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1. Estado de Arte

Quando paramos para ponderar se armas nucleares contribuem ou não para a paz mundial encaramos uma série de dicotomias: desde o clássico “sim” versus “não”, à colisão entre discursos estatísticos e discursos moralistas, ao incontornável debate entre Waltz e Sagan. Contudo, o que grande parte das abordagens falham em entender é que a vida raramente se pinta a preto e branco, mas sim em tons de cinzento. O que eu pretendo alcançar neste ensaio é pôr em evidência as nuances e concluir que a resposta correta a esta pergunta não é nem “sim” nem “não”, mas antes “sim e não”.

Depois da dita “War to end all wars”, deu-se a segunda guerra mundial. Na segunda metade do século passado viveu-se uma rivalidade titânica entre duas superpotências, culminando na dissolução de uma, movimentos de descolonização, crescimento célere de novas potências e um avanço tecnológico sem precedentes (Sagan e Waltz, 1995).

Apesar do mundo não ter sido estranho a alta instabilidade política e económica desde a segunda grande guerra, foi estranho a terceira edição do conflito. Porquê? Brown e Langer (2004) fizeram o reparo de que conflito é normal, ubíquo e inevitável, sendo inerente à existência humana e estando presente em qualquer sociedade. Na sociedade internacional distinguindo-se três tipos de conflito: Internacionais; Étnicos; e Civis. Porém, a tendência nas passadas décadas é de uma diminuição geral, apesar de se registar uma subida na quantidade de conflitos étnicos e civis.

Portanto, porquê a queda vertiginosa em conflitos internacionais? Vários teóricos, otimistas quanto à proliferação, apontam os holofotes para armas nucleares (AN). Contudo, torna-se prudente analisarmos as diferentes abordagens de pensadores céticos, para darmos mais profundidade a esta análise.

Pessimistas quanto à proliferação, como Sagan, argumentam que mesmo que as AN estejam a prevenir uma terceira guerra mundial, não deixa de haver perigos como acidentes, erros humanos, ou a possibilidade de organizações terroristas se apoderarem das mesmas (Sagan e Waltz, 1995). Porém esta lógica prende-se mais com os riscos associados à gestão de AN e não tanto com a eficácia das mesmas como meio de prevenção da guerra.

Críticos morais, como Falk (2019), argumentam que AN é um recurso bélico imoral pelo perigo indiscutível que representam para civis e para a humanidade. Não obstante, também não se dirige à capacidade de prevenção de uma guerra mundial.

Pensadores mais transigentes, como Kapur (2009), abordam o paradoxo estabilidade/instabilidade, argumentando que embora AN promovam a paz entre estados nuclearizados (EN) e previnam a ocorrência de grandes guerras, aumentam também a probabilidade de ocorrência de pequenas guerras e proxies; ou seja, como EN sabem que utilizar AN seria suicídio, e sabem que os demais EN também o sabem, todos sabem que existe um limiar acima do qual ninguém avançará, assim sendo, cria-se uma “zona de conforto” permeável à ocorrência de conflitos que não majorem o limiar. De qualquer forma, não nega a utilidade de NA na promoção da paz.

Pensadores liberais, como Vasques (2012), argumentam que não são as AN que têm promovido a paz desde a segunda guerra mundial, mas sim o novo zeitgeist que dela nasceu, um mundo mais globalizado, interdependente, estruturado e construído sobre normas e curvas de aprendizagem. Todavia, esta argumentação não é mutuamente exclusiva ao contributo que AN teve até agora em prevenir uma terceira grande guerra.

Num estudo quantitativo feito por Rauchhaus (2009), analisaram-se três binómios – um simétrico, ambos sendo EN; um assimétrico, entre um EN e um estado não-nuclearizado (ENN); e outro simétrico, ambos sendo ENN – sob oito variáveis: contiguidade de fronteiras; distância; hard power; filiação a alianças; estatuto de Grande Potência (GP); democracia; economia/interdependência; filiação a organizações internacionais (OIs).

