1 – A controvérsia que vem pelo Báltico
A realidade energética na Europa tem sido, de uma forma geral, nos últimos anos, um tempo de acalmia. As fontes fósseis (reservas provadas de carvão, gás natural e petróleo) são abundantes no mundo e diversificadas. Os preços têm-se mantido estabilizados, em ciclos de oscilação controláveis, e assim se pode esperar, mesmo no preço do barril de petróleo. O crescimento da procura do gás natural foi retomada em 2015, e em contínuo aumento nos anos de 2016 a 2018. A implementação e o processo de desenvolvimento das energias renováveis, nas suas diversas componentes, estão a ser bem-sucedidos. Até o emprego da energia nuclear, no setor da geração termoelétrica, em países como a França, Reino Unido e Espanha, decorre sem sobressaltos. Nesta visão holística, a liberalização do setor energético e as políticas ambientais têm de alguma forma, marcado o ritmo do mix energético atual da União Europeia.
A realidade das alterações climáticas, o objetivo da descarbonização e os novos desafios que se colocam no campo da energia, completam a agenda das prioridades políticas e energéticas nas instâncias europeias. No entanto a Europa é fortemente dependente das importações de energia, nomeadamente de petróleo e gás natural. Não se estranha por isso, que o tema da segurança energética seja uma preocupação mantida pela União Europeia como um todo, pela Comissão Europeia e pelos Estados que a compõem, muito em especial, os mais dependentes em termos energéticos de uma só fonte. As tensões geopolíticas na Europa tinham já feito soar as campainhas de alarme, com o conflito entre a Rússia e a Ucrânia: primeiro com as interrupções de fornecimento de gás à Ucrânia nos anos de 2006 e 2009, depois com a anexação da Crimeia e o controlo na prática, da parte oriental deste país. Posteriormente a guerra na Síria, a postura política de Putin e mais recentemente o envenenamento do ex-espião russo, foram situações que contaminaram seriamente as relações geopolíticas entre a Europa e a Federação Russa.
Nada faria prever, que o relançar do desencontro viesse agora pelo Báltico, com o transporte do gás natural russo diretamente para a Alemanha, através de um gigantesco gasoduto, denominado Nord Stream 2 (NS 2). Este gasoduto veio «animar» o debate geopolítico na Europa: ampliar as disputas regionais, e alargar as preocupações estratégicas dos Estados Unidos ao espaço energético europeu.
2 – Os antecedentes
O processo de fornecimento de gás natural da Rússia para a Alemanha, através do Mar Báltico, iniciou-se em 2011, com o apadrinhamento público da Chanceler alemã Angela Merkel, do então Presidente russo Medvedev e do Primeiro-Ministro francês François Fillon. Viria a completar-se em agosto de 2012, com a operacionalização comercial do Nord Stream Gas Pipeline (NSGP) da responsabilidade da Nord Stream AG (Gazprom). Este gasoduto (Nord Stream) de 1224 km (o maior do mundo com estas características subaquáticas) comporta duas linhas de transporte, com uma capacidade de (55 bcm) ano[1]. O gás natural para este transporte tem origem nos campos russos de Yuzhno-Russkoye, na região de Leninegrado, e comporta uma extensão no onshore russo de 917 km de comprimento. A sua parte de offshore inicia-se em Vyborg (Portovaya Bay) e termina em Greifswald na Alemanha. Este traçado aumenta a capacidade existente dos gasodutos Yamal «Northern Lights» (33 bcm) dirigido para a Bielorrússia e Polónia e o Brotherhood (100 bcm), através da Ucrânia e Eslováquia, onde a Ucrânia detinha, como se sabe, o maior protagonismo como país de trânsito. Em junho de 2015, surge o anúncio em pleno «Fórum Económico Internacional» realizado em São Petersburgo, do projeto agora em causa e designado NS 2.
O gasoduto proposto fará um percurso paralelo ao existente, num trajeto similar, aumentando a capacidade de transporte de gás natural para o dobro, ou seja mais (55 bcm) repartidos por duas linhas adicionais. O prazo para a sua operacionalização, aponta desde o início para 2019. O acordo para o financiamento do projeto em curso, engloba desde 2017, para além da Nord Stream AG, cinco companhias europeias, responsáveis por 50% do financiamento do projeto: a ENGIE (França), OMV (Áustria), Royal Dutch Shell (Anglo-Holandesa), Uniper e a Wintershall (Alemanha). Com o custo estimado de 10.5 biliões de dólares e, o claro protagonismo da Rússia e da Alemanha, estava lançada a primeira pedra para a controvérsia e o debate geopolítico na Europa.
