1. Notas Introdutórias
“A Europa acolhe as sociedades mais igualitárias do mundo, pauta-se pelas mais elevadas normas em matéria de condições de trabalho e assegura uma ampla proteção social”[1]. É neste contexto que, desde os seus primórdios, a União Europeia tem reunido esforços para a existência de um modelo social europeu que promova princípios e direitos fundamentais para a proteção e segurança social, equidade e mercados de trabalho justos e resilientes. A realização dos objetivos do atual Pilar Europeu dos Direitos Sociais constitui um compromisso político e uma responsabilidade política partilhados, que a União tem assumido e continuará a assumir. A 5ª Tertúlia organizada pela EuroDefense-Jovem teve lugar no dia 23 de novembro de 2021, na Faculdade de Direito da Universidade do Porto (FDUP). Abordando a temática do Pilar Europeu dos Direitos Sociais, foi resultado de uma parceria com a Associação de Estudantes da FDUP e contou com a presença do Professor Doutor Jorge Bacelar Gouveia, Dra. Paula Cruz, em representação da European Anti-Poverty Network e Dr. Tiago Moreira Rocha.
2. O Pilar Europeu dos Direitos Sociais: evolução e Estado atual
O desejo de uma Europa mais justa e inclusiva não é recente, estando esta ambição presente em vários dos Tratados que guiam a ação da União Europeia. Por exemplo, o artigo 3.º do Tratado da União Europeia refere que são objetivos primordiais e metas o pleno emprego e o progresso social, bem como o combate à exclusão social e discriminações, a justiça e proteção social e a igualdade entre homens e mulheres. Por sua vez, o artigo 9.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, na definição e execução das suas políticas e ações, prevê que a União tenha em conta as exigências relacionadas com a promoção de um nível elevado de emprego, a garantia de uma proteção social adequada, a luta contra a exclusão social e um nível elevado de educação, formação e proteção da saúde humana. Igualmente, o artigo 151.º do mesmo Tratado estabelece que a União, tendo presentes os direitos sociais fundamentais, tal como os enunciam a Carta Social Europeia (1961) e a Carta Comunitária dos Direitos Sociais Fundamentais dos Trabalhadores (1989), tem como objetivos a promoção do emprego, a melhoria das condições de vida e de trabalho, de modo a permitir a sua harmonização, assegurando simultaneamente essa melhoria, uma proteção social adequada, o diálogo entre parceiros sociais, o desenvolvimento dos recursos humanos, tendo em vista um nível de emprego elevado e duradouro, e a luta contra a exclusão. A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (2000) garante e promove uma série de princípios fundamentais que são essenciais para o modelo social europeu.
O Pilar Europeu dos Direitos Sociais foi proclamado pelas três instituições da União – Conselho, Comissão e Parlamento – Cimeira Social de Gotemburgo, em 2017. Estabelece 20 princípios fundamentais que constituem o quadro para uma Europa social forte, justa, inclusiva e plena de oportunidades, aplicáveis aos cidadãos da União e nacionais de países terceiros com residência legal. Estes, por sua vez, definem a visão para um novo «conjunto de regras sociais», não impedindo, no entanto, que os Estados-Membros ou os seus parceiros sociais estabeleçam normas sociais mais ambiciosas. Exprimem medidas e direitos essenciais para dotar a Europa do século XXI de mercados de trabalho e de sistemas de proteção social que sejam justos e funcionem corretamente. De acordo com a Comissão Europeia[2], alguns princípios reafirmam direitos já consagrados no acervo da União, a passo que outros fixam objetivos claros para o futuro, à medida que é dada resposta aos desafios decorrentes da evolução social, tecnológica e económica. É igualmente salientado que a aplicação efetiva do Pilar é agora mais importante do que nunca e depende da determinação e da ação dos Estados-Membros, já que estes são os principais responsáveis pelas políticas nas áreas social, do emprego e das competências.
