(Energia e Clima no horizonte da estratégia nacional de segurança e defesa)
Introdução
Pretende-se com esta reflexão invocar a importância, o enquadramento, limitações e o encontro de possibilidades de intervenção, que decorrem do «conceito estratégico de defesa nacional» (CEDN) em vigor, e previsto ser discutido e revisto a partir do próximo ano. Mas importa ab initio referir que, não é intenção do autor relevar neste texto, alterações ou harmonizações normativas a considerar em tempo próximo, reformulando conceitos teóricos residentes na legislação de referência sobre esta temática. De igual forma, incorporar nestas páginas uma eventual proposta de «desenho institucional inovador», que concorra em boa razão para esta análise. Esse será sempre um outro debate, assaz importante e mesmo necessário, mas a merecer uma outra perspetiva fundamentada de análise, em tempo oportuno e espaço próprio.
Passaram-se quase dez anos sobre o debate alargado e frutuoso, (envolvendo muitos especialistas, académicos e entidades), que deu corpo ao «conceito estratégico de defesa nacional» de 2013. Regressa de novo à discussão a preparação deste documento em forma de revisão e que, como se sabe, assume a sua forma legal, através de uma Resolução do Conselho de Ministros, nos termos da Lei de Defesa Nacional[1]. Quando se discorre de forma algo genérica, sobre a importância deste documento, é comum ressaltar a sua vocação singular no universo da estratégia nacional de defesa. Mas, na continuação das perguntas que poderemos sempre colocar – para que tem efetivamente servido este documento estruturante? E, qual tem sido o seu verdadeiro contributo? – o silêncio que permanece, é seguido de um «flatus vocis», muito revelador da sua quase ausência teórica e irrelevante prática.
É interessante constatar ao longo dos anos, da quantidade de textos escritos, análises, conferências e intervenções públicas, muitas delas de inegável qualidade, conhecimento e interesse sobre a vertente da segurança e defesa de Portugal, e quase não existirem por método de análise, referências que apropriadamente sinalizem o CEDN; ou tão somente evidenciem as linhas de ação programáticas aí estabelecidas. E nesta senda, apetece relembrar Jorge de Sena quando dizia “… E tão miserável é a tranquilidade dos que dão por nada, como a intranquilidade dos que apenas temem”[2].
Durante este período de quase uma década, provavelmente a história dará conta de um Portugal em lenta recuperação, após uma grave crise financeira internacional e das dívidas soberanas, mas que abalou particularmente o nosso país. Num tempo recente, podemos observar que existe uma trajetória de equilíbrio e promoção da política de desenvolvimento económico e social, cada vez mais integrada e dependente em todos os seus domínios, das políticas mais gerais emanadas pela União Europeia. Um período que nas relações externas e na componente de segurança e defesa tem sido um caminho tranquilo, sem grandes notas de registo. Até que, e de novo, o mundo e Portugal foram abalados pela atual crise sanitária e pandémica da Covid-19, em vésperas de uma prevista e pré-anunciada revisão da estratégia de segurança e defesa nacional para a próxima década, na esteira do que estão a realizar os nossos parceiros europeus.
A perceção que genericamente se tem da importância deste documento emblemático da política de defesa nacional é a ambiguidade o mesmo reflete. Por um lado, um documento estratégico imbuído de conceitos vários que, contempla na sua génese, princípios da mais elevada importância para o presente e futuro do País. Conceitos que apelam aos valores intrínsecos e perenes de Portugal, e que apontam as prioridades do Estado em matéria da defesa nacional, dando corpo a um conjunto de vetores essenciais para promover a segurança nacional e o necessário desenvolvimento económico e social. Por outro lado, convive como uma inexpressiva aplicabilidade, quase ausência, como vimos, nas elites e na sociedade em geral, naquilo que deveria ser a sua capacidade de influência, mas também elemento ativo de uma cultura de segurança e defesa nacional, no conjunto das grandes estratégias globais do Estado.
A segurança e a defesa não são um elemento estanque (não devem ser!); integram-se em praticamente todos os domínios da sociedade moderna, também nas componentes técnicas, científicas e culturais que os Estados procuram incentivar para o futuro das suas economias e bem estar das suas populações. Não deixarão por isso, de ser condicionadas pela envolvência deste atual ciclo de inovação emergente, e dos múltiplos fatores transversais à sociedade onde se inserem. É pois com a noção deste efeito de complementaridade, que se pretende traduzir esta reflexão em modo breve, sem amarras a conceitos ou subtilezas, privilegiando tão somente uma adequação mais prolífica de um documento estratégico, a uma realidade em mutação acelerada, onde a cultura de segurança e defesa, é também o garante de uma sociedade moderna e integrada, mais desenvolvida e a olhar para futuro no espaço europeu onde se insere.
Dos antecedentes …
O debate e a reflexão sistémica, já em democracia, sobre o conceito estratégico de defesa nacional[3], teve verdadeiramente o seu início nos anos oitenta do século passado. Convém por boa justiça dizer que, tal facto, muito se deveu ao então Instituto de Altos Estudos Militares, ao Instituto de Defesa Nacional e a alguns Institutos Universitários, a estudiosos e académicos militares e civis muito ligados à área do ensino, da estratégia e da geopolítica. O primeiro CEDN data de 1985, e apresenta-se muito circunscrito pela situação internacional decorrente da Guerra Fria, e a nível interno pela implementação da Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas (1982)[4]. A envolvência deste debate continuaria pelos anos noventa (CEDN de 1994), já então interiorizando no plano internacional as consequências decorrentes da queda do muro de Berlim, e a definitiva sinalização do fim da Guerra Fria. Como refere Maria do Rosário Vaz[5] “O conceito de 1994 corresponde pois essencialmente à «reintegração» plena de Portugal nas prioridades europeias, ou seja, à adaptação ao fim da guerra fria. Toma em conta as transformações operadas no panorama mundial e europeu em particular, e justifica à posteriori a reestruturação efetivamente operada. Como instrumento programático, é no entanto excessivamente vago. Como orientação geral, excessivamente abrangente, regendo-se ainda pela máxima «tudo é defesa”.