3 – Como o NS 2 divide a Europa
A Alemanha pela sua forte estrutura económica e, os interesses estratégico que representa como potência regional, influencia e condiciona os modelos a projetar para o futuro da Europa. Na economia do gás natural, a sua estrutura de mercado é muito relevante. É o maior consumidor, o maior importador da Europa, e influente país de trânsito do gás para os Estados vizinhos. Por outro lado, como também foi observado anteriormente, exerce uma relação crucial nas importações de gás da Rússia, pela utilização de ligações diretas de abastecimento por pipeline.
A Alemanha importa prioritariamente gás da Rússia (32%), da Noruega (31%) e da Holanda (26%), e reexporta para a França, Suíça, Áustria e República Checa, sendo por isso uma importante plataforma de trânsito do gás natural. Sabendo-se das políticas restritivas holandesas, e no futuro (por outras razões) provavelmente também da Noruega, o espaço comercial russo assume nos planos energéticos a médio e longo prazo, um maior peso comercial.
O pipeline russo NS 2 tem o condão de acentuar as divisões que, alguns Estados e regiões na Europa, por outro tipo de razões vão exibindo. Durante a cimeira efetuada em meados de 2017 na Polónia, a Cimeira dos Três Mares (Mar Báltico, Mar Adriático e Mar Negro), com a presença do Presidente dos EUA, foi reafirmada a importância estratégica do Gás Natural Liquefeito (GNL) e do terminal (Floating) da Ilha de KrK na Croácia e do terminal LNG Świnoujście na Polónia, para o conjunto da segurança energética na Europa Central e de Leste. Uma ligação posterior por pipelines, entre estes terminais e os restantes países envolvidos, seria uma forma de impedir o domínio do Rússia nas exportações de gás, salvaguardando assim, a independência e segurança energética dos mesmos. Por outro lado, estariam também garantidos os interesses comerciais dos EUA e da colocação do seu GNL na Europa, de forma mais consistente. A Polónia pretende garantir a prazo uma estratégia de domínio na Europa Central, de importação e plataforma de reexportação do gás natural, prioritariamente vindo dos EUA, criando assim, um verdadeiro hub energético do gás na região. A Rússia e a Alemanha têm ao longo deste período mantido uma política cautelosa. Evitam ligar o gasoduto do Báltico, a qualquer ação geopolítica ou de âmbito estratégico, procurando junto da Comissão Europeia realçar apenas aquilo que são as questões técnicas e económicas deste projeto. [2]
4 – O debate técnico e económico
Esta temática serviu de mote, para ambos os lados, justificarem o interesse e a continuidade ou não deste projeto. Ainda que claramente se perceba, que muitas vezes este debate foi feito, para encobrir o verdadeiro conteúdo político do problema. Surge no momento, em que na Europa, se dão passos em direção aos novos desafios energéticos, balanceando também os interesses que congregam as energias fósseis e as renováveis. Caminhos que estarão sempre associados, com as regras de mercado, as políticas empresariais e a incerteza do ciclo dos preços a praticar, vetor que em boa verdade, não depende da Europa, como sabemos. Com o gás natural europeu em declínio previsível, o GNL vindo dos EUA, do Qatar ou da África Ocidental, entre outros, surge como contrapeso real às importações vindas da Rússia.
O grande dilema que persiste a este nível está em equacionar o modelo energético em que a Europa deve apostar num horizonte de uma década? Reforçar o peso do gás natural como energia de transição, ou mesmo de eleição, ou apostar cada vez mais nas energias renováveis? Que espaço ainda para o carvão e para o nuclear, num quadro global que se deseja mais «saudável» ambientalmente? Quais são efetivamente as necessidades futuras em termos energéticos? Que tipos de investimentos podem ser feitos e de que forma? Isto numa altura, em que as alterações climáticas e as políticas ambientais ditam as regras, e as principais companhias petrolíferas e do gás diversificam os seus planos, prevendo também elas, o negócio alargado a outras fontes. Contudo, o que sobressai é que a opção pelo gás natural, nesta fase, garante a satisfação das necessidades existentes, das regras e dos modelos instituídos, das políticas gerais ambientais e claro do sempre apetecível «bon marché»! a curto e médio prazo. Sendo o gás natural, muito menos poluente que os seus competidores fósseis, a substituição do carvão, em especial na componente elétrica, contribuirá certamente para a desejada política de «descarbonização» na Europa.
