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Ao longo dos séculos, as mulheres têm desempenhado uma panóplia de funções em cenários de conflito, tais como espias, enfermeiras, passando por repórteres de guerra, fotógrafas, diplomatas e militares. Porém, vários estudos argumentam que a sua capacidade tem sido menosprezada e ignorada: esta situação é evidente, por exemplo, na espionagem em que o papel da mulher é sistematicamente centrado na sedução sexual, desvalorizando-se o seu intelecto. Há múltiplos exemplos que desafiam esta narrativa, como evidencia Anne Kramer em “Women Wartime Spies” (2011). O trabalho das criptografas de Bletchley Park, ou das virtuosas do SOE de Churchill, foi crucial para a vitória dos Aliados na Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Mais recentemente, a persistência e dedicação da analista da CIA, Alfreda Scheuer, deu origem à operação NEPTUNE SPEAR, uma missão de alto risco que, em 2011, permitiu localizar e captar Osama Bin Laden – fundador da al-Qaeda, mastermind do 11/9 – em Abbottabad, no Paquistão (e, mais tarde, inspirar o filme norte-americano “Zero Dark Thirty”).

A Resolução 1325 do Conselho de Segurança das Nações Unidas (2000) é frequentemente citada como um game-changer nesta área porque, pela primeira vez, colocou as mulheres no debate sobre a segurança, afirmando a importância da sua participação em matérias de segurança e defesa, bem como a necessidade de protegê-las da violência com base no género. Neste texto, abordamos o papel da mulher em uma outra área tradicionalmente masculina: o terrorismo. Qual o papel das mulheres no terrorismo? Neste texto, exploramos o seu envolvimento em três dimensões: enquanto terroristas; alvos e peacekeepers (aqui, no sentido de agentes de contraterrorismo e não no âmbito dos capacetes azuis da ONU).

1. Mulheres como terroristas e agentes de violência

O papel das mulheres enquanto agentes de violência tem sido ignorado na política internacional. Em “Mothers, Monsters, Whores: Women’s Violence in Global Politics” (2007), Laura Sjoberg e Caron E. Gentry argumentam que a capacidade de uma mulher poder cometer atos agressivos tem sido desvalorizada – “because is not supposed too”. As autoras explicam que o seu comportamento violento é sistematicamente justificado segundo determinadas narrativas – porque a mulher é controlada, ameaçada ou depravada – e nunca porque assim o quis.

Ulrike Meinhof, co-fundadora do grupo terrorista Baader-Meinhof (Alemanha), 1964.

A participação das mulheres no terrorismo contraria esta narrativa: as mulheres são elementos ativos na violência terrorista desde a emergência de grupos anarquistas no século XIX, na Rússia, como o Narodnaya Volya. Entre 1921 e 1931, as mulheres do Ku Klux Klan (1865) conseguiram recrutar milhares de indivíduos para a causa. Entre 1960 e 1970 várias mulheres assumiram papéis de liderança em diversas organizações terroristas. Por exemplo, Ulrike Meinhof cocriou o grupo o Baader-Meinhof (RAF), na Alemanha, e Fusako Shigenobu fundou o Exército Vermelho Japonês. Entre a década de 1970 e meados de 1980, o grupo “M19”, constituído quase na totalidade por mulheres – cujo nome relembra os perpetradores do 11/9, “The Magnificent 19” – perpetrou uma série de ataques bombistas nos EUA. Nos anos 90, sublinha-se o assassinato do Primeiro-Ministro indiano Rajiv Gandhi (1991) por uma mulher, Thenmozhi Rajaratnam, membro do grupo terrorista Liberation Tigers of Tamil Eelam (LTTE) do Sri Lanka, que escondeu um cinto de explosivos no seu vestido. O filme “The Terrorist” (1998) inspira-se no episódio, explorando os motivos para o ataque suicida.

Nos últimos anos, as mulheres têm assumido papéis relevantes em grupos terroristas como o autoproclamado Estado Islâmico (Daesh) e afiliados, participando em atos de violência (enquanto bombistas-suicidas), no recrutamento, financiamento, difusão de propaganda e ideologia, bem como em apoio logístico e operacional. Os ataques perpetrados por mulheres têm aumentado quer em quantidade quer ao nível da letalidade. Destaca-se, por exemplo, um atentado de 2017 em Mossul, no Iraque, perpetrado por 38 bombistas-suicidas do Daesh contra civis e forças de segurança.

Fusako Shigenobu, fundadora do grupo Japanese Red Army (Japão).

Vários estudos demonstram que as mulheres aderem aos grupos terroristas por razões semelhantes aos homens, incluindo motivações político-ideológicas (crença em determinada causa) e económicas. Outras aderem por questões relativas aos Direitos humanos, por exemplo na espectativa de aceder a determinados recursos ou à educação (é o caso das mulheres do Boko Haram, na Nigéria), ou com o objetivo de obter maior liberdade política e social (é o caso das mulheres nas FARC, Colômbia, ou no LTTE, Sri Lanka). Não obstante, sabe-se também que várias são raptadas e forçadas a cometer atos violentos: por exemplo, 1 em 3 bombistas-suicidas do Boko Haram são menores de idade.

2. Mulheres como alvos dos terroristas

As mulheres também são alvos dos terroristas, sendo visadas tanto por grupos jihadistas como grupos da extrema-direita. Ambos recorrem à violência, aos raptos, à subjugação física e psicológica, e ao tráfico sexual. Tal como explicámos em texto anterior, a dimensão sexual é importante porque constitui um catalisador para a violência.