Estávamos já em plena consolidação das estruturas democráticas nacionais mais relevantes e da respetiva legislação. Neste caminho em democracia, o verbo a utilizar foi sempre o verbo «ajustar», nomeadamente face aos desafios encontrados pelo poder político resultantes da conjuntura nacional e dos desenvolvimentos internacionais condicionantes (em especial a nossa integração na Comunidade Europeia). O século XXI trouxe-nos o CEDN de 2003 e o de 2013. Estes documentos estruturantes, separados por uma década, foram em boa verdade fortemente condicionados pelas ameaças externas que agitavam o sistema internacional, onde as mais relevantes foram os ataques terroristas aos EUA em setembro de 2001, o Iraque e o Afeganistão, e a crise financeira e económica iniciada em 2008, que atingiria dramaticamente Portugal em anos posteriores. Estes acontecimentos protagonizaram a base dos conceitos estratégicos e programáticos da NATO (em prioridade) e da União Europeia (por sintonia).
A esta distância é possível aduzir-se que, neste período de mais de 35 anos em regime democrático, o CEDN tem sido de forma genérica, ainda assim, um documento presente na configuração institucional do modelo de defesa nacional, na legislação decorrente (conceito estratégico militar) e no ciclo de planeamento e programação militar. No entanto apenas focalizado no tempo, no qual o poder político lhe destina para análise e reflexão e, em que, convoca as suas elites nesta matéria para a discussão e debate dos conceitos e estratégias a rever, por norma em constante adequação com os modelos de outros Estados europeus e das organizações internacionais, com as quais partilhamos a segurança e a defesa cooperativa.
A essência das reflexões geradas sobre a concetualização de modelos estratégicos de defesa nacional ao longo dos tempos, tem seguido paradigmas de análise bastante compartimentados (pelo conhecimento e pela evolução da situação interna). As múltiplas interpretações que os domínios da estratégia, da política e da geopolítica foram permitindo incorporar, moldaram e aproximaram na verdade os princípios e os conceitos em debate, aos diferentes desenvolvimentos societários, à organização do Estado e à realidade internacional. Muitos dos fatores interiorizados dependeram sempre da consagração dos objetivos da política, dos meios, valores e capacidades que o Estado deveria preservar, tendo por referência a defesa e a soberania nacional.
O alargamento da abrangência do conceito de defesa nacional versus a introdução do conceito de segurança nacional foram protagonizando de alguma forma este debate. Partiam da referência constitucional de que “É obrigação do Estado assegurar a defesa nacional” e que a defesa nacional tem por objetivos “garantir, no respeito da ordem constitucional, das instituições democráticas e das convenções internacionais, a independência nacional, a integridade do território e a liberdade e a segurança das populações contra qualquer agressão ou ameaça externas”. Os vetores associados foram sempre fatores intemporais, onde sobressaíam a coesão nacional, a integridade territorial, o direito à defesa, a liberdade e o bem-estar dos portugueses. Em todos este vetores e linhas de forças, a estrutura nacional militar e das suas Forças Armadas, a sua prontidão, capacidade e missões foram em todos os momentos considerados elementos estruturantes e decisivos da política de defesa nacional.
A ciência e a arte da estratégia ligadas aos temas gerais da segurança e defesa, contaram sempre com as inestimáveis contribuições, únicas pelo saber e clarividência, dos dois grandes pensadores militares portugueses: Abel Cabral Couto e Loureiro dos Santos. Muito em especial, durante o longo período em que decorreu a Guerra Fria.
…Ao caminho trilhado
As últimas décadas acabariam por traduzir a inserção de diferentes prioridades na articulação e definição do CEDN, resultante das revisões efetuadas, a par da maior integração política de Portugal na União Europeia, da evolução dos conceitos estratégicos da NATO, e das revisões subsequentes do edifício legislativo nacional. Neste caminho evolutivo o CEDN de 2003 consignava que “A última década do século XX introduziu profundas mudanças no cenário internacional motivadas pela implosão da União Soviética … Embora este novo ambiente estratégico tenha atenuado as ameaças tradicionais de cariz militar, fez surgir fatores de instabilidade traduzidos em novos riscos e potenciais ameaças, de que os trágicos acontecimentos de 11 de Setembro de 2001 são o paradigma … e esses acontecimentos alteraram profundamente a agenda político-estratégica internacional, criaram novos desafios no âmbito da segurança e defesa e introduziram um novo aspeto qualitativo de «ameaça», na cena internacional”.
Por sua vez o CEDN de 2013 referia na sua introdução que “É indiscutível que, na última década, a situação estratégica e o ambiente internacional se alteraram profundamente, com o surgimento de novas, inesperadas e importantes condicionantes. Por um lado, a crise económico-financeira que se concentrou na Europa, em particular na Zona Euro, abriu uma nova fase de inquietação e incerteza sobre o nosso futuro coletivo». Ressaltava também entre outros pontos que “O novo conceito estratégico da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), aprovado em 2010, bem como o novo Tratado da União Europeia (UE) – o Tratado de Lisboa – implicaram novas exigências em termos da contribuição portuguesa para a garantia da segurança internacional”. E que assim, se tornava imperativa “… a revisão do conceito estratégico de defesa nacional, como instrumento indispensável para a resposta nacional ao novo ambiente de segurança,” apelando então a uma visão de conjunto da estratégia nacional, no sentido de serem atingidos os objetivos da política de segurança e defesa.