5 – O debate sobre normas e legalidade
No tabuleiro das disputas geopolíticas, a questão sobre a aplicação e o cumprimento do normativo legal no espaço europeu foi uma das estratégias utilizadas. Tem sido utilizada preferencialmente pelos países e organizações que se opõem diretamente ao projeto do NS 2. No centro da discussão, as normas europeias e a Comissão Europeia. A problemática tem-se colocado em diferentes patamares de análise: que leis se aplicam, desde quando, a quem se aplicam, onde se aplicam e com que eficácia. E sobre isto, como se percebe, não existe de todo um consenso. De uma forma geral, a aplicabilidade das mesmas surge por via de normas comparativas e neste caso específico, as medidas protecionistas da UE, não abrangeram na altura o projeto base do Nord Stream (NS). Em termos gerais podemos falar da interpretação e aplicação dos princípios regulamentares: do UNCLOS (United Nations Convention on the Law of the Sea), dos princípios gerais estabelecidos para a União da Energia, e também do «Third Energy Package». Deste último documento estrutural, consta a Diretiva do Gás da UE e derivam questões como: a regulação de tarifas, o «third party acess» e do «ownership unbundling», conceitos quer para o mercado do gás, quer da energia, que procuram garantir o acesso e competitividade entre os operadores e os consumidores nas respetivas redes de comércio e distribuição. No âmbito da aplicação do conjunto das normas citadas, estão as águas internas e a Zonas Económicas Exclusivas (ZEE) dos países direta ou indiretamente ligados ao projeto: A Alemanha, Dinamarca, Suécia e Finlândia. As dúvidas levantadas sobre a legalidade deste projeto, alargam-se também aos pipelines que ligarão o NS 2 ao transporte e conexões internas para outros Estados e regiões do Centro da Europa. Para além de serem invocadas as normas internas da UE para impedir a concretização do NS 2, alega-se de igual forma, sobre o incumprimento das normas estabelecidas sobre emissões de CO2, assim como, das medidas acordadas internacionalmente de sanções mais gerais à Rússia e às empresas que colaborem em projetos comuns desenvolvidos por esta.
O próprio Parlamento Europeu considera que existe uma: «… preocupação relativamente à proposta de duplicar a capacidade do gasoduto «Nord Stream» e aos efeitos contraproducentes que essa duplicação teria na segurança energética, na diversificação das fontes de aprovisionamento e no princípio da solidariedade entre os Estados-Membros; realça as implicações geopolíticas do projeto e os princípios subjacentes de uma União da Energia plenamente integrada, segura, competitiva e sustentável, salientando que, por isso, não deve beneficiar do apoio financeiro da UE ou de derrogações à legislação da UE; sublinha que a duplicação da capacidade do gasoduto «Nord Stream» daria a uma única empresa uma posição dominante no mercado europeu do gás, situação que deve ser evitada».[3]
6 – O debate sobre normas e legalidade
Em todo este complexo processo comercial, constata-se que existe um claro debate geopolítico pela importância que o mesmo configura. Debate geopolítico não reconhecido oficialmente ao longo do período de discussão do mesmo, pelos principais interessados: A Rússia e a Alemanha. Trazer o debate para o domínio político não lhes interessava e corria o risco de minar os interesses económicos e comerciais em jogo. Por seu lado, os países mais inconformados com o evoluir da decisão e contrários ao NS 2, com a Polónia e Ucrânia à cabeça, os países Bálticos (Estónia, Lituânia e Letónia) e alguns países da Europa Central, vão esgrimindo as suas posições no espaço da União, de forma sempre bem audível. Para os Estados Unidos, por seu lado, mais que argumentos políticos são invocadas medidas e argumentos do âmbito da estratégica e da segurança mais geral da Europa, face a uma «Rússia ameaçadora e monopolista». Neste amplo e intenso debate, as estruturas europeias, a Comissão Europeia e o Parlamento Europeu foram também elas envolvidas, traduzindo sempre as posições dominantes sobre a matéria em questão, no sentido de não apoiar o projeto do NS 2, tal como foi expresso recentemente pelo Comissário Europeu, Dominique Ristori responsável pela área da energia, que anunciou em Kiev que o pipeline «violará os princípios da transparência e do livre acesso dos consumidores europeus às fontes energéticas». A discussão a nível político foi sempre balanceada, entre os argumentos de política energética e os interesses políticos diretos dos Estados envolvidos.