Para o Daesh, as mulheres (e crianças) funcionam como um trunfo de recrutamento: milhares de combatentes foram atraídos para o Califado pela ideia de as disporem sexualmente. As mulheres servem como “linha de montagem”, moeda de troca em negociações, e para satisfação pessoal de combatentes e líderes. Os testemunhos das escravas sexuais da minoria iraquiana Yazidi – como o da sobrevivente Nadia Murad, Prémio Nobel da Paz (2018) – são evidentes do horror perpetrado.

Para a extrema-direita, as mulheres são vistas como objetos sexuais, demonizadas, e culpadas pela “falta de sucesso” dos homens em arranjar um relacionamento amoroso. Em 2014, Elliot Rodger, de 22 anos, esfaqueou 7 pessoas na Califórnia, incluindo mulheres, por alegada frustração sexual. “He wanted to punish women for not wanting to sleep with him”. Rodger, apelidado pelos seguidores de “Supreme Gentleman”, inspirou ataques subsequentes nos EUA, Canadá e Europa.

3. Mulheres como peacekeepers (agentes de contraterrorismo)

As mulheres combatentes do Exército do Curdistão, as conhecidas Peshmerga (“those who face death”), constituem uma das forças mais temíveis para o Estado Islâmico. Durante a tomada de Baghuz, o último reduto da guerra contra o Daesh na Síria (2019), Afshin Ismaeli, fotógrafo curdo, captou a resistência destas mulheres, incluindo a mestria das snipers, consideradas as militares mais precisas da região. “The best snipers in the area”. Outras, mesmo sem treino militar, destacam-se pela coragem: foi o caso desta jovem cuja bravura se tornou “viral” em 2017 ao desafiar a morte com um sorriso…

Para os grupos jihadistas, que preconizam uma versão fundamentalista e extremista do Islão, ser morto por uma mulher é uma heresia. Primeiro porque a mulher é considerada inferior ao homem. Segundo, porque ser morto por uma mulher significa a impossibilidade de ir parar ao “paraíso islâmico” (isto é, de dispor de 72 virgens…), a recompensa “divina” para um mártir da causa islamista. Inspirado em histórias reais, o filme “Irmãs de Armas” (2022) relata a história de uma rapariga Yazidi vendida como escrava sexual, que se junta à resistência curda. O filme apresenta mulheres combatentes de várias nacionalidades, incluindo portuguesa (ficcional)…

Poster do filme “Irmãs de Armas“, realizado por Caroline Fourest

As mulheres têm desempenhado um conjunto de funções na área da segurança, em particular como agentes de prevenção e combate ao extremismo violento. Em “A Woman’s Place: US Counterterrorism since 9/11” (2019) Joana Cook faz uma análise pioneira sobre o papel das mulheres como agentes de prevenção e mitigação da ameaça terrorista. Em particular, refere que o Departamento de Estado norte-americano (DoD) tem apostado cada vez mais na integração de mulheres em operações de contraterrorismo, tal como aconteceu no Iraque (2003), no Iémen (2006) – no qual se estabeleceu uma unidade de elite em contraterrorismo apenas constituída por mulheres – ou no Afeganistão, onde se treinou um grupo feminino de Forças de Operações Especiais para colaborar na deteção de alvos terroristas.

Comparativamente aos homens, é frequentemente reportado que as mulheres têm maior facilidade em aproximar-se de determinadas vítimas e alvos, como crianças e comunidades muçulmanas (que é o grupo populacional mais visado pelos grupos terroristas de matriz jihadista e também o mais vigiado pelos serviços de informações desde o 11/9, tanto na Europa como nos EUA). O papel tradicional das mulheres em contextos familiares, sobretudo em países com baixos índices de desenvolvimento socioeconómico, também tem sido vantajoso para a prevenção do extremismo. Por exemplo, no Afeganistão, várias mulheres reportaram que jovens rapazes estariam a ser alvo de ações de recrutamento em casamentos, denúncia que foi ignorada pelas autoridades. Posteriormente, estes jovens perpetraram um ataque em um autocarro público, vitimando mortalmente 32 civis.

Nota conclusiva

As mulheres são ativos estratégicos quer para grupos hostis, como organizações terroristas, quer para os Estados. Para os grupos terroristas, as mulheres são elementos operacionais e alvos a atingir. Para os Estados, as mulheres são figuras essenciais na prevenção e combate à ameaça terrorista, credíveis e confiáveis, que desempenham as suas funções de forma competente.


24 de julho de 2023

Joana Araújo Lopes é Doutoranda em “História, Estudos de Segurança e Defesa” no ISCTE. É bolseira da FCT e trabalha numa tese sobre o contraterrorismo em Portugal e Espanha, no contexto da União Europeia (2004-2020). É Mestre em Ciência Política e Relações Internacionais pela Universidade NOVA de Lisboa (2017). Trabalhou como estagiária na Embaixada Americana em Lisboa (Assuntos Consulares), no Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) (Direção-Geral de Política Externa) e no Instituto da Defesa Nacional (IDN). Os seus principais interesses de investigação incidem sobre a segurança internacional, o terrorismo, o contraterrorismo, a radicalização, o extremismo violento e a diplomacia.

https://ciencia.iscte-iul.pt/authors/joana-araujo-lopes/cv

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