Os resultados foram mistos, dando uma fatia do bolo da razão a cada corrente teórica. Se por um lado Waltz tem razão quanto a EN evitarem grandes conflitos, posteriormente prevenindo uma terceira guerra mundial, por outro, céticos também têm quanto à maior probabilidade de guerras de menor escala, em particular entre binómios assimétricos devido à desproporcionalidade de poder.

Realmente resta-nos um dilema do trolly sobre guerra justa: será que o dano resultante de guerras de menor escala compensam evitar a devastação de uma terceira guerra mundial? O argumento teleológico baseia-se na utilidade do maior número de pessoas, portanto sim. O argumento deontológico defende que mesmo que mais pessoas possam vir a morrer numa grande guerra, são soldados que morrerão, estando pelo menos em conformidade com a humanização da guerra da Convenção de Genebra.

2. Tratado de Não – Proliferação de Armas Nucleares

Porém, no âmbito de darmos mais profundidade a esta análise, vamos explorar a argumentação deontológica e a sua complacência no que concerne a convenções e tratados. Para tal, colocaremos em evidência a pedra-angular (em termos normativos internacionais) dos apologistas do desarmamento nuclear: o Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares (TNP).

Os principais argumentos otimistas quanto à eficácia do TNP são: através da pressão de socialização normativa, o TNP criou uma consciência coletiva internacional de que AN “são más”, existindo maior benefício em evitá-las do que em adquiri-las; o TNP tem prevenido que mais Estados se nuclearizassem; e, a relevância do TNP é realçado pelo facto de ser o tratado mais universal.

Masala (2014) argumenta que, apesar de ser indiscutível, dados os mais de 180 membros do TNP, ser o tratado mais universal nas relações internacionais (RI), juntar-se ao TNP não justifica a motivação para Estados adquirirem ou deixarem de adquirir a AN. Não se pode analisar a decisão de adquirir ou não AN sem considerar os custos inerentes. Assinar o TNP sem a capacidade de se nuclearizar é política simbólica, assim, não se pode concluir que a decisão resultou do TNP.

Mesmo os que se juntaram ao TNP com a capacidade financeira e tecnológica para se nuclearizar poderão ter-se abstido de nuclearização, não pelas obrigações morais e legais do tratado, mas por se fiarem na proteção credível de uma cúpula nuclear. Outros poderão nem sentir a necessidade de proteção nuclear dado o seu ambiente geoestratégico não despertar necessidade ou desejo. Outros poderão ter-se juntado para mascarar as suas ambições nucleares, sendo que aderir ao TNP possibilita acesso a tecnologia nuclear que facilita a nuclearização, para além de que, tomando Israel como exemplo, aderir à Agência Internacional da Energia Atómica suaviza as normas de inspeção em comparação com a não adesão.

Mesmo a cessação dos programas ou posse de AN dos que outrora procuraram aquisição, mas desistiram, nada teve a ver com o TNP: às ex-Repúblicas Soviéticas foi oferecido apoio financeiro em troca das reservas nucleares; ao Brasil, assistência técnica; os EUA deixaram de apoiar as aspirações a Potência Nuclear de África do Sul; e à Líbia foi oferecida o fim do isolamento internacional e algumas promessas securitárias.

Construtivistas argumentam baseando-se na pressão da socialização normativa. Contudo, vários Estados têm várias motivações instrumentais na adesão ao TNP. Assim, não se poderá dizer que o TNP, como regime, tenha diretamente influenciado a abstenção dos Estados. Na verdade, o passado sucesso da não-proliferação é atribuído à convergência de interesses das duas superpotências nucleares da guerra fria. Na passagem para a ordem unipolar, a gestão da ordem nuclear recaiu sobre os EUA, que agora (e especialmente após a rotulagem de “rogue states” se introduzir na retórica americana) eram percecionados como ameaça à soberania de alguns estados. Acresce que outras potências nucleares não partilham a visão de não-proliferação americana, interpretando a proliferação como instrumental no contrapeso à unipolaridade, observando-se iniciativas comerciais Russas para com o Irão, Índia e China, e assistência tecnológica Chinesa ao Paquistão e ao Irão.

3. Carácter simbólico das Armas Nucleares

Tendo-se abordado o caráter simbólico de convenções e tratados, aprofundaremos este ensaio na direção do caráter simbólico das AN.