Os interesses económicos falaram sempre mais alto e muitas vezes com maior realismo! Aliás a Alemanha sempre considerou que o NS 2 não era um assunto político, muito menos de âmbito geopolítico. Só em fase adiantada do projeto, e durante a visita a Berlim do Presidente do Ucrânia, Petro Poroshenko em 10 de abril do ano passado, a Alemanha alterou o seu discurso. Depois de muito pressionada pelos EUA e alguns parceiros europeus, a Chanceler Merkel reconheceu que poderiam estar em jogo, efetivamente, aspetos políticos e estratégicos. E que neste caso, a Ucrânia não poderia ser prejudicada ou limitada no futuro, na sua política energética por esta opção comercial. A Alemanha comprometia-se publicamente a defender os interesses da Ucrânia, perante a Rússia. A influência germânica na Europa será suficiente para permitir um acordo mais global, que permitirá levar a bom porto e conforme programado este grande projeto energético na Europa. O apoio da Áustria e apoio tácito da França e Reino Unido, Itália e Holanda, darão margem de manobra à Chanceler Merkel para partilhar esta vitória política e comercial na Europa. Os países diretamente envolvidos, para além da Rússia, a Dinamarca, Suécia e Finlândia, já garantiram um apoio praticamente incondicional ao projeto. A Finlândia foi o mais recente Estado a garantir a permissão da construção do gasoduto. Em simultâneo, do outro lado do Atlântico, 39 senadores (muitos republicanos e alguns democratas) solicitavam entretanto ao presidente Trump, o uso de todos os instrumentos legais, para obstaculizar a concretização do NS 2. Inclusive recorrendo ao «Countering America`s Adversaries Through Sanctions Act (CAATSA)», impondo assim, às companhias europeias envolvidas, sérias limitações comerciais e de acesso ao mercado financeiro. O próprio presidente norte-americano, já tinha afirmado pessoalmente a sua hostilização às decisões tomadas pela Alemanha, confrontando mesmo a pouca contribuição financeira germânica do seio da NATO, com os custos envolvidos no gasoduto NS 2.
7 – A ofensiva geopolítica das grandes potências
Em todo este processo, sobressai uma opção energética forte: a duplicação da importação de gás natural da Rússia pela Alemanha, por pipeline, através do Mar Báltico, num investimento de grande amplitude. É também uma clara opção comercial alargada, onde estão envolvidas companhias Alemãs, Francesas, Austríaca e Anglo-Holandesa, para além evidentemente da Gazprom. A consolidação deste projeto, com o alargamento da rede interna de conexão de gás, irá permitir beneficiar os países do Centro e Norte da Europa, possibilitando à Alemanha reequilibrar o seu mix energético a prazo, após a prevista redução no carvão e no nuclear. Ganha e muito a Rússia, porque permite aumentar as suas vendas de gás natural e garantir contratos a médio e longo prazo, justificando os seus enormes investimentos no upstream do gás, nomeadamente no Ártico. Por outro lado, ficam muito prejudicados, nesta fase, os países de trânsito como a Ucrânia, que deixam de receber na mesma proporção, os respetivos dividendos financeiros (transit fees). Mas ilude-se quem pensava, que este era um mero projeto comercial energético. Desde sempre que a Alemanha e a Rússia, o sabiam, embora nunca o tivessem afirmado.
O que se verifica é que existe uma clara estratégia russa e da Gazprom. Garantir a colocação do seu gás na Europa, conquistando mercado e domínio económico sobre esta, numa componente decisiva e muito vulnerável como é a energia, contornando o problema da passagem do gás natural pela Ucrânia. O jogo geopolítico estende-se aos EUA, que procuram também eles, ocupar o espaço do gás natural, com a sua política de expansão do GNL e do gás de xisto e garantir a utilização dos muitos terminais de GNL existentes na Europa para o efeito. A Europa muito dividida, percebe também, que podem existir hoje mais alternativas energéticas, que em épocas passadas. A segurança energética, se já era uma preocupação da Europa, passou a ser uma «obrigação estratégica», em face das novas realidades. Na verdade, a segurança energética terá de ser sempre um objetivo estratégico da UE.
Garantir a «Segurança, Resiliência e Competitividade» no fornecimento de gás no espaço da UE, obriga ao cumprimento das normas reguladores estabelecida no espaço europeu. Esta disputa comercial poderá, desde que devidamente acautelada, gerir condições mais favoráveis; que levem a um equilíbrio de recursos (entre o pipeline e o GNL), que garantam que o objetivo máximo da segurança energética no espaço europeu seja efetivamente uma realidade. A Europa e os seus Estados-Membros, não podem depender de uma fonte energética «diretora», ou do monopólio de um fornecedor. O GNL vem criar um modelo comercial de alternativa e complementaridade, enquadrado num cenário mais amplo. O objetivo da concretização da «União da Energia» passará também, pela progressiva consolidação das energias renováveis, no mix energético europeu.
Eduardo Caetano de Sousa
Associado
[1] Bilião de metros cúbicos.
[2] Baseado no livro do autor «Com que gás se move o Sistema Internacional – o gás natural nas novas disputas da geopolítica mundial».[3] EU – «Relatório sobre a Estratégia da UE de Gás Natural Liquefeito e de Armazenamento de Gás» (2016/2059 (INI))