A incidência normativa mais alargada quanto ao seu âmbito, e espelhada no modelo de segurança e defesa proposto, é consagrada no próprio texto do CEDN, abrangendo um conjunto de setores com competências e responsabilidades nesta área. Esta leitura permite-nos considerar que os objetivos que são agora preconizados, apresentam um nível de ambição que, na sua essência, ultrapassam em «lato sensu» as competências normativas que o legislador nacional atribuiu ab initio ao ministro da defesa nacional. Na verdade, é a este a quem incumbe conduzir e «zelar» pelo processo de elaboração e consecução do CEDN (o que na prática acontece).
A realidade indica-nos que, ao longo das últimas décadas e nos respetivos ciclos de governação, os ministros da defesa, um pouco por toda a Europa Ocidental, têm perdido em comparação com outras áreas governativas, capacidade de influência política a nível mais geral da ação governativa. Ficam assim, e desde logo, mais limitados no exercício efetivo da coordenação e implementação de estratégias globais partilhadas. Resultará certamente maior ambiguidade, quando se projeta ou incentiva uma estratégia nacional (de segurança e defesa); ou mesmo quando estão em causa objetivos fora do âmbito da ação restrita da componente militar da defesa nacional. Esta situação interna tem contudo sido gerida de alguma forma, com algum equilíbrio e consenso.
A experiência mostra-nos que, por norma, as modificações legislativas e estruturais de âmbito mais marcante, só acontecem (entre nós, e ao longo dos tempos) quando somos confrontados com factos ou acontecimentos heteróclitos, ou mesmo de elevada expressão dramática ou funcional e.g. (caso recente do SEF).
– Uma visão estratégica para a década –
Na conceptualização de uma visão estratégica, qualquer que ela seja, mas muito em particular, uma estratégia focalizada na segurança e defesa nacional, um dos pressupostos base da sua matriz é a perceção do horizonte temporal em análise. Não porque este se possa delimitar de forma simplificada, mas para permitir edificar e consagrar uma melhor adequação dos meios utilizados aos fins e objetivos a atingir. É por isso essencial que um modelo nacional (de segurança e defesa), seja inclusivo e dotada de uma visão estratégica, por forma a que permita a todos os intervenientes neste processo, um espaço de análise consolidado para um tempo estimado. Ser uma visão inclusiva, implica ter a contribuição, alcance e ambição das principais áreas concorrentes para a construção do espaço de segurança e defesa nacional.
Se olharmos à nossa volta, todas as estratégias (globais, gerais, parcelares e programas de ação) referem espaços temporais de intervenção de década(s); por exemplo 2030 ou 2050, ou mesmo 2070, num modo de visão, muitas vezes, formulado quase em «modo cabalístico»!
No caso do CEDN, esta abordagem merece-nos alguma reflexão adicional. Estamos a falar de um ambiente complexo globalizado de política externa e interna, de segurança e defesa e respetivas organizações, estruturas e órgãos especializados, de sistema internacional e de organizações internacionais. Se existe algo que carateriza os domínios do sistema internacional, é a sua incerteza e capacidade de nos surpreender (ver caso recente do Afeganistão) e, a nível interno, a forma e os objetivos dos diferentes atores atuarem no exercício do poder democrático instituído. Mas a verdade é que, atualmente, muito em especial numa fase de maior integração no espaço europeu, e da globalização acelerada nos domínios da informação, da tecnologia e da ciência, somos cada vez mais influenciados e mais dependentes das estratégias de outros Estados e da sua envolvência (nomeadamente económica). É nesta matriz de partilha global assumida e relevante também para a segurança e defesa nacional, que se torna absolutamente necessário consagrar e interiorizar os nossos próprios interesses de afirmação como Estado moderno e autónomo no concerto das nações, e participante ativo no quadro da UE.
Ambiente de Segurança Global: Contexto Internacional
Um dos mais importantes capítulos do documento será sempre a caraterização do ambiente geoestratégico internacional. A Europa já não é o «centro do mundo» e terá de encontrar uma matriz que lhe seja favorável no contexto das relações internacionais e da nova ordem mundial. Vive no entanto num contínuo diálogo aporético, que por um lado lhe garante segurança e sentido, e que fará sempre parte da sua idiossincrasia estrutural, mas que por outro lado a constrange: falamos da relação singular, única e determinante com os Estados Unidos; e a consequente interiorização da NATO e da relação Atlântica, como a sua «alma mater». Os Estados Unidos são parte relevante nas estratégias nacionais de todos os países Ocidentais e do Norte de África, e de parte significativa dos estados da região da Ásia-Pacífico, com especial relevância para os aliados Japão, Austrália e Coreia do Sul.
Por outro lado, na União Europeia (UE), sobreleva-se a afirmação sempre complexa, nestes domínios, do peso das duas grandes potências europeias de pendor continental (Alemanha e a França), sendo esta última, o único Estado com capacidade de dissuasão nuclear na UE e de intervenção militar autónoma. Acrescenta-se agora o outro momento chave, a saída do Reino Unido, que foi um dos principais pilares políticos e estratégicos da UE, em especial nos domínios da segurança e defesa, (circunstância algo atenuada pela presença liderante do Reino Unido nas estruturas da NATO).
A realidade a incorporar irá depender de forma muito evidente das estratégias definidas a montante pela NATO (Conceito Estratégico da Aliança) e pela União Europeia (Strategic Compass). Ambos estes conceitos e intenções já anunciados de há muito, serão agora fortemente condicionados pelas movimentações geopolíticas que, a tomada de Cabul por forças hostis ao Ocidente, irá desencadear em toda a região da Ásia Central nos próximos tempos.
