem essa nova conceção da segurança, promovendo iniciativas que contribuíssem para a estabilidade dos países mediterrânicos, visando a estabilidade da região (Pinto, 2004), redefinindo-se assim o conceito de fronteiras rígidas e fixas, para a noção de mobilidade e flexibilidade. A consciência de que, portanto, o status quo dos países vizinhos e a evolução que se assiste no equilíbrio de poderes da região poderá rapidamente transcender e afetar o espaço europeu, é o que reforça a noção de que investir na segurança do Mediterrâneo é investir ao mesmo tempo num panorama internacional favorável aos valores e ideais europeus.

Um dos efeitos mais expressivos no espaço europeu promovido por essa instabilidade regional, alvo de grande mediatização, prende-se com a travessia descontrolada e desordenada de um número massivo de migrantes, na tentativa de chegar à Europa, tendo como desfecho mais penoso a perda de inúmeras vidas no mar. “A Organização Mundial das Migrações (2023) estima que, desde 2014, tenham perdido a vida ou desaparecido no Mediterrâneo 25.389 migrantes” (Sousa, 2023, p. 105).

 É, por essa razão, importante identificar as causas e motivações na origem destas tragédias, identificando, simultaneamente, a interpretação que é feita sobre o espaço do Mediterrâneo, compreendido mais como espaço comum propício ao relacionamento e diálogo entre sociedades ou como obstáculo físico que separa e permite manter afastadas as realidades dominantes de ambas as margens.

2. A posição da UE sobre a gestão dos fluxos migratórios

A necessidade de se criar uma política comum europeia de imigração e asilo, encontra a seu gênese nos anos 90 em razão do aprofundamento do projeto comunitário, onde as fronteiras internas são extintas com o Acervo Schengen, razão pela qual se torna imperativo o estabelecimento de um ELSJ (Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça). Pilar esse, objeto de aperfeiçoamento ao longo dos anos, na procura de estabelecer mecanismos de compensação face aos constrangimentos levantados por essa desregulação de circulação interna. “Entre os Tratados de Maastricht (1993) e de Lisboa (2009), este espaço foi sendo progressivamente reforçado pelos programas de Tampere (1999-2004), Haia (2004-2009) e Estocolmo (2010-2014)” (Xavier, 2017, pp. 38-39).

A mobilidade de pessoas de países terceiros, passa, por isso, a adquirir um papel central na forma como deve ser gerida e enquadrada neste espaço. Interpretada, por um lado, como condição de ameaça face às dinâmicas do crime transnacional e aos recursos limitados do velho continente, ou, por outro, como essencial face às carências do projeto social europeu, essa dicotomia tem, no entanto, produzido uma política de gestão dos fluxos migratórios que pode ser interpretada intrinsecamente como seletiva.

Algo que, de certa forma, espelha a lógica liberal capitalista subjacente ao funcionamento da UE, onde as exigências do mercado, acompanhado pela tensão do Estado moderno entre a vontade de se expandir economicamente e a intenção de preservar o seu território e fronteiras, enforma uma política que segrega e privilegia a vinda de uns (desejáveis) e bloqueia a entrada de outros (indesejáveis) (Carvalhais, 2016). “A aplicação de sistemas de quotas para a entrada de imigrantes, as medidas de favorecimento da imigração altamente especializada, ou a imposição de faseamentos no acesso de imigrantes dos Estados-membros dos alargamentos de 2004 e de 2007 aos mercados laborais da anterior Europa a 15, são por isso, à sua maneira, faces da mesma moeda” (Carvalhais, 2016, p. 154).

Essa situação, ainda que possa presumir um choque face ao projeto europeu enquanto potência normativa, pelo que ainda está condicionada às expetativas, que ainda assim, os seus cidadãos colocam no respeito pelos valores humanitários, é, no entanto, ultrapassada pela simples condição de irregularidade de um indivíduo, ao ser associado ao mundo do crime. Pelo que, encontrando-se já afastado das instâncias legais torna-se mais fácil o seu combate e repressão, sem que com isso se levante questionamentos morais, encontrando suporte nos estudos da Escola de Copenhaga, onde o importante não é a existência efetiva de uma ameaça, mas antes a perceção e a aceitação de que ela existe pela sociedade, permitindo medidas extraordinárias, que num estado “normal” das coisas seriam inválidas.

Esse discurso é fortificado por ligações diretas ao crime transnacional, entre o qual o terrorismo, com expressão acentuada pós 11 de setembro e revitalizada sempre que ocorre um atentado da mesma natureza em solo europeu, influenciando a direção das políticas europeias face aos fluxos migratórios, ecoando numa política generalizada de indiferenciação entre a aplicação da Lei da imigração e a aplicação da Lei Penal. Sendo possível verificar-se que “[…] atualmente 17 dos 28 Estados-membros da União Europeia já criminalizam o comportamento de atravessar irregularmente a fronteira com pena de prisão e/ou com multas, enquanto 8 Estados-membros punem este ato com multas” (Guia e Pedroso, 2015, pp. 139-140).

