Em jeito de balanço de 13 anos do Sistema de Segurança Interna e na hora da saída da secretária-geral Helena Fazenda, o general Agostinho Costa, ex-comandante da GNR e porta-voz do Grupo de Reflexão Estratégica para a Segurança, identifica as entropias de um modelo que não deu ainda provas
DN: O tão aclamado “super-polícia”, ou secretário-geral do Sistema de Segurança Interna (SGSSI), criado já há 13 anos, não se conseguiu impor no Sistema de Segurança Interna, porquê?
O nível de ambição subjacente à criação do SGSSI foi baixo, quer pela estreiteza das competências que lhe estão atribuídas, como pela pluralidade de condicionantes que são colocadas à sua atuação e, sobretudo, pela ausência de uma estrutura coerente que possa assegurar as responsabilidades decorrentes da deliberação do Conselho Europeu de 2005 – cada Estado-Membro da UE dispor de um organismo central de intelligence criminal orientado para o combate ao crime organizado transnacional. O cargo de SGSSI teve mais a ver com o preenchimento de uma formalidade do que espelhar uma real vontade política de transformação do SSI, pese embora tenha sido criado no contexto do que então foi anunciado como uma reforma no sistema.
DN: Mas a Lei de Segurança Interna atribui um vasto conjunto de competências de coordenação, comando, controlo e direção…
O cargo de SGSSI está rodeado de equívocos. Existe um desfasamento entre as competências que a Lei de Segurança Interna lhe confere e os meios que lhe atribui. As suas competências de direção, por exemplo, estão limitadas aos “recursos comuns das forças e serviços de segurança” (FSS), não se vislumbrando bem em que consistem. As competências de controlo por seu lado, estão circunscritas a “missões ou tarefas específicas, limitadas pela sua natureza, tempo ou espaço” e “através dos respetivos dirigentes máximos”. Tem no Plano de Coordenação, Controlo e Comando Operacional das Forças e dos Serviços de Segurança o alfa e o ómega dessa atuação. As patéticas ocorrências registadas no início do processo de receção e distribuição das vacinas para a Covid-19, com a PSP de Évora a bloquear o movimento da coluna da GNR encarregada desta tarefa, atestam tanto o desconhecimento como o grau de utilidade deste plano.
Quanto ao comando este processa-se apenas “em situações extraordinárias, determinadas pelo Primeiro-Ministro após comunicação fundamentada ao Presidente da República, de ataques terroristas ou de acidentes graves ou catástrofes que requeiram a intervenção conjunta e combinada de diferentes forças e serviços de segurança”.
Se omitirmos as competências de coordenação onde o SGSSI assume o papel de honest broker e tomarmos em consideração que para que possa assumir funções de comando operacional o Presidente da República terá que ser informado (e, consequentemente, dar a sua anuência), depreende-se que o SGSSI se limita a ser o guardião de um plano de coordenação que, no nível tático-policial, poucos sabem o que é, cujo único propósito é desconflituar as permanentes quezílias territoriais da PSP com a GNR, numa lógica de responsabilidade e autoridade própria do Portugal do séc. XIX.
DN: A atual SGSSI, Helena Fazenda deverá sair no próximo dia um de julho, conforme noticiou o DN. Foi a pessoa certa para fazer frente a esses equívocos?
Perante o nível moderado das expectativas que, no atual contexto, o cargo de SGSSI nos permite perspetivar, tendo em conta as limitações das suas competências, a insipiência dos recursos colocados à sua disposição e a manifesta falta de vontade política para efetuar as alterações estruturais necessárias para assegurar a sua efetividade, o mandato da Dra. Helena Fazenda foi essencialmente um magistério de influência. E, como se sabe, a influência é o campo da liderança. Neste domínio a sua ação foi discreta, mas assertiva quando foi necessário (na implementação do PUC-CPI, por exemplo). Citando Ortega Y Gasset, a pessoa é ela e as suas circunstâncias. A atual SGSSI fez um mandato sereno, sem turbulências, conseguindo gerir as tensões, minimizar acrimónias, esbater rivalidades e serenar ânimos, que são algumas das caraterísticas dominantes do relacionamento entre as polícias. O balanço é necessariamente positivo, como aliás atesta a sua longevidade no cargo.
DN: É admissível que tenha aprovado, sem o divulgar, em 2017, o plano de prevenção de recrutamento para o extremismo, um dos planos mais importantes da Estratégia Nacional de Combate ao Terrorismo (ENCT)?
