I – Introdução
O século XX assistiu à derrota do imperialismo e dos grandes impérios: a) colapsados após a I GM (o alemão, austro-húngaro, russo e otomano); b)e, depois da II GM,os impérios coloniais, designadamente o inglês, francês, holandês e, por último, o português, e, com o fim da Guerra Fria, o soviético.
A implosão da URSS e a reunificação alemã abriram uma janela de oportunidade a favor da paz, cujos dividendos logo imaginados, haveriam de ser desmontados pelos desenvolvimentos ulteriores.
Esse foi um tempo promissor de uma ordem liberal, afectada por “desvios” neoliberalistas, e subsequentes perturbações, internas e, ultimamente, externas, que estão a abanar os pilares da sustentabilidade europeia,mascujas sociedades e o seu modo de vida continuam, apesar de tudo, a constituir um forte apelo e atracção para milhões de pessoas, que tentam escapar à pobreza dos seus países de origem, onde grassa a instabilidade, corrupção, má governança e insegurança.
Os últimos anos têm somado crises económicas e sociais, a que se juntaram as financeiras, o flagelo da pandemia e, mais recentemente, a invasão russa da Ucrânia, iniciada em 24FEV22. Isto sem deixar de reconhecer que, em período temporal alargado, a melhoria de vida foi um factor presente no último meio século, por via de uma globalização que aproximou populações, em paralelo com os progressos relevantes da ciência e tecnologia, o que não se poderá dizer da democracia, que, depois de avanços significativos, começou a recuar, por força de inimigos e fraqueza de adeptos.
É neste quadro que sobressai a necessidade de planos estratégicos que respondam às actuais tormentas europeias, elas próprias a requererem uma formulação de interesses e consequentes objectivos comuns, materializados no terreno por lideranças esclarecidas, ainda que a ameaça russa e a sucessão de Merkel, tenham trazido algum elixir às iniciativas inscritas na Conferência do Futuro da Europa e ao seu subjacente propósito de autonomização estratégica, associada à reversão da política de apaziguamento e de dependência económica do Kremlin, em especial de produtos energéticos (petróleo e gás).
Hoje, a UE confronta-se, prioritariamente, com a necessidade de uma consensual definição de “comunalidades” (interesses, objectivos, estratégia, coesão e solidariedade), absolutamente indispensável para melhor enfrentar as ameaças e riscos que o regresso da geopolítica à Europa reclama, com os seus eixos mais desafiantes a terem de ser comummente percepcionados e enfrentados: Leste com a Rússia, Sul com as migrações, ascensão económica da China e, para amenizar, um euro-atlantismo com sinais de fumo branco, ou seja, revitalização do eixo transatlântico.
Mais consciente também estará de que as suas relações económicas não podem comprometer a segurança europeia, competitividade e independência estratégica[1], depois de ter ido longe demais no “outsourcing” da sua defesa aos EUA, da sua indústria à China e da sua energia à Rússia[2].
É este cenário internacional, que tentaremos caracterizar no capítulo seguinte, para depois e antes de algumas notas conclusivas, abordar a problemática europeia numa análise bipolar de “radiografia-terapia”, num presente virado para o futuro e na perspectiva de evitar a fragmentação sobre a qual, os grandes poderes do novo mundo multipolar não verteriam uma lágrima, mas cujo fim de um projecto bem-sucedido, ao longo de 70 anos, os europeus, certamente, chorariam.
O roteiro acabado de propor não obscurece a consciência da sua parcialidade e insuficiência, uma vez que incidiremos especialmente nos domínios político-económico e da segurança e defesa, num corpo europeu com enfermidades noutras “zonas”.
II – Envolvente externa
Desde o início deste século, após o fim da guerra fria e da unipolaridade americana, que se assiste a um processo de reformulação estratégica forçado pela gradual deslocalização do poder económico e, em certa medida, político e militar, para a Ásia-Pacífico, que os europeus vão dificilmente digerindo, depois de vários séculos de poderio, e agravado por um duplo choque: a) o de uma Rússia expansionista à procura do poder imperialista que já teve na Europa; b) e o de uma China governada por regime absoluto e ganhadora, a ponto de se tornar a maior economia do mundo (se avaliada em paridade de poder de compra, como já é feito pelo FMI).
Como consequência desta preocupante “normalidade anárquica”, os próximos anos serão cada vez mais hobbesianos e nada kantianos, assistindo-se ao proliferar de crises, conflitos e guerras em várias partes, o ambiente “agónico” provavelmente dominante nas RI´s nas próximas décadas.
Parece-nos, todavia e de momento, que o maior perigo para a Europa virá do Leste, da Rússia, paradoxalmente à frente do risco chinês, este com efeitos de mais longo prazo, julgamos nós. O próprio presidente russo não é de meias palavras, ao discursar que, e cito: “… a Humanidade está a entrar numa nova ordem mundial (OM), cuja essência e regras passam a ser ditadas pelos Estados fortes e soberanos e os demais “condenados a continuar a ser colónias sem direitos”[3], fim de citação e leia-se, nomeadamente Europa, América Latina e África[4].
Na ocasião, manteve a desfaçatez, justificando a “operação militar especial” devido ao genocídio levado a cabo pelas autoridades ucranianas contra a população russófona, maioritária no Leste do país, esquecendo-se de apresentar quaisquer provas dessa ocorrência[5], talvez porque esteja tão obcecado na pretendida alteração da OI e respectiva arquitectura de segurança europeia, que Putin quer condicionar, afastando a NATO das sua fronteiras.
Só que, aparentemente, estará a consegui-lo, mas em sentido contrário, pois tê-la-á, com a concretização do alargamento escandinavo, mais próxima e confinante, o que faz com que não vindo, provavelmente, a ganhar no plano militar, o esteja já a perder no plano político-estratégico, o que não deixa de colocar ao Ocidente um duplo desafio: no plano da conflitualidade, evitar a escalada militar, susceptível de levar a um confronto directo com a NATO ou ao uso da arma nuclear; no plano da paz, encontrar a solução diplomática que permita uma saída airosa e aceite pelo invasor, sem nunca premiar a agressão.
Entretanto, os europeus começaram a entender a necessidade de afectar mais recursos à sua defesa e não apenas financeiros, reconfigurando também o seu próprio modelo, que poderá levar, no limite, a uma moderada espécie de “exército europeu”, com a incontornável e inequívoca condicionante da complementaridade com a Aliança Atlântica.