Neste sentido, tem-se vindo a assistir a uma revitalização das fronteiras como instrumento central de segurança na Europa, permitindo aos Estados controlar as populações, sustentando assim o binómio migrações-segurança. Essa lógica securitária de gestão dos fluxos migratórios, tem-se traduzido, essencialmente, em três grandes áreas: o controlo interno, através da limitação dos vistos, deportações e detenções; a vigilância e reforço das fronteiras externas, com forte expressão nos dados interoperacionais digitais, como o SIS, Eurodac ou o VIS, em complemento com o apoio operacional da Frontex e missões navais com vista ao bloqueio de embarcações suspeitas de tráfico de pessoas, servindo de exemplo a EUNAVFOR med; e por fim a forte aposta em parcerias e cooperação internacional, traduzindo-se na externalização dos fluxos para Estados terceiros, muitos deles representados por baixos níveis de democracia.

O novo Pacto de Migração e Asilo, aprovado a 10 de abril de 2024, perspetivado como farol de esperança para uma política de índole mais humanista, é na verdade uma continuação de receitas do passado, permanecendo várias restrições e detenções à entrada, inclusive de menores, em nome de termos tão vagos como ameaça à ordem pública ou risco de fuga, sendo cimentada a diferenciação nos procedimentos de asilo em função da nacionalidade dos indivíduos. Para além disso, continua-se a colocar em causa o princípio da solidariedade europeia, em razão da possibilidade de um país, por via do seu poder económico, poder-se blindar de acolher migrantes, o que inclusive, poderá agravar a pressão migratória para os países com baixo poder económico.

É certo, que em termos do Direito Internacional não se pode assumir que existe um diploma jurídico que efetivamente obrigue um Estado a acolher migrantes, no máximo poder-se-á falar de uma obrigação moral que se associa aos indivíduos de estatuto refugiado, tendo assente a ideia de que “o direito de entrar num dado território, em momento, algum é equiparado ao direito de sair” (Almeida e Reis, 2016, p. 6). A questão fundamental e que deve ser objeto de reflexão, prende-se ao fato de os resultados extraídos das opções políticas tomadas até ao momento, não só não apresentarem um impacto favorável à diminuição dos fluxos migratórios, como demonstram um sério risco de estar a agravar a situação na condição de irregularidade, criando particular pressão aos países do Sul. Numa análise aos dados mais recentes da Frontex, contabilizaram-se cerca de 380 mil migrantes irregulares a chegarem à Europa em 2023, dos quais 157 mil através do Mediterrâneo central (Frontex, 2024).

3. Relação entre as duas margens do Mediterrâneo

Torna-se, de alguma forma irónico pensar que a vinda de milhares de migrantes para a Europa, com origem essencialmente do continente africano, assume-se, em certa medida, como repercussão do próprio discurso eurocêntrico do passado. A promoção de um imaginário coletivo de uma civilização europeia próspera e desenvolvida, incutida durante as incursões em África, pode ter séculos mais tarde, como resultado imprevisível, o culminar de vagas de migrantes a tentar chegar à tão vangloriada civilização europeia (Nacir, 2020). Reflexão esta, naturalmente enquadrada mais na justificativa para o tipo de destino procurado pelos migrantes, do que propriamente as causas que obrigaram em primeira instância estas pessoas a sair do seu país de origem.

Torna-se possível, no entanto, analisada a ênfase securitária presente na gestão migratória por parte da UE, compreender a forma ameaçadora com que se discerne esse tipo de migrações (indesejáveis) para a Europa, expondo o espaço mediterrânico como instrumento estratégico de dissuasão desses fluxos, assente numa estreita cooperação com os países da margem Sul. Essa parceria euro-mediterrânica é reveladora da aposta na externalização das fronteiras como modus operandi para a governação da mobilidade humana, delegando aos países vizinhos a responsabilidade para gerir tais fluxos. No fundo atribuiu-se aos países da margem Sul a responsabilidade de protegerem as fronteiras externas da UE, representado uma espécie de Estados tampão, face às migrações originárias da África subsaariana e do Médio Oriente (Ferreira, 2021).

Algo que, não obstante, levanta outro tipo de riscos à própria Europa, abrindo portas a uma dinâmica onde, a dependência criada face aos países de origem ou de trânsito, impulsiona uma instrumentalização das migrações por parte desses países, tendo a possibilidade agora, de negociar contrapartidas políticas ou económicas com a UE. Um exemplo disso verificou-se no caso da Líbia em 2010, onde Muammar al-Gaddafi exigiu o pagamento de 5 mil milhões anuais à UE para continuar a impedir os fluxos de migrantes ilegais com destino à Europa, ameaçando, caso não pagasse, a mudar a sua posição “europeia” (Carmo, 2023). O sucesso dessa instrumentalização, não deixa, no entanto, de se atribuir à vulnerabilidade e fragilidade que a Europa revela nesta temática, tendo os países terceiros a plena noção de que uma maior pressão migratória, atinge de forma particular a estabilidade interna dos Estados-membros, e inclusive, fragiliza o regime de democracias liberais em que assentam, com a sua vocação para os valores humanitários. Algo que a ascensão da extrema-direita, indiretamente, tem contribuído e muito, com discursos que dividem as sociedades, assente numa visão que se desmarca de uma Europa solidária