Frey (2006) nota que AN como símbolos de poder são, tecnicamente, herança do TNP, que preserva o estatuto e poder dos então cinco EN. O tabu do “EN Responsável” gerou o “mito nuclear” que indexa a posse de AN ao “derradeiro estatuto de GP”. Estados que desde então sentem que existe um desequilíbrio entre o seu poder e a sua posição no SI desenvolveram dois desejos – imunidade (relativa a soberania com maior margem de autonomia) e prestígio – alcançáveis através de AN.

Porém com apenas nove EN, porquê tão pouca aderência ao “mito”? Frey (2006) conclui que tudo se resume à psicologia normativa das AN. Utilizando o Modelo de Conceção Identitária Nacional (MCIN), a disposição normativa que Estados adotam quanto a AN está enraizada na identidade societal, daí que a proliferação Francesa, Britânica e Chinesa tenha estagnado, enquanto a Russa e Americana tenha diminuído (ainda que pouco significativamente). Ao passo que Estados que se sentem privados do seu devido lugar à mesa não tenham olhado a meios para tal. Este mesmo desejo de igualar/superar o antagonista pode também levar a comportamentos opostos, levando um ENN a permanecer ENN para ter superioridade moral, como no caso Sul-Coreano.

O MCIN de Frey, realça a importância do estudo das várias doutrinas nucleares. Armbruster (2018) analisa as cinco principais, que se distinguem tendo em conta o raciocínio geopolítico, moral/legal, e nuclear dos diversos Estados do SI:

Abolicionismo Nuclear, cujos preponentes advogam a imoralidade inerente às AN, e mesmo a inutilidade das mesmas face às ameaças securitárias contemporâneas (terrorismo e estados falhados); Detenção Minimalista, cujos apologistas descredibilizam a assunção abolicionista de que o SI pode ser radicalmente alterado, não obstante acreditando que os arsenais atuais são desproporcionais às ameaças securitárias; Abordagem Balanceada, derivada de ideais liberais crentes no papel que instituições internacionais terão na criação de um mundo não-nuclear num futuro longínquo após uma erosão gradual do dilema da segurança; Detenção Flexível que assume uma postura de irreversibilidade do status quo, argumentando que seria irresponsável não incluir AN no planeamento defensivo, sendo que apenas mantendo credibilidade nuclear se poderá responder a ameaças sem utilizar força nuclear e minimizando o próprio uso da força; e, Superioridade Nuclear, proponentes da qual creem que o status quo é irreversível e que fracassar no investimento e evolução das capacidades nucleares criará um fosso entre um e os demais EN, que por sua vez contribuirá para a instabilidade do SI, sendo por isso instrumental como check entre cúpulas nucleares.

4. O caso de Israel e da Coreia do Norte

Querendo enriquecer a análise com ideias menos teóricas, é interessante explorar a análise empírica de Beardsley e Asal (2009) que, assumindo que armas nucleares servem funções defensivas e não ofensivas, dado o custo postremo e pírrico da sua utilização, analisam dinâmicas comportamentais e a predisposição para escalar níveis menores de hostilidade de vários conflitos.

Relativamente a Israel, o EN mais controverso, que desenvolveu duas AN antes da Guerra dos 6 Dias. O seu escudo nuclear incitou moderação aos seus oponentes, que estiveram menos dispostos a recorrer à agressão após 1967, sendo uma razão para maior disposição de Sadat em estabelecer paz com Israel. Por outro lado, o testar do escudo nuclear Israelita na Guerra de Yom Kippur corrobora a lógica da ameaça credível, visto que o “heartland” Israelita não foi credívelmente ameaçado. Assim, o Egito limitou os seus objetivos para evitar a opção nuclear; enquanto que, embora Israel não seja imune à agressão, ameaças à sua vitalidade são significativamente reduzidas.

O que falta no estudo de Israel é a dinâmica comportamental de rivais que proliferam entre si. Para tal, Beardsey e Asal (2009) observam o caso Indo-Paquistanês. A Índia nuclearizou-se em 1974, o Paquistão em 1987. Em estado de simetria não-nuclear, envolveram-se em seis crises, culminando em três guerras. Durante os treze anos de assimetria nuclear, não existiram crises, traduzindo-se numa moderação comportamental Paquistanesa. De 1988 a 2004, envolveram-se em cinco crises, havendo, todavia, uma notória moderação.