Qualquer das estratégias resultantes destas organizações internacionais, estará muito dependente dos novos eixos de interesse da política norte-americana, através da política definida pela administração do Presidente Biden, onde a reação ao fracasso do Afeganistão irá certamente pesar muito.
Neste caminhar do século XXI, e no atual estádio de desenvolvimento da sociedade humana, a velocidade de encontro entre a ciência e o homem é cada vez mais um espaço de aceleração vertiginosa. De igual forma se rege o modelo de relacionamento e interação entre as nações, o comércio mundial, a prática e o uso do conhecimento científico avançado, as preocupações globais com o clima e o planeta, e a modelação intempestiva dos interesses dos Estados e das organizações. É neste espaço global que devem agora ser enquadradas todas as estratégias que gerem a postura das nações e das organizações, naquilo que parece ser uma dicotomia inconciliável: um modelo de aceleração de antagonismos no sistema internacional versus a possibilidade de cooperação internacional. Um modelo onde a segurança e defesa dos Estados parece mais exposta e vulnerável a novas ameaças e desafios. Tudo isto pode condicionar e limitar a identificação de variáveis de conflito e disputa, de ameaças e de desafios, com repercussões nacionais de difícil identificação. Elaborar um modelo simplificado, ajustado a um tempo conhecido, já identificado, estudado ou em vias de o ser, será apenas um mero exercício de dever cumprido, mas incapaz de estabelecer prioridades e de ser exequível em face de novas contingências. Será sempre um desafio que se arrisca a interiorizar o óbvio.
Portugal no Mundo
A política externa portuguesa acompanha por norma as grandes linhas definidas pelos países da UE, naquilo que são os compromissos duradoiros da nossa política externa. É na complementaridade destes posicionamentos, que a reflexão de – Portugal no Mundo – deverá ser inserida. Reflexão abrangente, indo além das leituras simplificadas, percebendo agora que a nossa matriz de sobrevivência como Estado soberano, independente e livre, é também a matriz de um novo modelo de afirmação, prosperidade e inovação no espaço das democracias europeias e no cada vez mais complexo sistema internacional. Projetar essa matriz para o futuro é uma responsabilidade da política nacional e dos portugueses. Como referiu o atual MDN[6] “… Em Portugal, como em muitos outros países europeus, a Constituição determina que se procure que a primeira resposta aos conflitos seja a resolução pacífica dos mesmos. No entanto, como europeus, também precisamos de capacidades militares para garantir a nossa segurança. Precisamos delas para dissuadir a agressão externa e para ajudar outros a defenderem-se. Precisamos de capacidades militares para ajudar a responder a desastres naturais e outras emergências complexas, como a pandemia Covid-19. Para tal, é também necessário construir uma cultura estratégica partilhada europeia que reconheça esta realidade e que saliente a promoção dos nossos valores, bem como dos nossos interesses. Procurar a paz a qualquer custo deixar-nos-ia vulneráveis a qualquer autocrata agressivo que apareça. Isso seria uma desistência tanto dos valores como dos interesses europeus, e não garantiria, em última análise, a paz”.
O modelo consubstanciado numa visão nacional para um estratégia de segurança e defesa, terá sempre por base de partida aceite os princípios gerais da defesa nacional e os objetivos permanentes da política de defesa nacional. Aliás como tem sido a prática. Por outro lado, é de alguma forma consensual estabelecer que o período de cinco anos será ajustado a um modelo de revisão e adequação dos documentos bases que reflitam a consecução das prioridades definidas para a política de segurança e defesa. Muito em especial pela pertinência da evolução da conjuntura internacional, nomeadamente das ameaças, dos riscos, incertezas e dos desafios que se colocam à segurança geral das sociedades atuais. Mas também, pelos ajustamentos a nível interno que possam ser definidos pela política de defesa nacional (orientações e prioridades) que resultam da Constituição, da LDN e do Programa do Governo.
A segurança e a defesa como vocação
Os conceitos de segurança e defesa surgem sempre alinhados com as funções basilares do Estado. Desde sempre que esta sinergia teórica e prática existe, embora com «tonalidades» diferenciadas, atribuídas em função dos objetivos, da experiência, do conhecimento, e da própria evolução dos conceitos. Como avisámos desde a primeira linha! não é intenção debater neste texto a complexidade dos diferentes conceitos (ao nível da sua consistência e validade) utilizados no CEDN. Esse debate tem sido amiúde realizado por dezenas de especialistas na área da estratégia, da geopolítica e da política, (quase sempre por esta altura, em vésperas de revisão), embora, e diga-se em abono da verdade, muitas das vezes com algum sentido «de tribalismo conceptual». Desde os finais dos anos setenta, foram surgindo diversos conceitos sobre a segurança nacional, segurança externa e interna, conceitos de segurança alargada, de segurança humana, de segurança cooperativa, segurança e defesa, e muitas outras definições de alcance e abrangência diversa. Também de defesa nacional, defesa militar, procurando-se quase sempre parametrizar as missões e atividades a desempenhar pelas Forças Armadas e Forças de Segurança e outros órgãos e serviços, e assim, as respetivas competências atribuídas ou a gerir pelas diferentes tutelas do Estado. É contudo o próprio CEDN que no seu articulado vem colocar dúvidas e incentivar a – “Clarificar as competências das forças e serviços de segurança” – e diz em toda a extensão do mesmo que, “...Importa, todavia, reconhecer a necessidade de clarificar este modelo conceptual, definindo com precisão as atribuições e competências de cada componente e eliminando as redundâncias existentes, de modo a torná-lo mais eficiente”[7].