Para esta dedução concorre a ideia de que a pandemia demonstrou como a Europa se encontra demasiado dependente da indústria de terceiros[6], assim como a guerra da Ucrânia comprovou que os Europeus só se sentem seguros com o apoio da NATO, pois sabem que a UE se tem manifestado incapaz de construir uma verdadeira política de defesa comum (PCSD), no âmbito da PESC.
Com Biden, a NATO voltou a mostrar que existe, é forte e funciona. Nesta altura, aguarda-se com expectativa o resultado – que se antevê como positivo para a segurança europeia –, da cimeira da NATO em Madrid (nesta última semana de JUN), aparentemente pronta a aprovar, consensualmente, como é seu timbre, a maior reforma desde a Guerra Fria, incluindo um reforço adicional das suas defesas em 8 países ao longo das fronteiras leste e sudeste e a composição de uma força de 40.000 militares em alerta para responder a uma possível crise, decisões com um sentido claro de preparação prévia face a potencial intenção russa de invasão, a qualquer um dos E-M’s da Aliança, sob a capa da tal “operação militar especial”,.
Também no quadro da UE, a relação Europa-Rússia deve merecer uma particular acuidade. Poderá colocar-se a questão por quanto tempo, se olharmos para o potencial de desenvolvimento económico, tecnológico e social, sabendo que a Rússia poderá ver cessada, no longo prazo, a sua actual “aliança” geopolítica com a China, especialmente quando trazemos à colação a modernização dos respectivos aparelhos produtivos e processos de desenvolvimento e inovação tecnológicos[7].
Mas, para já, é um facto que essa aliança sino-russa se reforçou, apesar de também ser complicada para Pequim, daí a sua ambiguidade possível no conflito na Ucrânia, mas sempre atenta ao evoluir dos acontecimentos e das movimentações euro-atlânticas, para refazer os seus cálculos sobre a anexação de Taiwan[8], numa janela de tempo que poderá ir no máximo até 2049 – data limite definida pelos fundadores da República Popular da China (RPC) para a reunificação e que Xi Jinping terá bem interiorizado na sua agenda política.
Naturalmente que os EUA, mau grado o incómodo provocado à China, estão a alargar e fortalecer as parcerias e alianças no Indo-Pacífico[9], nomeadamente a AUKUS[10] (SET1) e a Quad[11] (MAI22), iniciativas vistas como primeiros passos da criação de uma arquitectura de segurança mundial do século XXI, na óptica dos interesses norte-americanos na região.
Esse alinhamento deixa transparecer a pretensão de Washington de uma Europa cada vez mais focada na sua própria segurança, libertando-o para um continuado reforço da sua presença diplomática, económica e militar no Pacífico, tendo em vista a contenção das ambições chinesas.
E terá boas razões para essa deslocalização do seu baricentro geopolítico. Ainda recentemente (03JUN22, em Xangai), os chineses lançaram ao mar, durante as comemorações do Festival do Barco do Dragão, um novo activo militar – o seu 3º porta-aviões, o “Jiangsu”[12] (depois do “Liaoning” e “Shandong”) –, crucial para as suas ambições estratégicas na região, nomeadamente para obter vantagens operacionais, nas disputas territoriais nos Mares do Sul e Oriental da China e no Estreito de Taiwan, e na competição geopolítica com a Austrália, EUA e Japão, entre outras potências regionais, pela influência na área mais alargada do Pacífico.
Exemplo mais recente dessa ambição de poder por parte da China, evidencia-se, ainda na componente marítima, com a notícia do interesse do Exército de Libertação do Povo Chinês (PLA) de abrir a sua segunda base naval em África, na costa atlântica, como parte dos esforços para apetrechamento com uma força militar global capaz de projectar poder longe das suas costas (possivelmente na Guiné Equatorial, Angola ou Namíbia), susceptível de se inscrever no projecto “One Belt, One Road”[13], tido como o vector estratégico da China para ligação aos corredores económicos globais.
Enquanto isso, a Europa tem demorado a ajustar-se ao novo ambiente geopolítico, com o sonho de viver em paz, consumida pelas fracturas provocadas pela multifacetada crise dos últimos anos, primeiro a económica que separou Norte e Sul, depois a da invasão russa da Crimeia, que dividiu Leste e Oeste, e, mais recentemente, a migratória que acentuou essas clivagens, confluindo para um ambiente de alguma hostilidade aos apoiantes da integração europeia.
Voltaremos a este ponto mais adiante, sublinhando-se, entretanto, que num estudo promovido pelo PE[14] (ABR-MAI22), os cidadãos dos E-M´’s têm estado em consonância com as sanções aplicadas à Rússia em resposta à invasão da Ucrânia e crescentemente preocupados com as consequências económicas da guerra na sua vida, concluindo-se, também, que 52% dos europeus têm uma imagem positiva da UE, com apenas 12% contra, e com a Rússia a ser vista positivamente por apenas 10% dos entrevistados, resultado muito abaixo dos 30% apresentados em 2018, último ano desta pergunta no inquérito.
III – Europa: do passado ao presente, com futuro em mente
Neste capítulo procuraremos evidenciar a agenda de crises e desafios com que se confronta a UE, preocupando todos aqueles para quem o projecto europeu continua a fazer sentido à luz dos seus grandes objectivos de paz e prosperidade e que presidiram à criação da Comunidade Económica Europeia (CEE)[15]. A condicionalidade de tempo e espaço obriga-nos a incidir a reflexão essencialmente nos já referidos domínios de análise, economia e segurança e defesa.
a) Projecto europeu, passo-a-passo e inacabado
Há a consciência de que a UE, com mais ou menos dificuldade, tem vindo a ser construída passo a passo. Primeiro, a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço[16] (CECA-1951), a CEE (1957), a UE e o Tratado de Maastrich[17] (1992) e, finalmente, o alargamento[18], que alguns analistas criticam por falta de estudos prévios de viabilidade e adequada maturação estratégica, e que voltou à baila com as novas candidaturas do Leste e Balcãs Ocidentais.