Os 20 princípios dividem-se em três grandes áreas:
- Igualdade de oportunidades e acesso ao mercado de trabalho, que se traduz em: educação, formação e aprendizagem ao longo da vida, igualdade entre homens e mulheres, igualdade de oportunidades e apoio ativo ao emprego;
- Condições de trabalho justas, que se subdivide em: emprego seguro e adaptável, direito a um salário justo que garanta um nível de vida decente, informações sobre as condições de emprego e proteção em caso de despedimento, diálogo social e participação dos trabalhadores, equilíbrio entre a vida profissional e a vida privada e um ambiente de trabalho são, seguro e bem adaptado e proteção dos dados;
- Proteção e inclusão sociais, que incluem acolhimento e apoio a crianças, proteção social adequada para todos os trabalhadores, prestações por desemprego, acesso ao rendimento mínimo, prestações e pensões de velhice, cuidados de saúde, inclusão de pessoas com deficiência, cuidados de longa duração, habitação e assistência para sem-abrigo e, por fim, acesso a serviços essenciais de qualidade.
Em 2021, a Comissão Europeia apresentou um Plano de Ação para a concretização do Pilar. Este baseia-se numa consulta em larga escala em resposta à qual foram recebidos mais de 1000 contributos de cidadãos, instituições e organismos da UE, Estados-Membros, autoridades regionais e locais, parceiros sociais e organizações da sociedade civil, e onde é proposto um conjunto de iniciativas e são estabelecidas três metas principais a atingir até 2030:
- Taxa de emprego de pelo menos 78% na União Europeia;
- Pelo menos 60% dos adultos devem participar anualmente em formação;
- Redução do número de pessoas em risco de exclusão social ou de pobreza em pelo menos 15 milhões de pessoas, entre as quais 5 milhões de crianças;
A Cimeira Social realizada no Porto, em maio de 2021, organizada pela Presidência Portuguesa do Conselho, constituiu uma oportunidade para reafirmar o compromisso e a ambição relativamente ao Pilar Europeu dos Direitos Sociais. Foi assinado o Compromisso Social do Porto, entre a Presidência Portuguesa do Conselho da UE, a Comissão Europeia, o Parlamento Europeu e parceiros sociais. Neste compromisso, afirmam que a sua “ambição partilhada de proceder à transição para uma economia verde, socialmente justa e digital definirá os modos de vida das pessoas em toda a Europa durante as próximas décadas, modificando, entre outros aspetos, os modelos de consumo, de distribuição, de produção e de trabalho”, pelo que deverão ser reunidos esforços e criadas as sinergias para uma recuperação inclusiva, sustentável, justa e criadora de empregos, cumprindo não só com o Pilar como outras metas que concernem estas questões, por exemplo as expostas na Agenda Estratégica 2019-2024. António Costa, primeiro-ministro português, afirmou no seguimento da Cimeira Social de 2021 que o Compromisso Social do Porto é o “mais abrangente e ambicioso compromisso alguma vez alcançado de forma tripartida ao nível da União Europeia”.
3. Contributos da Tertúlia
A Tertúlia iniciou com a intervenção da Dra. Paula Cruz, em representação da Rede Europeia Anti Pobreza Portugal (EAPN Portugal). O Pilar Europeu dos Direitos Sociais é uma das agendas da instituição, pelo que faz todo o sentido debater sobre a possibilidade de este ser uma nova oportunidade de reforço da Europa Social e a luta contra a pobreza.