Os debates e propostas formulados ao longo do tempo têm procurado eliminar os espaços de equívoco existentes que a legislação ainda não conseguiu adaptar aos novos desenvolvimentos. Daí que entre muitas outras propostas, fosse prevista na própria designação do documento, a alteração defesa nacional por segurança nacional (Loureiro dos Santos, entre vários outros autores)[8]. Outros ainda advogariam mesmo deixar cair os termos de segurança e defesa nacional remetendo para o título de «Conceito Estratégico Nacional»[9]. No edifício normativo nacional verificam-se claramente sobreposições de conceitos, que o tempo, as influências anglo-saxónicas e as múltiplas interpretações formuladas ao longo destas décadas de existência do CEDN têm permitido ainda assim coexistir. A segurança é em boa verdade entendida hoje, e citando Pinto Ramalho “… como uma atividade multidimensional e transversalmente abrangente e é assim que a devemos perceber no contexto da soberania e da segurança e defesa de um País”[10], ou como conceituava Loureiro dos Santos “Segurança Nacional é o conjunto de ações que devem ser levadas a efeito com a finalidade de responder e ultrapassar as ameaças aos nossos interesses. Não são só as ameaças que exigem resposta militar, mas todas aquelas que precisam de ser respondidas com estratégias não militares – políticas (externas e internas), económicas – financeiras, sociais, educativas, culturais, científicas, mediáticas etc”[11].
Vejamos contudo, como o último CEDN procurou conciliar e articular as diferentes «nuances» dos termos utilizados. Os princípios gerais e objetivos permanentes são definidos pela Constituição da República Portuguesa (CRP) e pela LDN, permitindo que as orientações da política de defesa nacional decorram do Programa do Governo e das respetivas prioridades consagradas no CEDN. De igual forma a designação titular de «conceito estratégico de defesa nacional» que decorre originalmente da Lei de Defesa Nacional, convoca também o debate e aprovação das grandes opções do conceito estratégico de defesa nacional (desde a alteração à LDN em 2014) na Assembleia da República, sob proposta do Governo. De acordo com este enquadramento legal e constitucional, e nos termos da Lei de Defesa Nacional “O conceito estratégico de defesa nacional define as prioridades do Estado em matéria de defesa, de acordo com o interesse nacional, e é parte integrante da política de defesa nacional”. Torna-se absolutamente indiscutível a perceção da importância que o legislador atribui a este conceito, dotando-o de competências na definição e responsabilização das prioridades do Estado em matéria específica de defesa nacional e subordinando-o sem equívocos à política de defesa nacional, definida superiormente pelo Governo (primeiro-ministro).
Desde logo na introdução do documento é referido que “O conceito estratégico de defesa nacional pressupõe uma estratégia nacional, cuja credibilidade seja reconhecida e capaz de mobilizar os portugueses” sendo que “o conceito estratégico de defesa nacional define os aspetos fundamentais da estratégia global a adotar pelo Estado para a consecução dos objetivos da política de segurança e defesa nacional”. Ou seja, o próprio texto remete-nos para a articulação dos objetivos específicos, agora no âmbito alargado da política de segurança e defesa.
Na parte II da Introdução, o legislador convoca-nos em título para os «Fundamentos da estratégia de segurança e defesa nacional». Ao longo deste ponto, e para além do título, não é mais referida esta associação (segurança e defesa) de forma explícita, sendo apenas identificado e definido o conceito de estratégia nacional, indo ao encontro do que é dito anteriormente: “O conceito estratégico de defesa nacional pressupõe uma estratégia nacional”. A Parte V. – Contexto nacional – (§2) – «Princípios da segurança e defesa nacional» vem definir e expor as políticas de segurança e defesa nacional, referindo nomeadamente que; “integram princípios e objetivos definidos na Constituição e na lei, bem como orientações e prioridades definidas pelo conceito estratégico e concretizadas, nomeadamente, ao nível do programa de cada governo”, (deixando de referir de forma isolada a defesa nacional). Subsequentemente os objetivos nacionais permanentes e os objetivos nacionais conjunturais são sempre constituídos e perfilados no quadro mais geral das políticas de segurança e defesa nacional. A parte VI do documento – «Conceito de ação estratégica nacional» – transportarnos de volta ao conceito de estratégia nacional e aos vetores de ação estratégica, deixando assim de fazer referencia por agora à estratégia de segurança e defesa em detrimento de uma estratégia nacional. Ao caminharmos para o final do documento, – parte VII – «Uma Estratégia Nacional do Estado», fundamenta-se a estratégia de segurança e defesa, que termina referindo que o “O conceito estratégico de defesa nacional deve assumir-se como a estratégia nacional do Estado, mas que «só se torna nacional a partir do momento em que Portugal e os portugueses o assumam como seu», parecendo quase que apelar a uma «visão transcendental”. Em conclusão, verifica-se que o termo «defesa nacional» é utilizado de forma singular pelo legislador apenas na sua formulação titular ou por referência direta da LDN, passando amiúde a explicitar a designação mais genérica de «segurança e defesa». Naturalmente que se poderia colocar sempre, como hipótese estrutural e alternativa de trabalho – com todas as necessárias alterações normativas que daí decorrem -, a própria criação de uma estrutura específica, noutro patamar institucional e, vocacionada para uma «Estratégia de Segurança Nacional».