Um projecto ambicioso, sem dúvida, mas que ainda hoje continua a fazer sentido e a valer a pena pugnar por uma sociedade europeia, capaz de garantir a segurança e defesa a todos os seus cidadãos, seja da ameaça do terrorismo, do radicalismo islâmico, do crime organizado, de Estados revisionistas, mas sempre no âmbito mais vasto da chamada “comunidade de segurança pluralista” do Atlântico Norte. Os pessimistas dirão que é um sonho, mas a Europa do pós-guerra fez-se precisamente a partir dele e só fica interdito a quem desiste de lutar, também em prol do papel de actor importante que já teve, agora numa nova OI em rápida transição para a multipolaridade.
Nos dois sub-capítulos seguintes tentar-se-á uma auscultação “cirúrgica” das crises que têm afectado a saúde europeia nos últimos anos, para, de seguida, explorar e passar algumas receitas de tratamento da “doença” na actual conjuntura.
b) Radiografia do presente
Hoje, a Europa, habituada à benemerência americana de permitir viajar no avião da NATO em 1ª classe, pagando bilhete de turística ou menos, como frisava o Embaixador José Cutileiro, dificilmente se afirmará como um grande actor estratégico no mundo se não conseguir garantir a paz e a estabilidade no continente europeu, e isso não passa apenas por armar a Ucrânia, mas também por garantir a democracia.
Foi para isso que existiram os anteriores alargamentos. Daí que vários analistas antecipem que as democracias europeias vão ser postas à prova e que, da sua capacidade de resistência, dependerá, em grande medida, o futuro da própria UE.
Sabemos como a UE é um projecto inacabado, permitindo constantes desenvolvimentos e mudanças na história, a razão maior para a necessidade de um ânimo concertado, amparado nos alicerces da democracia e do Estado de direito, para reconstruir o que a Rússia vem tentando destruir. E se, aquando da “Declaração Schuman”, a Europa ficou dependente da criação de uma solidariedade de facto, este valor continua a ser o suporte de vida que permitirá aos E-M´s e à restante Europa, ultrapassar as actuais e apertadas curvas da História, a mesma solidariedade que, a par do estabelecimento de sanções ao invasor, tem acolhido milhares de cidadãos que se viram obrigados a abandonar as suas vidas, nomeadamente migrantes e ucranianos.
c) Terapêutica de reabilitação
Como já aflorado anteriormente, a Europa está a denotar alguma impreparação e constrangimento para um mundo que mudou radicalmente e onde o multilateralismo deu lugar ao jogo de poderes entre as actuais grandes potências.
Será a Europa capaz de ser uma delas? Para atingir esse desiderato que vulnerabilidades tem de colmatar e que atributos e capacidades reforçar?
Para além do domínio económico, também no campo da segurança e defesa a Europa sabe que a actual conjuntura obriga-a a preparar-se, igualmente, para o tal novo e complexo mundo de leonina competição.
O desafio que lhe está lançado é simples: quer ou não voltar a ser uma potência respeitada como que já foi? Para o efeito, a defesa dos interesses e valores europeus e civilizacionais passa pela assumpção plena de que a Europa está claramente colocada no meio da fragmentação geopolítica e geoestratégica, prestes a sair do multilateralismo do pós-guerra e com um pé já numa nova era de equilíbrio de poderes e áreas de influência, valendo para tanto o ditado de que uma Europa prevenida, vale por duas, tendo em conta as “intempéries” que vieram para ficar, comoas guerras por procuração, os refugiados ambientais, a fome e as epidemias, o colapso dos mercados de trabalho e da ajuda internacional, que estarão na origem de grandes fluxos migratórios e tráfico de pessoas.
Vamos centrar o ensaio de soluções e portas de saída para os tais dois domínios que nos parecem mais sensíveis e decisivos para superar a encruzilhada em que a UE se tem visto enredada, o económico-financeiro e o da segurança e defesa, o que não significa que se esteja a desvalorizar os restantes vectores e campos de intervenção, até porque acreditamos que o melhor tratamento para multi-crises passa pela aplicação simultânea dos antídotos.
É de recordar que a Europa continua a ser uma das regiões mais confortáveis para se viver, por diversas razões, nomeadamente boas condições climáticas, infraestruturas modernas, cidades com populações residentes de média dimensão, proximidade com a natureza, robustez industrial e de serviços, diversidade e atractividade intelectual e cultural. Para manter e melhorar este status, a UE precisa de reorientar a agricultura em bases mais sustentáveis, apoiar as novas tecnologias de comunicação em rede (pensando na relação com a China por causa do 5G), desenvolver políticas de transformação digital e de transição energética (renováveis ou energia verde), melhorar as estruturas financeiras, compensar o acentuado envelhecimento da população com imigração, promover achamada re-industrialização à boleia da descarbonização e da nova matriz energética, o que não será tarefa rápida e fácil, dadas as implicações nas cadeias de valor e política de concorrência do mercado único europeu.
É neste quadro de exigência e complexidade que a sobrevivência da Europa obrigará a uma restruturação interna, empenhando-se na promoção do crescimento da economia e do emprego, atendendo ao reforço da solidariedade, da coesão territorial e social, e no perseverante combate às alterações climáticas, na garantia da segurança e na manutenção da paz, afinal os seus valores e princípios fundamentais.
Este será, julgamos, o caminho para recuperar estatuto e peso geopolítico, que já teve, no papel de actor credível no quadro internacional, propósitos que não estarão “à mão de semear”, mas, em boa parte, por exclusiva responsabilidade própria, porque veio edificando uma união económica desacompanhada da componente de defesa “cooperativa”[19] – para não lhe chamar “única” – e que tantas reservas ainda suscita.
Quem, senão os europeus, para lutarem pela defesa do seu modo de vida? Nesse sentido aponta a realização da Conferência sobre o Futuro da Europa[20] (CoFoE), através de um conjunto de consensuais propostas políticas de longo alcance, nomeadamente no domínio da saúde (União Europeia da Saúde), da segurança (capacidades para acção rápida no palco global), da defesa, com FA´s conjuntas como pilar da NATO, das fronteiras externas (protecção e controlo do espaço Schengen), do direito de asilo (promoção da migração legal) e das gerações jovens (a colocar no centro das prioridades políticas, através da criação de empregos de qualidade) e, last not the least, da economia, incluindo a futura bioeconomia azul assente na protecção e biodiversidade, uma tarefa globalmente pouco menos do que ciclópica, nela se destacando a importância da transição e autonomia energética, tópico sublinhado no “federalismo pragmático”[21] defendido por Draghi e reconhecido como ambicioso, na perspectiva da soma das crises que a Europa enfrenta hoje, a obrigá-la a acelerar o processo de integração, assim como a uma acção coordenada entre os ministérios da Defesa e Negócios Estrangeiros dos 27 E-M’s.