Ainda assim, não deixa de ser também verdade que é essa perceção de vulnerabilidade e de forte pressão migratória às portas da Europa, que tem servido de base para a contínua securitização das migrações, permitindo à Europa decidir quem pode ou não entrar nesse espaço, assumindo os media, nesse sentido, um papel chave. É importante ver que numa análise quantitativa, reportando a 2022, apenas cerca de 5,3% da população europeia era constituída por nacionais de países terceiros (Eurostat, 2023), não se tratando propriamente de uma crise, apesar de ser um tema fortemente mediatizado. Constata-se, portanto, que tal perceção de ameaça é alimentada em função do tipo de migração em causa. Veja-se que, enquanto a vinda de 1 milhão de refugiados da Síria em 2015 foi encarada com grande aparato mediático e alarme social, a recente guerra na Ucrânia, calculando a vinda de um número de refugiados muito superior ao de 2015 (4.8 milhões até 18 de fevereiro de 2023) (Sousa, 2023), não foi tema de preocupação.

Tal solidariedade europeia prestada aos refugiados ucranianos, ativando, inclusive, pela primeira vez, a Diretiva de proteção temporária de 2001, é prova de que o que faltou na verdade em 2015 foi vontade política da Europa. Sendo a diferenciação de resposta humanitária por parte da UE, associada, em parte, ao distanciamento cultural-religioso que se encontra no Mediterrâneo, com forte associação ao mundo árabe-muçulmano. Essa diferenciação de tratamento é estimulada por discursos que contribuem para a necessidade de nos protegermos desse tipo de migrações, assente em narrativas que passam, desde logo, por uma possível islamização da Europa. O que na verdade, analisando, uma vez mais os dados, com a tendência de crescimento atual, estima-se que em 2030 os muçulmanos representem apenas 8% da população na Europa, além de terem uma idade média 8 anos mais jovem que a dos cidadãos europeus (Xavier, 2017).

Percebe-se, por isso, que a Europa acaba por se tornar ela própria incoerente na gestão das migrações, tendo um efeito pesado para a credibilidade que, afinal de contas, pretende passar para o resto do mundo. Esse desalinhamento com os Direitos Humanos, parece ser lesivo à própria capacidade de diálogo e de intervenção nas causas estruturantes dos países do Sul, alimentando o receio e desconfiança generalizado já presente no mundo árabe face à intervenção externa do Ocidente nos seus países. “Na opinião das massas árabes, por detrás da invocação de princípios democráticos e do seu universalismo, o Ocidente procuraria, na realidade impor uma hegemonia sobre o mundo árabe” (Pinto, 2004, p. 89). Reconhecendo, portanto, na forma como a UE gerência as migrações, em específico, no Mediterrâneo, um fator que pode inclusive corroborar essa desconfiança. Algo visível pelo tipo de cooperação exercido na região, onde o financiamento para projetos de desenvolvimento nesses países de origem, demonstram servir mais os interesses europeus, no sentido em que esse apoio só se concretiza, se em contrapartida existir uma contenção das migrações para a Europa, estando, portanto, a PEV (Política Europeia de Vizinhança) muitas vezes encoberta por matérias que são na realidade securitárias (Silva, Malheiros e Carvalho, 2017).

Neste sentido, a tendência securitária generalista, com especial foco na margem Sul do Mediterrâneo, demonstra ter pouco efeito prático para a redução da contínua vinda de migrantes. Interpretando-se a edificação de muros mais como uma função simbólica do que concreta, expressando muito mais o sentimento coletivo de ameaça sobre determinadas alteridades, independentemente da contribuição para a diminuição ou não das migrações (Frederico, 2021). No entanto essa condição revela estar a maximizar a vulnerabilidade dos migrantes e os incentivos ao tráfico de pessoas, compreendendo-se que “a vulnerabilidade dos migrantes é em grande parte construída ou induzida pelas políticas e práticas estatais” (Atak et al. 2018, p.19).

É fundamental por isso abordar mais as causas estruturantes das migrações, com uma resposta europeia mais humanista e concertada, tendo o caso dos refugiados ucranianos provado a sua exequibilidade sem grande discórdia e desarmonia entre os Estados-membros, possibilitando ao mesmo tempo reforçar a sua credibilidade internacional, tão necessária para a conquista da confiança dos países de origem árabe a uma maior intervenção do Ocidente.

O fenómeno migratório demonstra ser o maior desafio do século XXI para a UE, não existindo outra questão que coloque em tamanha perspetiva a importância da unidade que deve constar no projeto europeu. Caso essa resposta comum não se materialize, parece que o próprio projeto europeu possa vir a sair fragilizado, como uma Organização de boas intenções, que na prática acaba por não servir os anseios dos seus Estados-membros nas questões em que é mais precisa.

20 de junho de 2024

João Oliveira
EuroDefense Jovem Portugal


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NOTA:

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