Dinâmicas de exigência e inovação
Somos cada vez mais uma sociedade exigente. E é este desafio que o futuro e a sua imprevisibilidade provoca em qualquer visão estratégica nos nossos dias. “Não sabemos, simplesmente, que tecnologias dominarão o nosso dia-a-dia, daqui a duas ou três décadas, como as iremos usar. Inteligência artificial, computação quântica, nanotecnologia, robótica, fusão nuclear, carros voadores, hidrogénio, viagens suborbitais, blockchain e realidade virtual são apenas algumas das tecnologias que poderão, ou não, vir a transformar profundamente o nosso dia-a-dia… Se de um ponto de vista histórico esta imprevisibilidade é meramente curiosa e intrigante, de um ponto de vista do planeamento estratégico, transforma-se num desafio significativo”[12]. Mas a consagração desta antinomia de exigência e de incerteza, deve ser por norma acompanhada da salvaguarda inerente à dimensão que a segurança e defesa devem poder estabelecer. Tal como o conceito de democracia, ou mesmo de liberdade, a segurança e a defesa surgem nos dias de hoje, nas sociedades ocidentais, como elementos adquiridos, até mesmo junto das novas elites. A história demonstra-nos, contudo, que nenhum modelo ou sistema tem por garantido a sua permanência de forma duradoira, sem a envolvência ativa e atenta dos seus cidadãos. As dinâmicas existentes nos atuais modelos de sociedade ocidental, posicionam-se de forma evolutiva e muita diferenciada dos modelos existentes no passado. A base cultural, cientifica e societária das novas gerações padronizam modelos de inserção e adaptação que irão influenciar os novos desafios colocados aos Estados. Por isso a visão para uma estratégia de segurança e defesa em pleno século XXI deve poder ser explicada-compreendida (cultura ampla de segurança e defesa) à sociedade como um todo, tornando-a focada nos seus objetivos (responsabilidade do Estado). Mas também complexa na sua dinâmica de comprometimento de todos os setores inerentes a uma efetiva estratégia nacional. “Em sistemas dinâmicos temos de introduzir o futuro nas nossas planificações, se não quisermos ser surpreendidos por problemas que irrompem sem que tenhamos feito nenhuma previsão… A gestão estratégica requer um exercício de imaginação dos conflitos e crises futuras. Dado que não temos nenhum motivo para supor que a crise seguinte será como as anteriores, a extrapolação das experiências passadas não é suficiente”[13]. A adaptação aos desafios, ameaças e incertezas que irão caraterizar as novas décadas exigem o foco numa estratégia assumidamente de futuro e de inovação. Todas as áreas de relevo do Estado, projetam «estratégias parcelares» onde são inscritos os seus domínios de ação, com maior ou menor ambição e alcance nacional, e são todas à priori de manifesto interesse para o nosso futuro em sociedade. São exemplo de algumas delas: A Estratégia Nacional para o Mar (2021-2030); Estratégia Nacional de Conservação da Natureza e Biodiversidade 2030; Estratégia Nacional de Adaptação às Alterações Climáticas; Estratégia Nacional para a Gestão Integrada das Zonas Costeiras; Estratégia Nacional de Segurança Marítima; Conceito Estratégico Militar; Estratégia Nacional de Gestão Integrada de Fronteiras (2020-2023) e o seu Plano de Ação (2020-2023); Estratégia Nacional para o Hidrogénio, e muitas outras mais existem e, neste texto impossíveis de nomear. Todas estas «estratégias» e muitos dos programas nacionais, nomeadamente os mais recentes de «recuperação e resiliência» pela sua abrangência, amplitude e interesse nacional inquestionável, deveriam caminhar (numa matriz de identificação) com a estratégia nacional (de segurança e defesa/segurança) consolidada para o horizonte de uma década ou mais.
As novas dinâmicas serão transversais a todos os domínios da sociedade, e serão inevitavelmente portadoras de novas capacidades técnicas, de meios, equipamentos e dispositivos múltiplos num espaço abreviado de tempo, com capacidade de influência e ação direta e indireta nos atuais modelos base dos Estados e das organizações. Prever uma estratégia para as próximas décadas, obrigará a um modelo diferenciado de raciocínio e análise mais intuitivo e mais complexo, deixando cair muitos dos paradigmas e conceitos existentes. Por outro lado, um modelo de análise conceptual, mas limitado nos seus objetivos e nas suas consequências e vazio nas suas ambições, será certamente um modelo ineficaz, e pouco relevante.
Os novos desafios do Espaço Energético e Ambiental
O impacto do modelo de transição energética na Europa e no Mundo para as próximas décadas, irá impulsionar múltiplos avanços nas áreas da tecnologia e da ciência. Este novo ciclo irá centrar-se no domínio do digital e da inteligência artificial (IA), na identificação de modelos energéticos inovadores, nas novas componentes industriais mais eficientes, nos processos de comunicação, na cartografia das redes elétricas e de gestão de dados, e em todo um aproveitamento de recursos e competências, que possam (esperemos) servir a sociedade, as pessoas e o planeta, de uma forma mais equilibrada e sustentada.
A segurança e a defesa como componente basilar dos Estados, não deixará de ser condicionada pela envolvência deste ciclo de inovação emergente, e dos múltiplos fatores transversais à sociedade onde se inserem. Energia e ambiente estão no patamar superior das questões primordiais da vida e da organização nas sociedades atuais. Quaisquer desenvolvimentos evolutivos originam implicações diretas nas estratégias a médio e longo prazo dos Estados. Como consequência destas ações derivam preocupações políticas, económicas e sociais, com evidentes repercussões no âmbito do setor da segurança e defesa. A segurança e defesa é um setor estratégico do Estado com incidência sobre as vertentes terrestres, marítimas, do espaço e do ciberespaço. É por isso um modelo global que acarreta um planeamento e programação partilhado com outros setores, e é com este nível de ambição que deve ser articulado. O atual pensamento estratégico obriga os seus responsáveis a utilizarem cada vez mais parâmetros de natureza holística, seja qual for o ângulo de abordagem utilizado. Desta sinergia e do sistema energético integrado, deverá resultar um plano energético e climático orientador que abranja necessariamente os campo da segurança e defesa. A transição energética que envolve o nosso tempo, não é só uma revolução tecnológica. Acarreta também uma nova formulação construtiva face a uma crescente descentralização e capacidade de utilização dos novos meios energéticos.