A luta contra a pobreza é uma luta intemporal, com avanços e recuos. A ação da União tem sem dúvida influenciado a ação dos vários países a nível doméstico, como é o caso de Portugal. Destaca determinados marcos relevantes:
- Recomendação do Conselho, de 24 de junho de 1992, relativa a critérios comuns respeitantes a recursos e prestações suficientes nos sistemas de proteção social;
- A estratégia de Lisboa, lançada em 2000, introduziu um mecanismo de supervisão e coordenação que consiste na definição de objetivos, na avaliação da pobreza com base num conjunto de indicadores e valores de referência, diretrizes para os Estados-Membros e planos de ação nacionais de luta contra a pobreza;
- Recomendação da Comissão, de 3 de outubro de 2008 , sobre a inclusão ativa das pessoas excluídas do mercado de trabalho;
- A Estratégia Europa 2020 foi definida em 2010 (antes do pico da grande crise financeira que se iniciou em 2007/08), sendo um dos objetivos a luta contra a pobreza e a exclusão social, especificamente reduzir em 25 % o número de europeus que vivem abaixo do limiar de pobreza e tirar mais de 20 milhões de pessoas da pobreza;
- Investimento social a favor do crescimento e da coesão, designadamente através do Fundo Social Europeu, no período 2014-2020, pacote lançado em 2013;
- Em 2015, iniciou-se um período de consultas não só aos governos dos Estados-Membros como aos cidadãos, instituições e parceiros sociais sobre um possível Pilar Europeu dos Direitos Sociais;
- No ponto de vista da EAPN, o Pilar Europeu dos Direitos Sociais proclamado em 2017 previa um conjunto de oportunidades relevantes no que toca à luta contra a pobreza e outros aspetos. Contudo, não foi claro o que este Pilar significava ou como poderia ser implementado, bem como se poderia ligar a outros instrumentos já existentes, pelo que os seus efeitos ficaram aquém do esperado;
- A nova Comissão Europeia veio dar um novo ímpeto à questão dos direitos sociais num contexto da pandemia de COVID-19, sobretudo ao lançar o Plano de Ação para a implementação do Pilar, para o qual todos os Estados-Membros devem contribuir.
Portugal lançou a Estratégia Nacional de Combate à Pobreza em setembro de 2021 (atualmente em consulta pública), com seis grandes dimensões, cuja meta principal é reduzir em 360 mil o número de pessoas em situação de pobreza (incluindo 120 mil crianças), que, na perspetiva da EAPN é insuficiente e pouco ambiciosa. A Estratégia deve estar interligada com várias políticas nacionais, por forma a dar uma resposta integrada e completa a um problema que é multidimensional, e a sua meta deve cumprir e superar a meta do Pilar Europeu dos Direitos Sociais.
O Professor Doutor Jorge Bacelar Gouveia abordou uma perspetiva mais jurídica no que toca ao Pilar dos Direitos Sociais.
Os direitos sociais são uma conquista recente, cuja proteção hoje se insere dentro do próprio Direito Constitucional, no caso português logo na Constituição de 1976. Hoje, tendemos a ver os direitos sociais como estando interligados com outros tipos de direitos: civis, culturais, humanos. O Estado deve ser o garante de todos estes direitos: é uma entidade de proteção essencial.
A nível internacional e europeu, as respetivas ordens jurídicas conferem também grande importância aos direitos sociais. No caso do Direito Internacional Público, desde logo o pós-Segunda Guerra Mundial veio significar uma consagração dos direitos humanos, sempre a par dos direitos civis e políticos, através dos chamados Pactos. A Europa, contudo, foi numa primeira fase pouco sensível aos direitos sociais. A União Europeia, numa fase posterior, alterou substancialmente a sua natureza com o Tratado de Maastricht, deixando de ser apenas uma União económica e passando a ser uma União Política, Monetária, de cidadania, com tudo o que isso implica em matéria de direitos fundamentais, incluindo os direitos sociais. Um dos passos mais importantes foi a Cimeira de Nice, onde foi adotada Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e onde se incluem os direitos de solidariedade.
O contexto da pandemia COVID-19 tem colocado acento tónico na questão dos direitos sociais, nomeadamente no que toca no direito à saúde, fundamental e inequívoco, que nunca deverá ser posto em causa.
O Dr. Tiago Moreira Rocha aborda o contexto político subjacente à proclamação do Pilar Europeu dos Direitos Sociais, procurando explicar o seu alcance e desenvolvimentos recentes. Igualmente, aborda a ligação entre o Pilar e a Política Migratória da União.