Conclui-se este subcapítulo com algumas sugestões que se julgam susceptíveis de um razoável grau de consenso e concretização.
Assim, no plano económico e financeiro, destacaríamos:
a) um BCE de competência federal para o conjunto dos E-M´s;
b) um orçamento federal para a zona euro mais ambicioso que o actual e insuficiente plafond dos 1%;
c) um aperfeiçoamento do Pacto Orçamental na sua função monitora das contas nacionais e completamento da iniciada União Bancária;
d) um mecanismo europeu de gestão da dívida soberana;
e) um reforço e melhoria do modelo social europeu, incluindo a ideia de um rendimento social único;
Passamos agora ao 2º domínio, o da segurança e defesa, começando por denunciar uma certa práctica europeia onde as realizações ficam muito aquém das proclamações.
Quanto a ideias do caminho a seguir, salientam-se os projectos já em curso ou para futuro próximo:
1. Em curso
i. Desenvolvimento da Cooperação Estruturada Permanente (CEP ou PESCO[22] no acrónimo inglês, criada em NOV2017), já com 23 participantes;
ii. Operacionalização da “Iniciativa de Intervenção Europeia” (IIE), que integra 11 países quase todos ocidentais (fora da CEP, para incluir o RU), tendo em vista a constituição de uma força de intervenção rápida;
iii. Aceleração do processo de consolidação do Fundo de Investimento na Defesa (FID), que, em conjunto com a CEP e a IIE, poderá ir num bom caminho;
iv. Desenvolvimento do Programa Europeu de Desenvolvimento Industrial no domínio da Defesa (EDIDP), estabelecido em MAR2019 e destinado a “co-financiar projectos industriais conjuntos no domínio da defesa[23];
2. Futuro próximo
i. Formulação deum Conceito Estratégico europeu há muito reclamado, enquanto “bíblia” do comando e acção, tendo por base, os interesses (vitais e secundários) e objectivos (definição do pretendido para assegurar aqueles interesses) e vectores estratégicos (para onde pretendem ir, como e com quê) de acordo com os E-M´s e aquilo que somos, no espaço multicultural europeu, população, recursos e estruturas para avaliar capacidades, potencialidades e vulnerabilidades (ameaças e riscos), tendo em conta o ambiente estratégico prevalecente e previsível;
ii. A questão do Árctico, sob ambição russa e potencial cenário de disputa global e para cuja governança regional pode não chegar o Conselho do Ártico[24], isto enquanto novas actividades[25] vão aí surgindo, fruto do contínuo processo de degelo, sendo de destacar o aumento do apetite pelo controlo dos recursos marinhos e as novas rotas marítimas polares;
iii. Exército europeu para debate, em tempo de integração política e dupla condicionalidade: complementaridade com NATO e sem desprezar a prevalência da soberania nacional;
iv. Repensar Schengen com o cumprimento do controlo rigoroso de fronteiras e o compromisso de solidariedade devida pela mesma política de asilo e regras de acolhimento e de recusa;
v. Reestruturação de uma Polícia de Fronteiras Comum e um Serviço Europeu de Asilo, sob os auspícios deuma Europa protectora simultaneamente dos seus valores e das suas fronteiras e a alçada de um Conselho Europeu de Segurança Interna, com um objectivo único face às migrações;
d) Aliança (Norte)Atlântica
Já falámos da NATO e neste ponto serei breve.
As intensas negociações diplomáticas que precederam as cimeiras de Bruxelas – da NATO e dos EUA com a UE – garantiram que ambas transmitissem ao mundo as imagens do reencontro feliz entre os dois lados do Atlântico, que a guerra da Ucrânia confirmaria um ano depois. E já agora que os europeus não esqueçam que 80% dos gastos com a defesa vêm de aliados da NATO que não estão na UE, ou seja, dos EUA (a grande fatia), do Canadá ou do RU, e apenas 11 dos 30 desses membros, cumprem com a meta dos 2% do PIB para a Defesa.
Num pensamento mais estruturado coloca-se a velha questão, que europeus e americanos discutem praticamente desde o tempo de Bill Clinton, sobre a natureza da NATO – uma aliança de defesa regional ou de dimensão global. É natural que nos tempos que correm, com a globalização e a revolução tecnológica a “apagarem” todos os dias as fronteiras entre geografias, a resposta à questão no plano aliado da NATO ou outro tipo de aliança, ganha crescente pertinência e julgamos que veio para ficar.
e) Aliança das Democracias
Com Joe Biden, o ambiente desanuviou significativamente, com a nova Administração a prometer uma desescalada, correspondida pela UE com um gesto de incentivo, ao suspender temporariamente as tarifas aduaneiras aplicadas em resposta às medidas de Trump.
Não só os americanos e europeus, onde se inclui o RU, reconhecem que, hoje e cada vez mais, se torna indispensável e imperioso uma “aliança global para defender as democracias”, num propósito de fazer recuar as autocracias e negar-lhes o acesso a infraestruturas e tecnologias críticas, bem como oportunidades de subversão cultural.
Uma aliança que não deve ser uma estrutura copiada da NATO e da sua regra de consenso para assegurar uma acção. Pelo contrário, deverá ser um fórum flexível de Estados-nação que desempenham o seu próprio papel na contenção de uma série comum de ameaças contra eles. O seu objectivo deverá passar pela persuasão de todos ou da maioria dos membros, por forma a agir e responder em conjunto a todos os grandes desafios.
Numa iniciativa do G7 (em reunião no RU, Cornualha, JUN21) foi apresentada uma proposta tendente a rivalizar com a iniciativa Nova Rota da Seda[26], da China, através de um plano de infraestrutura global, entretanto acordado com economias avançadas e sociedades abertas. Biden, o seu grande impulsionador, e os restantes líderes do G7, esperam que a iniciativa, baptizada como o nome de Build Back Better World[27](B3W), venha a ajudar “a reduzir as necessidades, com mais de 40 biliões € em infraestruturas nas nações em desenvolvimento até 2035”.