Para grandes estruturas como as Forças Armadas, pode ser adequado um envolvimento direcionado e participativo, em modelos energéticos adaptados a uma gestão energética integrada e descarbonizada. Quando falamos de sistemas energéticos inovadores ou mesmo sistemas integrados, tecnologias emergentes e disruptivas, temos a noção, ainda que parcial, das suas implicações futuras na componente da segurança e defesa, e nas capacidades militares e operacionais a levantar no âmbito das prioridades definidas pelo Estado.
Também os projetos tecnológicos a serem desenvolvidos nas plataformas industriais civis, com vista à sua aplicação na área da defesa, estarão necessariamente em correlação com os modelos energéticos, e com as respetivas normas de segurança ambiental. Esta simbiose prospetiva obriga a caminhar a prazo para uma sinergia de ações e de performances sustentáveis nos diferentes domínios de intervenção. O referencial de análise e de controlo técnico nestas áreas, pela sua complexidade, serão sempre de alargados períodos de tempo. Como sabemos os grandes planos energéticos, apontam para modelos base de maturação, com alcances de 10 a 30 anos. O mesmo se passa no desenvolvimento dos grandes projetos inovadores para equipamentos de ponta, para serem empregues no campo da defesa. A economia da defesa poderá desempenhar aqui um papel preponderante. A segurança e defesa é um setor estratégico do Estado que acarreta um modelo de planeamento e programação partilhado; e é com este nível de ambição que deve ser articulado. Tem para além disso, todas as potencialidades para gerar sinergias no campo da investigação, do desenvolvimento e inovação (I&D&I), alocando projetos ao nosso tecido industrial e tecnológico, dar incentivos à ciência, e criar desta forma mais-valias na utilização interna das novas fontes renováveis e vetores energéticos.
As grandes linhas de ação resultantes da visão estratégica de segurança e defesa deverão nesta área em concreto, valorizar os seguintes aspetos:
- O conceito de espaço energético e ambiental (EEA)[14] na estratégia mais geral da segurança e defesa nacional;
- Os desafios e as implicações colocados pelas alterações climáticas ao nível nacional, e as interações daí decorrentes no espaço geopolítico envolvente;
- As implicações diretas e indiretas das alterações climáticas (ameaças ou riscos?) no contexto da segurança e defesa nacional;
- A transição energética e a utilização eficiente e sustentável dos recursos energéticos, como fator valorativo no âmbito da segurança e defesa no espaço nacional;
- Identificar e acompanhar as vulnerabilidades energéticas existentes, (cartografia das vulnerabilidades energéticas);
- A valorização económica e estratégica dos modelos e das capacidades energéticas existentes no território nacional, incluindo a sua área marítima e espacial.
Concluindo em jeito de «presciência»
Convém que relembremos por método e em modo conclusivo que, – e convocando de novo o título inicial «O conceito, a estratégia e a defesa nacional» -, o objetivo principal do CEDN é a defesa nacional – a defesa de Portugal. Neste pressuposto único, urge privilegiar a clareza, a dimensão prática e objetiva à discussão recorrente e continuada de conceitos académicos (importantes como vimos, mas que se supõe sejam normalizados) ou mesmo à elaboração de estratégias mais ou menos «entrincheiradas», e muito pouco virtuosas nesta aceção.
A nova revolução tecnológica e cientifica em curso nestas décadas do século XXI, irá produzir alterações muito substanciais nos diferentes ambientes globais: na economia e nas tecnologias avançadas, no comércio global, na informação e no conhecimento, no espaço e no ciberespaço, no ambiente, no clima e nas energias, nas questões sanitárias, nas relações sociais e humanas, nos modelos políticos, nas relações entre regiões, Estados e organizações, e no ambiente sempre crítico da defesa dos Estados e da sua segurança. A tipologia dos desafios, dos perigos e ameaças colocados aos Estados e à sociedade, aumentarão de forma igualmente acelerada.
Os conceitos e os modelos de Forças Armadas do século XX, a utilização dos armamentos e equipamentos, a logística, assim como de organização típica militar a que nos habituámos, estarão necessariamente ultrapassados. O domínio da arte militar terá outros contornos, que não serão nem mais fáceis, nem mais acessíveis, e que deverão alargar o campo de ação das Forças Armadas a novos modelos societais, mais tecnológicos e exigentes, onde a ciência e a modernidade confluem num espaço global de segurança multidefinido. Por isso, a organização típica das Forças Armadas sofrerá inevitáveis alterações nas próximas décadas, passando do atual modelo para outros tipologias de emprego e intervenção (transformação acelerada dos campos de batalha) desenvolvendo novas tecnologias de utilização do mar, do espaço e ciberespaço, do espectro eletromagnético, de modelos energéticos inovadores, abrangendo todos os domínios dos espaços marítimos, aéreos e terrestres. As estruturas e modelos atuais certamente estarão em processo de inadequação na próxima década e obsoletas na década seguinte. É este momento de transição acelerado e de inovação que provocará necessariamente a formulação de modelos estratégicos e científicos mais arrojados e de maior ambição.
Quando para percorrer uma determinada rota somos confrontados por um qualquer GPS, sobre a opção a tomar; por norma entre a rota mais rápida, mas com custos (portagens) ou outra mais demorada, podemos até transpor esta experiência especulativa para o pensamento do nosso modelo de estratégia de segurança e defesa. Sim, também aqui a opção deverá estar focada «no caminho mais direto», no pragmatismo e na complementaridade que envolve os desafios que se colocam nos dias de hoje à política de defesa nacional. Naturalmente desafios que acarretam custos adicionais, inerentes à sua importância no contexto nacional.
