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O ambiente de segurança deste primeiro quartel do séc. XXI difere substancialmente do que esteve na génese da arquitetura de segurança internacional do pós-Segunda Guerra-Mundial, sendo marcado pelo acelerado desenvolvimento tecnológico, pela revolução digital e progressiva desmaterialização dos processos, também nos domínios da defesa e segurança.

A contração das dimensões espaço-tempo e o atual contexto de hiperinformação têm efeitos nos critérios do acesso à informação através da miríade de plataformas de comunicação com alcance global. Entramos no domínio da economia da atenção, no ecossistema das gigantes tecnológicas onde empresas como a Google, a Apple, o Facebook e a Amazon (as designadas GAFA) dispõem da capacidade para nos monitorizarem em permanência, acumulando dados que voluntariamente disponibilizamos, reunindo um poder de controlo e influência que empresas como a Cambridge Analytica utilizam de forma vantajosa.

Entramos na era das guerras híbridas, que visam manter o nível da agressão abaixo de um patamar justificativo da resposta militar e que são a expressão bélica da complexidade do período pós-moderno. Embora a finalidade da guerra – destruir o inimigo ou a sua vontade de combater, continue tão atual no presente como no tempo de Sun Tzu, o último destes propósitos está cada vez mais delegado em atores não militares.

Nunca como no presente o inventário bélico foi tão preciso, potente e diversificado, tendo-se alargado até aos domínios aeroespacial e do ciberespaço. Em contrapartida, formas assimétricas de condução da guerra como o terrorismo, os ciberataques, o recurso a insurgentes e à guerra de informação, conjugada com ações convencionais, diplomáticas e económicas, fazem apelo a formas de resposta que extravasam os métodos convencionais. A anexação da península da Crimeia pela Rússia, em 2014, é um exemplo paradigmático da complexidade associada às operações militares atuais.

Por outro lado, tecnologias disruptivas em acelerado processo de desenvolvimento como os mísseis hipersónicos, a militarização do espaço e a aplicação da Inteligência Artificial no domínio militar, poderão ditar uma alteração no atual quadro de hegemonia dos EUA, ditando a insolvência da sua estrutura de projeção de poder e rede global de bases militares.

O diagnóstico do ambiente de segurança recomenda uma ideia estratégica para Portugal. O nosso país esteve na génese da abertura do mundo à modernidade, sendo precursor da presença europeia em três continentes, porque soubemos galvanizar o conhecimento tecnológico e científico que nos garantiu vantagens competitivas nos domínios da cartografia, da navegação marítima, artilharia e construção naval, tendo ainda desenvolvido uma ideia estratégica de controlo dos oceanos.

Para sermos intervenientes no processo de transformação em curso, num contexto internacional onde o centro de gravidade geopolítico e geoeconómico está em deslocação para a Ásia, onde fomos os primeiros europeus a chegar por via marítima e soubemos desenvolver uma relação frutuosa com a China, importa compreender que o papel da defesa e segurança não se pode subsumir à vigilância do espaço marítimo interterritorial, até porque não se vislumbram aí ameaças.   

Os desafios que se colocam à defesa e segurança estão em linha com os que Portugal enfrenta num plano mais vasto da edificação de uma sociedade com elevados padrões de desenvolvimento humano. Trata-se de um esforço que no atual contexto de crises múltiplas, da desglobalização à desocidentalização, do unilateralismo de Trump às convulsões sociais, ambientais e securitárias no Sul global, só se apresenta resolúvel no quadro de um contexto regional integrador – a União Europeia. A opção europeia confere-nos a escala necessária e um relevo adicional em outros fóruns colmatando a exiguidade geográfica e populacional.

No momento em que a UE procura afirmar a sua autonomia estratégica, tendo criado linhas de financiamento para a economia da defesa, com especial destaque para o fundo europeu de defesa, com sete mil milhões no próximo quadro financeiro plurianual (2021-2027), é tempo de também no plano da defesa e segurança aderirmos à UE.

Este é o momento para integrar redes industriais europeias, com todas as vantagens que daí advêm para o esforço de modernização e reindustrialização que constitui uma das linhas de orientação estratégica do plano de recuperação de António Costa Silva, na sua estratégia para a recuperação económica pós-pandemia.

Encarar a defesa e segurança como elemento de modernização tecnológica e científica, atento o facto de que as indústrias de defesa, em boa medida, assentam em tecnologias de duplo uso, é perceber que os beneficiários não são apenas as forças armadas, mas a economia em geral, por via da criação de emprego qualificado, riqueza e desenvolvimento industrial.

Faz sentido que o governo tenha adquirido à indústria nacional drones para a vigilância dos fogos rurais, com raio de ação de 100 Km, privilegiando a base tecnológica e industrial do nosso país e dando um sinal claro às empresas de que a indústria nacional está no radar das escolhas quando o Estado faz aquisições. O facto de termos capacidade para produzir equipamentos com este nível de sofisticação atesta que a indústria nacional tem vindo a percorrer um caminho promissor.

Mais importante do que saber se os drones começaram a operar a 31 de agosto, como apontou a força aérea, ou dois meses antes como indicado pelo MDN, se vão ser pilotados por militares da Marinha, do Exército ou da Força Aérea, ramo que tem no espaço aéreo o seu ambiente operacional e cujo critério terá pesado para a não atribuição destes meios ao seu principal beneficiário, a GNR, é estarmos perante tecnologia nacional.

Pensar a arquitetura do sistema de segurança nacional à medida dos desafios do atual ambiente de segurança, acarreta que a economia da defesa seja considerada como variável de relevo na participação em projetos colaborativos com outros players da UE, atentos os efeitos de escala na dimensão do mercado e no upgrade tecnológico associado. A presença do presidente executivo da agência europeia de defesa e do diretor-geral da indústria de defesa e espaço em Lisboa, no próximo dia 10 de novembro, nas jornadas sobre economia da defesa, é um sinal auspicioso e, sobretudo, um reconhecimento da dinâmica que a indústria nacional tem vindo a tomar. Neste domínio, estamos muito melhor do que frequentemente julgamos.


02 de outubro de 2020

Agostinho Costa
Vice-Presidente da Direção

(Artigo de Opinião publicado no jornal Diário de Notícias, de 29 de setembro de 2020:

https://www.dn.pt/opiniao/opiniao-dn/convidados/dilemas-e-paradoxos-da-seguranca-nacional-12767587.html

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