Os EUA abrem, assim, com Biden uma era de novas possibilidades às democracias numa OI em acelerada transformação, o que elas terão de poder e saber aproveitar e que, no caso da Europa, com o requerido discernimento político, tem o dever estratégico de participar e viabilizar.
IV – Notas conclusivas
A geração nascida no pós-II GM conheceu o seu desígnio do “nunca mais”, uma ideia reforçada pelo aparecimento de organizações multilaterais como a ONU, a UEE, a NATO, a OCDE, a UNESCO e outras. Hoje, o mundo com a Rússia de Putin e a China de Xi Jinping, é bem diferente daquele que foi o mundo que Franklin Roosevelt nos legou a seguir à II GM e que nos proporcionou um longo parêntesis de paz.
Poderemos estar a assistir ao início de um novo período de guerra fria, com o congelamento da guerra da Ucrânia, o que, na prática, poderia significar a construção de uma nova cortina de ferro, a separar os dois mundos da Europa-Ásia.
A decisão do Conselho Europeu, de 23JUN22, de declarar o sim à candidatura da Ucrânia, estendeu-se aos pedidos moldavo e georgiano[28], não deixando de suscitar a questão processual dos países dos Balcãs Ocidentais, onde há 4 Estados com negociações problemáticas ou ainda sem começar, e outros 2, precisamente à espera do estatuto de país candidato. Não terá sido coincidência o facto de a reunião do Conselho ter sido foi precedida por uma cimeira com esses Estados balcânicos, pouco proveitosa, aliás, na opinião dos interessados.
Sobre este novo alargamento julgo interessante a avaliação estratégica do reputado analista geopolítico britânico, Garton Ash, quando afirma, e cito: “… se for conduzido como deve ser, este 2º grande alargamento[29] a leste criará uma UE maior, mas também mais auto-suficiente em alimentos, mais forte militarmente e com maior potencial de crescimento económico …”, fim de citação. Poder-se-á chamar a isto “pensar estrategicamente”, precisamente o que a União deverá passar a fazer, mas sem esquecer a forma com Bruxelas terá de gerir, certamente com pinças, o processo de adesão de um Estado envolto em conflito territorial de parte do território leste e sul pelo ocupante invasor russo[30].
Esse terá sido, na interpretação de outros analistas, o sentido e o rumo deixado subentendido na simples frase proferida pela presidente da CE, Úrsula Van der Leyen, aquando da sua visita a Kiev nas vésperas da reunião do Conselho, e volto a citar: “… os ucranianos estão prontos a morrer pela perspectiva europeia. Nós queremos que vivam connosco na UE.”.
Alguns analistas há que chamam a atenção para estes processos de alargamento, pelo que deixam emergir de complexidade crescente, quando evoluem geograficamente do Leste para as Balcãs. Por outras palavras, a UE vai precisar de dar um “salto” equivalente àquele que deu em Maastricht (1991), quando teve de responder a outra mudança, marcada pela queda do Muro de Berlim e o fim da Guerra Fria. Se foi difícil na altura, quando a Europa parecia abrir-se a um longo período de paz, ainda o será mais agora que o Velho Continente se defronta com uma guerra europeia que parecia impensável há meia dúzia de meses. Isto, também, porque Bruxelas, tal como existe, não tem condições para se estender a um conjunto de países muito vasto, diverso e idiossincraticamente dissonante. Precisa, tal como precisou em 1999 – com a união monetária, uma moeda comum, a alteração do peso relativo de cada país no Conselho (de forma que os “grandes” não corressem o risco de ficar em minoria através do somatório dos votos dos pequenos e médios), profunda reforma institucional, que só ficou verdadeiramente concluída com o Tratado de Lisboa, aprovado em 2007 –, também hoje, de voltar a reformar as suas instituições, de aumentar significativamente a sua capacidade orçamental, de redefinir as suas prioridades políticas, só que, desta feita, em mais difícil circunstancialismo, porquanto, em 2004, vivia em paz e grande parte do mundo olhava para a Europa como um modelo de cooperação, a China estava a começar a sua ascensão imparável, a Rússia de Putin parecia um parceiro mais ou menos fiável, e, na actual conjuntura, a União vive com uma guerra nas suas fronteiras, o mundo entrou em profunda turbulência e os ventos sopram a favor das autocracias, numa perfeita tempestade geopolítica a colocar a roda da História aos solavancos, para não dizer retrocesso, situação que pode colocar em cima da mesa a ideia, não consensual, de uma Europa a várias velocidades, com um núcleo central assente nos países do euro, que o mesmo é dizer, o reforço da integração europeia num sentido tendencialmente mais federal em alguns domínios.
Por aqui se vê o quanto o 24FEV22 mundo o mudou e, sobretudo, o que ele mudou na e para a Europa. Putin fez da UE a entidade geopolítica com que, bem ou mal, tantos sonharam e que ela, mal ou bem, tanto hesitou em ser. Uma entidade geopolítica tem de actuar geopoliticamente, pondo termo ao tempo da pura geoeconomia, tão apreciado e benéfico para os alemães e não só.
Neste simples trabalho procurámos sublinhar a mais-valia dos predicados da anterior ordem, assentes no intercâmbio, cooperação, divisão de tarefas e colaboração internacional. Carecemos de uma ordem baseada nesses instrumentos e regras, assim como precisamos na política internacional, mais que nunca, de fiabilidade e confiança que só uma globalização com sentido de humanidade pode assegurar. Em tempos de crise, torna-se ainda mais necessária uma liderança e estratégia comum e assumida por todos em nome do(s) interesse(s) europeu(s), o que tem faltado diversas vezes, mas imprescindível se não se quiser sair da História, à margem da nova balança de poderes, com prevalência dos autocráticos e imperialistas.
Derrotar os nacionalismos e populismos, atacar as disfuncionalidades políticas e económicas, cuidar de uma maior legitimidade democrática e desenvolver uma PCSD eficaz, dispondo das adequadas e proporcionais capacidades militares e não militares, são pontos incontornáveis de uma reabilitação da posição europeia na nova OI.