Os autores concluíram que AN trazem benefícios observáveis aos detentores, não os tornando, porém, imunes à agressão.

Quanto ao caso Norte-Coreano e geopolítica do extremo-oriente, Mankoff e Barannikova (2019), notam que embora a Rússia seja contra o estatuto Norte-Coreano de EN, crê que se não o fosse teria sofrido algo similar ao Iraque. Contudo, Moscovo não se sente ameaçado nem carente de um acordo militar com Pyongyang, sendo que o seu antagonista é Washington. A única verdadeira ameaça à Rússia seria se as defesas americanas intercetassem um míssil Norte-Coreano sobre o espaço aéreo Russo, mas Moscovo considera o governo Norte-Coreano racional.

Mankoff e Barannikova (2019) observam uma postura proativa de Pyongyang. Antes das reuniões entre chefes de estado Norte-Coreanos e Americanos, o objetivo era alcançar uma detenção credível. Alcançando-o, passaram a mostrar-se abertos à diplomacia, assumindo o crescimento económico como prioridade.

Quanto a Pequim, os autores realçam a sua interpretação da Península Coreana como parte da sua esfera de influência. Esta alavancagem de poder colossal sobre Pyongyang tem levado a Coreia-do-Norte a procurar diversificar as suas relações, iniciando diálogos com o Sul e mostrando-se aberta ao diálogo com Washington.

5. Conclusão

Após estudo diligente, concluo que na história não existem passos atrás. AN são a realidade para a qual acordaremos todos os dias, até se tornarem obsoletas. Acho pouco provável que tal seja pela via de tratados como o TNP, mas sim por algo de força maior. Se o estudo em que empreendi na elaboração deste ensaio me ensinou algo, foi que ulteriormente o racional defensivo é baseado na interpretação de antagonistas e na análise racional da postura a ser assumida perante os mesmos. AN contribuíram de uma maneira muito própria para a limitação do uso da força, não sem as suas nuances, mas certamente serviram para desprestigiar exacerbações desmedidas de nacionalismo, que foi o que rematou as duas últimas grandes guerras. Assim, se durante três quartos de século, esta categoria de guerra não ressurgiu, parece, por enquanto, adequado atribuir relevância às AN enquanto elemento contribuidor para a paz.


21 de abril de 2022

Ivo Vaz

EuroDefense Jovem-Portugal


Referências:

Armbruster, Mitchell (2018) Examining Nuclear Assumptions: Five Schools of Thought. Center for Strategic and International Studies;

Beardsley, Kyle & Asal, Victor (2009) Nuclear Weapons as Shields. Sage Publications, Ltd.;

Brown, Graham K. & Langer, Arnim (2014) Elgar Handbook of Civil War and Fragile States. Paperback

Falk, Richard (2019) On Nuclear Weapons: Denuclearization, Demilitarization and Disarmament. Lunds Universitet, Sweden;

Frey, Karsten (2006) Nuclear Weapons as Symbols: The Role of Norms in Nuclear Policy Making. Institut Barcelona d’Estudis Internacionals;

Kapur, S. Paul (2009) Dangerous Deterrent: Nuclear Weapons Proliferation and Conflict in South Asia. Nus Press Singapore;

Mankoff, Jeffrey & Barannilova, Anastasia (2019) United States-DPRK Relations: Is Normalization Possible?. Center for Strategic and International Studies;

Masala, Carlo (2014) Don’t Beat a Dead Horse: The Past, Present, and Future Failures of the NPT. Institute for National Security Studies

Rauchhaus, Robert (2009) Evaluating the Nuclear Peace Hypothesis: A Quantitative Approach. Sage Publications, Inc.

Sagan, Scott D. & Waltz Kenneth N. (1995) The Spread of Nuclear Weapons: A Debate. Paperback;

Vasquez, John A. (2012) What do We Know About War?. Rowman & Littlefield Publishers, Inc..


NOTA:

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