Assim, e como vimos anteriormente:
– A visão para uma estratégia de segurança e defesa nacional (ESDN) em plenos anos vinte, deve assim, poder ser partilhada e assumida (cultura ampla de segurança e defesa) pelo conjunto da sociedade, identificando as virtudes e a importância dos objetivos atingir no campo da defesa nacional, e ser uma estratégia de complementaridade e de inovação ( entre todos os órgãos e entidades envolvidas);
– Uma visão estratégica de segurança e defesa deverá estar preparada para equacionar – as ameaças, os riscos, e os desafios que se conhecem e.g. (crise climática); acautelar – as ameaças, os riscos, as incertezas e os desafios que não se colocam no imediato – (As lições decorrentes da crise sanitária resultante da pandemia da Covid 19 irão influenciar e muito a discussão do próximo CEDN);
– A visão de uma estratégia de segurança e defesa da próxima década deverá estar equipada com as «lentes do futuro», nomeadamente para perceber e identificar a realidade e os desafios do clima, e da nova revolução energética em curso, incorporando em todos os domínios, o conceito de espaço energético e ambiental;
– Privilegiar a coesão nacional – confiança nas capacidades do País, nas estruturas e nas pessoas – e na capacidade de inovação;
– Ter uma estrutura simplificada e objetiva; (menos conceito e mais estratégia interventiva e percetiva);
– Ser agregadora e liderante em relação às múltiplas estratégias parcelares existentes (matriz de identificação); e particularmente nos conceitos e programas militares decorrentes.
– Parece ser ajustado o período de cinco anos que permita a revisão e adequação dos documentosbases que contemplem a consecução das prioridades definidas para a política de segurança e defesa.
O que está em causa é assim criar um visão esclarecida para os desafios que Portugal e os portugueses terão de enfrentar num tempo alargado. Porque visa o interesse nacional, porque é parte integrante da política de defesa nacional, da defesa de Portugal da sua independência e segurança. Porque define prioridades e invoca grande opções políticas de interesse geral, convoca necessariamente todos os portugueses e responsabiliza pelas suas opções as suas elites e todas as estruturas de um Estado moderno e democrático. Por essa razão, este documento orientador e estratégico não pode ser irrelevante ou ignorado. Não pode ser parcial e redutor, não pode ser um mero congregar de frases comuns e banais, de conceitos e de ideias conjunturais, de eficácia nula quanto ao seu objetivo.
A maior das virtudes de um documento estratégico de elevado alcance é mostrar que é útil. Que a sua utilidade possa corresponder à realização das prioridades e objetivos que a política define para o espaço da segurança e defesa de um Estado. Por todas estes motivos invocados, podemos esperar que este seja efetivamente um documento onde o Estado e os portugueses se revejam no espaço de um país democrático, empenhado na segurança e defesa nacional, contribuindo para o reforço mais geral da segurança europeia e da sua autonomia estratégica.
14 de setembro de 2021
Eduardo Caetano de Sousa
O conteúdo desta publicação representa apenas a opinião do autor.
[1] Resolução do Conselho de Ministros n.º 19/2013.
[2] Prefácio de abril de 1955 e maio de 1959, pg.11, do livro «Oriente Expresso» de Graham Green. Círculo Leitores.
[3] Artigo 7.º da LDN.
Conceito estratégico de defesa nacional
1 — O conceito estratégico de defesa nacional define as prioridades do Estado em matéria de defesa, de acordo com o interesse nacional, e é parte integrante da política de defesa nacional.
2 — As grandes opções do conceito estratégico de defesa nacional são objeto de debate e aprovação na Assembleia da República, por iniciativa do Governo.
3 — O conceito estratégico de defesa nacional é aprovado por resolução do Conselho de Ministros, sob proposta conjunta do Primeiro- Ministro e do Ministro da Defesa Nacional, ouvidos o Conselho Superior de Defesa Nacional e o Conselho de Chefes de Estado -Maior.
[5] Maria do Rosário Vaz – Conceito estratégico de defesa nacional, lei da programação militar in Janus 1998 – «Suplemento Especial Forças Armadas Portuguesas.»
[6] João Cravinho – A Defesa Europeia e a Presidência Portuguesa do Conselho da União Europeia
[7] CEDN – §1.4.7. «Clarificar as competências das forças e serviços de segurança».
[8] Loureiro dos Santos – Reflexões sobre Estratégia (Temas de Segurança e Defesa); IAEM/Publicações Europa América, pg. 86.
[9] António Horta Fernandes, Conceito Estratégico de Defesa Nacional (CEDN) ou Conceito Estratégico de Segurança Nacional (CESN)? Um falso dilema; working paper #43 abril/2014 (Observatório Político).
[10] José Luís Pinto Ramalho – Exército Português (Uma visão – Um rumo – Um futuro) pg. 111.
[11] Loureiro dos Santos – Convulsões (Ano III da «Guerra» ao Terrorismo, Publicações Europa América, pg.198.
[12] Arlindo Oliveira – «Magia e tecnologia», jornal Público de 02 de agosto de 2021.
[13] Daniel Innerarity – Uma teoria da democracia complexa. pg. 209; «ideias de ler».
[14] «Podemos caraterizar o Espaço Energético Global (EEG) no mundo globalizado onde nos movemos, como um elemento estruturante da política mundial, onde os Estados individualmente e na sua relação com os outros Estados, as Organizações Internacionais e os principais agentes económicos e industriais envolvidos, interagem no setor do mercado energético, público ou privado e determinam as suas relações de interesses.» pg 20, do livro do autor: «Com que gás se move o Sistema Internacional – o Gás Natural nas novas disputas da geopolítica mundial» – Chiado Books. 2018.