É nesta perspectiva que deve ser concebida a sua autonomia estratégica, precisando, no domínio particular da segurança e defesa, de aumentar as suas capacidades, não naquela lógica de isolamento ou de duplicação de meios em relação à NATO, antes no sentido de reforçar o elo transatlântico e não o seu esvaziamento.
Para isso, terá de reajustar o rumo estratégico, como nos veio lembrar a assertividade da ameaça russa. E uma oportunidade pode ser dada pela Bússola Estratégica com o roteiro delineado pelos 27 E-M´s, para além dos instrumentos já disponíveis como a CEP, o Fundo Europeu de Desenvolvimento (FED) eoMecanismo Europeu de Apoio à Paz (MEAP)[31], isto num tempo em que os interesses europeus estão a ser postos em causa em todos os domínios da segurança, incluindo o ciberespaço, o mar e o espaço. Para isso, os europeus terão de se consciencializar e preparar para, simultaneamente, mais e melhor despesa em defesa.
Falando claro e com a consciência da natureza controversa da questão, mas é a visão que partilhamos, a Europa precisa de se tornar mais integrada politicamente, ou seja, mais federal –projecto que não deve ser configurado como um fato à medida, antes uma “vestimenta” confeccionada por etapas e fases, com moderação, progressividade e diversidade, com matizes vários, de subsidiariedades e de domínios de abrangência e aplicação –, suficientemente habilitada a resolver um quádruplo problema de falhas e insuficiências que a entravam há muito: conceito estratégico comum, legitimidade democrática, governança e liderança.
A Europa precisa de acreditar que tem força para ter futuro, de o discutir, de o enfrentar, de um novo projecto europeu — político, económico e social —, que lhe devolva o seu poder e papel de que já dispôs no mundo, isto num ano político que se prepara para encerrar com dois acontecimentos maiores de possíveis e pesadas consequências: o XX Congresso do Partido Comunista Chinês (PCC) e as eleições intercalares americanas, para não ir mais adiante às presidenciais com o fantasma do trumpismo.
A crise pandémica iniciada em 2020 parecia ter marcado o início de uma nova OM, na qual as preocupações com a saúde pública e o clima seriam a prioridade internacional. Contudo, em início de 2022, o (in)esperado e condenável ataque à Ucrânia – celeiro do mundo, capaz de alimentar mais de 400 milhões de pessoas –, alterou profundamente a agenda política internacional.
Na realidade, quando julgávamos que convergíamos para um equilíbrio centrado na cooperação internacional com o objectivo de salvar o Planeta, fomos desviados, de forma cruel, para uma desordem sem precedentes desde a II GM.
Estamos num período histórico de grandes convulsões em que temos de fazer tudo para reforçar a Europa do ponto de vista geopolítico, a exigir uma forte e esclarecida liderança, e é neste quadro de desordem que os problemas que deveriam ser a prioridade colectiva – crise climática ou emergência alimentar – arriscam a tornarem-se secundários, a prejuízo de inventário das gerações vindouras, das suas condições e modo de vida.
É aqui que estamos, nós europeus! MUITO OBRIGADO.
Comunicação à Academia de Marinha em 30 de junho de 2022
VALM António Rebelo Duarte
Presidente Academia Internacional de Cultura Portuguesa
[1] O Conselho Europeu (fins de MAI22) conseguiu o entendimento dificultado, até à última, pela Hungria, no sentido de promover o embargo ao petróleo russo, no quadro do 6º pacote de sanções, incluindo outras medidas substanciais, nomeadamente a inclusão na listagem dos comandos militares responsáveis pelas atrocidades em Bucha, a proibição de três novos canais de propaganda russa e a retirada do maior banco comercial da Rússia do sistema internacional de pagamentos SWIFT. A UE deu, de facto, um forte sinal político com vista ao termo de 90% das importações de petróleo russo até ao final de 2022, acompanhado de um pacote de 9.000 milhões € para apoio militar à Ucrânia, tudo isto em ambiente agregador que lhe permitiu começar, desde logo, a equacionar o plano complementar, com financiamento e execução do RePowerEU destinado a acelerar a transição para as energias limpas, na actual conjuntura de alta de preços e pressão sobre os governos para medidas de alívio da crise resultante da inflação de redução das importações de gás russo em 2/3, tentativamente até ao dealbar de 2023;
[2] Antes da guerra a Rússia fornecia 46% do carvão, 40% do gás natural e 26% do petróleo importados pela UE, com a Alemanha a procurar resolver a intermitência das renováveis apenas com o gás russo, abdicando demasiado cedo da energia nuclear e aumentando a sua dependência energética entre 2000 e 2020;
[3] Discurso do presidente russo na abertura do Fórum de São Petersburgo, em 18JUN22, cujo tom combativo contrastou com o menor entusiasmo da comunicação proferida no Dia da Vitória, a 09MAI22;
[4] A China continua a ser o maior parceiro comercial de África, com o comércio entre a China e o continente em 254 mil milhões € em 2021. Os objectivos da Rússia no Continente africano são idênticos: ganhar influência, fazendo com que os países africanos dependam dos seus serviços. Enquanto no caso da China, os investimentos e as infraestruturas são oferecidos em troca de um acesso estratégico a recursos naturais vitais e a uma alavanca política, no caso da Rússia, trata-se de armas e mercenários patrocinados pelo Estado russo, conhecidos como empresas militares privadas (PMC´s) em troca do mesmo;
[5] Nos últimos 8 anos, o Donbass foi palco de um conflito entre o Exército ucraniano e grupos separatistas pró-russos e, nesse contexto, mais de 3.000 civis foram mortos, de acordo com a ONU;
[6] Como se pode constatar, a UE está consideravelmente dependente de terceiros, nomeadamente da China, que, para além de ter uma posição importante na extração, é ainda mais relevante no processamento, com uma quota mundial de 58% para o lítio, 65% para o cobalto e 87% para as terras raras usadas em dispositivos de alta tecnologia, incluindo smartphones e computadores. Nos últimos anos, a China subsidiou diversos projetos de extração e processamento de minérios, tornando a sua indústria mineira muito mais competitiva que a europeia, e, adicionalmente, investiu na construção de redes de transporte e na procura por fontes de energia e matérias-primas de outros países, aproveitando o seu poderio económico para construir uma rede de influências políticas e dependências financeiras (por exemplo, actualmente, 15 das 17 operações industriais de cobalto da República Democrática do Congo são detidas pela China);