A prestação da SGSSI em março na AR e o facto de o RASI não dar nota do Plano de Ação para a Prevenção da Radicalização, dos Extremismos Violentos e do Recrutamento para o Terrorismo (PAPREVRT), despertam legítimas reservas sobre o assunto. Na sequência dos atentados terroristas ocorridos na UE durante a década passada, o Gabinete do SGSSI foi reforçado com a Unidade de Coordenação Antiterrorismo (UCAT), organismo que estava anteriormente na dependência da PJ. Contudo, resume-se a uma equipa técnica permanente de 7 representantes das FSS, sem capacidade de planeamento ou condução de operações, sendo uma mera estrutura de acompanhamento e monitorização, bem como de coordenação dos planos de execução das ações previstas na ENCT. A opacidade de que se tem revestido este assunto suscita também dúvidas sobre o grau de conhecimento que os atores terão do PAPREVRT e em que medida os cenários equacionados serão credíveis e os procedimentos devidamente treinados.
Elencando uma miríade de planos/tarefas de inequívoca importância, mas sendo omissa sobre quem elabora e de que modo são implementados, a ENCT apresenta um nível de ambição desproporcionado em relação à capacidade instalada no SGSSI. Atesta o desfasamento entre fins, formas e meios para combater o terrorismo. Na prática, o assunto é remetido para as FSS.
DN: Perante tantas condicionantes legais, o que se pode legitimamente esperar do SGSSI?
Com o atual quadro normativo os portugueses pouco mais poderão esperar do que o alcançado pela atual SGSSI. Contudo, é legítimo que os cidadãos exijam da parte do poder político iniciativas e medidas legislativas mais claras.
Assegurar um modelo de policiamento orientado pelas informações, que seja extensivo à globalidade do SSI e não uma mera consequência dos critérios discricionários dos dirigentes de turno em cada uma das FSS. Assegurar a coordenação, colaboração, interdependência e a partilha de informações, em prol da eficácia no combate à criminalidade organizada transnacional, onde se insere também o contraterrorismo, é um desígnio que não se compadece com o atual estado da arte.
Os episódios de que o SSI dá frequentes mostras, são intoleráveis no plano da eficiência, incompreensíveis no da eficácia e incongruentes com políticas públicas que tenham em conta a gestão parcimoniosa dos recursos públicos. Principalmente se pensarmos no crescente volume de missões a que as FSS são chamadas a dar resposta, em áreas que vão do plano securitário ao da proteção, passando por uma crescente ação no plano social.
DN: O que é preciso fazer para que Portugal tenha um SSI com real efetividade?
Penso que é preciso encetar uma reforma do SSI que passe pela transformação do Gabinete do SGSSI numa Agência de Combate ao Crime Organizado (ACCO), que reúna efetivos provenientes das diferentes FSS, de Autoridades Administrativas do Estado e de valências da sociedade civil relevantes para a Segurança Interna. Que concentre as bases de dados da SI e seja um hub no acesso às de outros organismos do Estado e do setor privado com relevância para a SI. Reúna capacidades técnicas e no domínio do conhecimento que possam ser destacadas em apoio das FSS para a resolução de situações específicas, bem como meios tecnológicos especiais que possam operar em proveito de todo o SSI, com ganhos de eficiência. Que assegure uma efetiva participação de Portugal no ciclo quadrienal da UE no combate ao crime organizado transnacional, com a efetiva transposição para o plano nacional dos planos estratégicos plurianuais e dos planos operacionais anuais. Também, que assegure a análise estratégica e operacional para combate ao crime organizado, em prol do conjunto das FSS. É preciso encetar um processo de discussão pública do tema, liberto de emoções e desprendido de interesses corporativos, que conduza ao esclarecimento público da sua necessidade e à consciencialização da urgência de uma profunda mudança cultural nas polícias, começando pelos escalões de topo.
DN: Qual seria o perfil recomendável para o próximo SGSSI?
Se o nível de ambição for conservador (manter tudo como está), então o perfil deverá assentar numa personalidade com caraterísticas semelhantes às da atual SGSSI, uma vez que a sua principal função será gerir crises de humor, apaziguar emoções e manter em alto a autoestima dos dirigentes das FSS. Para o efeito a inteligência emocional apresenta-se como o fator determinante.
Se a intenção for implementar a decisão do Conselho Europeu de 2005, o cargo de SGSSI poderá ficar temporariamente vago (e ninguém notará a diferença) até à conclusão do necessário processo de reforma do setor da segurança interna.
De seguida, deverá transformar-se o Gabinete do SGSSI na ACCO, num processo em tudo idêntico ao que foi conduzido aquando da criação da AGIF (Agência para a Gestão Integrada de Fogos Rurais).
Porque a função da ACCO será de âmbito estratégico-operacional, este organismo deverá integrar-se no MAI e a sua liderança ser cometida, numa base rotativa, a personalidades oriundas das duas principais forças de segurança (GNR e PSP). Deverá, contudo, acautelar-se uma distribuição equilibrada e representativa de todas as FSS na sua estrutura superior, segundo critérios semelhantes aos adotados pelas forças armadas no preenchimento dos cargos do EMGFA.
21 de junho de 2021
Agostinho Costa
Vice-Presidente da Direção
O General Agostinho Costa foi 2º Comandante e Comandante Operacional da GNR.
Entrevista publica na edição do jornal Diário de Notícias do dia 15 de junho de 2021 em :