Começando por uma exposição teórica, aborda a principal vantagem da União Europeia: é apelativa enquanto lugar de liberdade e bem-estar. É um exemplo de sucesso único no panorama internacional, sendo que os custos da não-europa ultrapassam largamente os custos da integração das soberanias. É necessário, no entanto, encontrar estratégias para afirmar os ganhos inerentes a uma Europa verdadeiramente social. Após a crise financeira e a crise das dívidas soberanas, os direitos sociais foram de certa forma afetados, por exemplo as taxas de desemprego subiram, os níveis de pobreza também. A crise migratória que os anos seguintes viriam a revelar, em conjunto com a falta da resposta social da União Europeia a várias questões que se foram desenrolando, resultaram num euroceticismo exacerbado que descredibilizou a Europa social. Sem integração de competências comuns no âmbito social, nenhum resultado concreto será alcançado. Este pilar, reunindo o acervo comunitário em matéria social, é uma proclamação semelhante ao que foi feito em 2000 relativamente à Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia – não tem força jurídica, é apenas uma declaração. Não existe um mecanismo de proteção adicional relativamente a migrantes, o que se esperava que acontecesse devido às crises migratórias dos anos de 2015 em diante.
Várias foram as questões colocadas aos oradores convidados:
Há metas pouco ambiciosas por parte de Portugal: qual é o papel da sociedade civil no processo de implementação do Plano de Ação do Pilar?
A sociedade civil tem um papel importantíssimo, uma vez que convive diariamente com as situações de pobreza e com as pessoas que as experienciam. Contudo, tem sido ‘o parente pobre’: apesar da existência de várias consultas e, de facto, existir participação, a sua qualidade é outra questão. A sociedade civil não tem grande influência na definição das políticas. Devem ser criadas condições necessárias para os cidadãos poderem participar. A Estratégia Nacional de Combate à pobreza é um exemplo.
Qual será o papel dos jovens europeus no combate à pobreza e à exclusão social? Em relação ao Pilar, como podemos transformá-lo de meros objetivos em ações concretas?
O Dr. Tiago Moreira Rocha refere que o Plano de Ação já prevê que os Estados-Membros adotem medidas a nível nacional que concretizem os objetivos e princípios dos planos, sendo que deverão promover estratégias e apresentar os seus resultados. Existem igualmente indicadores que vão permitir acompanhar o desenvolvimento dos Estados-Membros. A União Europeia tem feito um bom trabalho de acompanhamento, mas não pode ‘obrigar’ nenhum Estado a agir, uma vez que são matérias em que não tem competências para o fazer nesta área. Tudo fica dependente do empenho que pretendam aplicar. A Dra. Paula Cruz menciona o exemplo do rendimento mínimo social – começou como uma recomendação em 1992. Determinados países tomaram medidas para aplicar esquemas de rendimentos mínimos e outros não.
Os jovens têm um papel importantíssimo no combate à pobreza e à exclusão social, que deve passar desde logo pela informação e criação de fóruns de debate e associações.
23 de novembro de 2021
Inês Barbosa Caseiro
EuroDefense Jovem Portugal
4. Referências
COM(2021) 102 final – COMUNICAÇÃO DA COMISSÃO AO PARLAMENTO EUROPEU, AO CONSELHO, AO COMITÉ ECONÓMICO E SOCIAL EUROPEU E AO COMITÉ DAS REGIÕES: Plano de Ação sobre o Pilar Europeu dos Direitos Sociais
Compromisso Social do Porto é “o mais abrangente e ambicioso alguma vez alcançado na UE”, Presidência Portuguesa do Conselho da União Europeia (2021) https://www.2021portugal.eu/pt/cimeira-social-do-porto/noticias/compromisso-social-do-porto-e-o-mais-abrangente-e-ambicioso-alguma-vez-alcancado-na-ue/
Compromisso Social do Porto, (2021) https://www.2021portugal.eu/pt/cimeira-social-do-porto/compromisso-social-do-porto/
https://ec.europa.eu/info/sites/default/files/proclamation-pillar_pt.pdf
O Pilar Europeu dos Direitos Sociais em 20 princípios, Comissão Europeia (2020) – https://ec.europa.eu/info/strategy/priorities-2019-2024/economy-works-people/jobs-growth-and-investment/european-pillar-social-rights/european-pillar-social-rights-20-principles_pt
Tratado da União Europeia
Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia
[1] Plano de Ação sobre o Pilar Europeu dos Direitos Sociais.
[2] O Pilar Europeu dos Direitos Sociais em 20 princípios.
NOTA:
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