[7] Basta lembrar a crescente importação do exterior, hoje afectada pelas sanções, de equipamento e maquinarias que Moscovo não consegue encontrar interiormente, em contraste com o interesse chinês na aquisição de patentes estrangeiras para usar na sua própria indústria. Como já verificado no passado, a Rússia mantém a dificuldade de transferência para o mercado os resultados da sua investigação, fundamentalmente muito direcionada para o domínio militar, o que se poderá revestir de um erro estratégico de grave implicação e consequências no futuro. Até agora, Putin tem procurado colmatar a vulnerabilidade latente através de uma narrativa populista, nacionalista e conservadora, só que a dificuldade emergirá a médio prazo, na medida em que as presentes opções ideológicas e económicas do Kremlin poderão acarretar um forte ónus para o futuro da geração mais jovem, susceptível de reacções pouco conformistas;
[8] O PCC fala em recuperar Taiwan de uma forma consistente desde 1949 e a própria população chinesa tem sido ensinada, de geração em geração, há várias décadas, que a China tem como missão ultrapassar a “humilhação nacional”, conceptualmemte associada à ocupação estrangeira do território durante o período entre as Guerras do Ópio, a partir de 1839, e a fundação da República Popular da China, em 1949;
[9] Na reunião, de 26ABR22, na base militar americana de Ramstein, na Alemanha, convocada pelo secretário da Defesa Lloyd Austin, estiveram presentes os membros da NATO e os seus parceiros europeus, mas também as principais democracias asiáticas, 40 países ao todo, tendo por objectivo a coordenação do apoio militar à Ucrânia, mas a sua repercussão esteve muito para além da Europa;
[10] Pensada para se focar na partilha de meios e de tecnologia nos campos da inteligência artificial, cibersegurança e tecnologia quântica, terá como primeira iniciativa ajudar a Austrália a obter uma frota de submarinos movidos a energia nuclear e criar uma infra-estrutura para a manter e desenvolver. Esta parceria é uma iniciativa destinada a desencorajar a disputa hegemonia regional pela China. Não quer dizer que o consiga. Mas é uma jogada poderosa. Não se trata de uma “NATO do Oriente”, mas de uma rede de organizações de dissuasão do poderio chinês, como resume o analista francês Antoine Bondaz: “Para a China, o pacto entre Washington, Canberra e Londres é a realização de um medo antigo: a multilateralização das alianças americanas na região. Hoje, a Austrália e o Reino Unido. Amanhã, talvez o Japão”;
[11] Diálogo de Segurança Quadrilateral (abreviadamente Quad), um acordo visando assegurar a defesa de um Indo-Pacífico “livre e aberto”, com “liberdade de navegação e de sobrevoo”. Este grupo informal (EUA, Índia, Austrália e Japão) tem dado sinais de vida, como o comprova a visita de Biden ao Japão e a reunião da parceria cooperativa, à qual o Governo sul-coreano já fez saber que está interessado em integrar o grupo, e que os EUA aproveitaram a oportunidade para aproximar os dois países com rivalidades antigas que regressam à superfície em momentos mais sensíveis, como é o caso da Coreia do Sul e Japão. Nesse encontro, Biden pormenorizou sobre a sua iniciativa conhecida como Quadro Económico do Indo-Pacífico[11], visando fazer ressuscitar alguns dos principais objectivos do Acordo Transpacífico de Cooperação Económica (o TPP), a que o Partido Democrata virou as costas em 2016, e que Donald Trump denunciou assim que tomou posse, em JAN2017, bem como reuniu consenso em favor da unidade na defesa da “soberania e da integridade territorial”, com a condenação de “qualquer tentativa unilateral de alteração do status quo”, referindo-se ao conflito na Ucrânia;
[12] Com este 3º porta-aviões – que ainda precisará de tempo para estar totalmente operacional – a China sobe ao 2º lugar do ranking de países com o maior número deste tipo de navios, embora ainda bastante longe dos EUA nesta capacidade, com 11 porta-aviões, a maioria com capacidade para operar em qualquer parte do mundo, em grande medida por serem movidos através de tecnologia de propulsão nuclear. Aos porta-aviões, os EUA acrescentam ainda nove porta-helicópteros – a China tem apenas um, o RU com 2 porta-aviões, Itália 2, França 1, Rússia 1, Índia 1 e Espanha 1, a completarem. Alguns destes, assim como o Japão, a Coreia do Sul, a Tailândia, a Austrália, o Egipto e o Brasil, também têm porta-helicópteros;
[13] Conhecida internacionalmente como a “Iniciativa de Cinturão e Rota”;
[14] Eurobarómetro da Primavera, realizado entre 19ABR e 16MAI22, a 26.578 inquiridos dos 27 E-M´s;
[15] Tratado de Roma, de 1957, assinado pelos 6 fundadores (Benelux, França, Itália e Alemanha);
[16] Tratado de Paris entre a Alemanha, Bélgica, França, Itália, Holanda e Luxemburgo;
[17] Tratado de Maastrich, de 1992;
[18] Entre 1973 e 1985, a União acolheu a Dinamarca, a Irlanda, o Reino Unido, a Grécia, Portugal e Espanha. A 09NOV1989 foi derrubado o Muro de Berlim e volvidos 3 anos foi assinado o Tratado de Maastricht, fundador do Euro e da união financeira, a União Económica e Monetária (UEM). Em 1995, deu-se um novo alargamento com a entrada da Áustria, Finlândia e Suécia. Mas foi em 2004 que 10 países entraram de uma só assentada: Chipre, República Checa, Estónia, Hungria, Letónia, Lituânia, Malta, Polónia, Eslováquia e Eslovénia, aos quais se juntaram a Roménia e a Bulgária em 2007, e a Croácia em 2013, elevando o número de E-M´s para 28. Em 2016, o referendo sobre o Brexit iniciou o caminho para a primeira saída de um estado-membro da UE;
[19] A UE, ao ser, em termos económicos, cerca de 12 vezes maior que a Rússia, congrega um enorme potencial de poder, que, no entanto, não se materializa em poder militar e político, dada a natureza nacional de um sector que os E-M´s não têm prescindido. Ao fundir, na tal forma cooperativa, as suas capacidades militares, seria viável que a França e à Alemanha construíssem uma defesa credível contra as ameaças russas, até sem terem de realizar mais gastos. Os gastos militares combinados de uma tal união de defesa franco-germânica, sem contar com outros parceiros aderentes, seriam 50% superiores à despesa militar russa, o suficiente para servir de contrapeso a um ditador russo cujas ambições políticas e militares na Europa sonega;
[20] Foram recebidos contributos dos cidadãos através de dois processos paralelos. De um lado, uma plataforma online, que recebeu 18.859 ideias, de 53.321 participantes inscritos, que geraram 22.167 comentários. Nesse site, uma espécie de rede social dedicada ao futuro da Europa, foram ainda registados 6661 eventos, que tiveram mais de 721.000 participantes. Do outro lado, formaram-se 4 Painéis de Cidadãos para tratar diferentes temas, cada um com 200 europeus, escolhidos de forma aleatória, mas de acordo com critérios idade, género e país. Um exigente processo de democracia deliberativa, que culminou com uma Plenária, que redigiu um relatório final com 49 propostas divididas por 328 medidas concretas, tendo o respectivo caderno de encargos sido entregue em 09MAI22, dia da Europa, ao Parlamento, Comissão e Conselho da UE;
[21] O Tratado de Lisboa (2009) alarga as áreas em que a União pode decidir por maioria, mas há domínios mais sensíveis para a soberania dos Estados em que isso ainda não acontece: impostos, adesão de novos membros, política externa e de segurança ou cooperação policial. As objecções no domínio específico da política externa e de segurança têm vindo sobretudo dos países mais pequenos e periféricos, que temem ver-se subordinados aos interesses dos “grandes. Portugal, por exemplo, não tem sido favorável à mudança. Até que ponto a guerra veio alterar a posição do governo, o futuro o dirá;
[22] A ideia da Permanent Structured Cooperation (CEP) surgiu na sequência de uma iniciativa franco-alemã no contexto de um esforço de relançamento de um projecto europeu em grave crise existencial. Uma figura que já estava prevista no Tratado de Lisboa (2007) mas que só viu a luz do dia em NOV2017, com o objectivo de criar uma área de cooperação permanente entre os países da União que decidissem voluntariamente fazê-lo, sem que os outros o pudessem impedir e a verdade é que ninguém quis ficar de fora[22]. Os promotores do projecto garantiriam que a CEP viria “reforçar o pilar europeu no seio da NATO” – ou seja, que os projectos europeus seriam desenvolvidos em estreita coordenação com a Aliança e evitando quaisquer redundâncias. Por ouro lado, a CEP constituiu um mecanismo fundamental para o desenvolvimento de capacidades de defesa conjuntas, o investimento em projectos comuns e melhoria da prontidão e contributo operacional das respectivas FA´s, prevenindo eventuais “anemias” da NATO. É compreensível que o planeamento, aquisição e operação de meios numa perspectiva cooperativa contribuiriam consideravelmente para uma melhor interoperabilidade das FA;
[23] Incluindo o projecto ”Ocean 2020”, no valor de 35 milhões €, para apoiar as missões de vigilância marítima;
[24] Composto pelo Canadá, Dinamarca, Noruega, Rússia, EUA, Finlândia, Suécia e Islândia;
[25] No conjunto dessas actividades inscrevem-se os processos[25] de extensão da plataforma continental (PC), com a complexidade própria da sobreposição de áreas candidatadas pelos “Estado Árcticos”, bem como as decorrentes da abertura das novas rotas marítimas polares (presentemente, ainda que de forma limitada pela sazonalidade climática, existem duas rotas possíveis para efetuar a travessia marítima pelo oceano Ártico; a passagem do Nordeste e a do Noroeste, junto à Rússia e ao Canadá, respetivamente), propiciadas pelo degelo, antevendo-se, num futuro não muito longínquo, é a possibilidade de uma rota transpolar, em alto-mar, evitando a sujeição às exigências dos Estados costeiros;
[26] De acordo com a empresa de dados financeiros e infraestrutura Refinitiv, em meados de 2020, estavam ligados à Nova Rota da Seda mais de 2.600 projectos a um custo de 3,7 biliões €. Em JUN21, o MNE chinês disse que cerca de 20% dos projectos tinham sido fortemente afectados pela pandemia da Covid-19.
[27] A proposta dos EUA tem como objectivo a mobilização de capital do sector privado para promover projectos em quatro áreas: clima, segurança sanitária, tecnologia digital e igualdade de género. O plano contará também com investimentos de instituições financeiras e os países em desenvolvimento da América Latina, Caraíbas, África e Indo-Pacífico serão os destinatários da iniciativa, que se assume como uma alternativa à Nova Rota da Seda da China, fruto da colaboração entre as grandes democracias mundiais para levar a cabo um projecto pautado por “valores com elevados padrões e transparência”;
[28] Isso não retira complexidade ao processo de adesão, com as dificuldades inerentes das negociações, que incluem 35 capítulos que passam pelo escrutínio rigoroso do funcionamento da economia, da administração pública, do Estado de direito ou do sistema judicial;
[29] O Conselho Europeu, de 23JUN22, aprovou o estatuto de candidato à Ucrânia, República da Moldova e Geórgia, em contraste com alguma “desilusão” e “frustração” manifestadas durante a manhã pelos líderes dos países dos Balcãs Ocidentais — Albânia, Bósnia Herzegovina, Kosovo, Macedónia do Norte, Montenegro e Sérvia —, devido à lentidão do tratamento dos seus processos de candidatura à entrada na UE;
[30] Quem saberá como irá conseguir a Ucrânia, destroçada pela guerra e com o seu território parcialmente ocupado, cumprir os 35 capítulos das negociações de adesão, tão pouco a razão pela qual devemos acreditar que a Rússia, futuramente, irá sanar o conflito territorial com Kiev, facilitando a adesão à UE?;
[31] A urgência e convergência de reformulação geopolítica marcaram o lançamento da Bússola Estratégica promovido pela UE e aprovada em MAR22. Os instrumentos preexistentes são agora fortalecidos, tais como o FED – com 8.000 milhões € até 2027 – e o MEAP – activado para comprar armas para a Ucrânia –, num claro reconhecimento da política de desinvestimento na área da defesa e que foi comum à grande maioria dos E-M´s nas duas últimas décadas, para não ir mais atrás;