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O conceito de soft power (poder suave) é atribuído ao Professor Joseph Nye, que o define como “a habilidade de afetar outros no sentido de obter os resultados pretendidos através da atração, em vez da coação ou do pagamento”. A influência do comportamento de outrem, segundo Nye, pode ser concretizado de três formas: ameaças de coerção; estímulos financeiros e pagamentos (“cenouras”); atração que faz com que outros queiram aquilo que o próprio quer. Ora, o soft power refere-se à influência que recorre às duas últimas formas, deixando de lado a dimensão da força para alcançar qualquer tipo de objetivo. Para além disso, o soft power depende de três recursos: culturais, referentes aos locais onde o mesmo é atrativo; valores políticos, referentes à adesão do próprio promotor e disseminador a esses valores no espaço doméstico e no espaço transfronteiriço; política externa, relativas a atitudes tomadas na proteção dos interesses consideradas legítimas e dotadas de autoridade moral[1].

Quanto à segunda forma de influência comportamental (estímulos financeiros e pagamentos), algumas vezes chamado de “cenouras”, são o volume e abrangência da ajuda externa do Qatar, os seus investimentos no desporto e os esforços diplomáticos mais subtis que constituem os impulsos mais significativos do soft power deste país[2]. E é nessa forma de influência que nós pretendemos centrar o presente artigo. 

Em dezembro do ano passado, soubemos que a polícia federal belga realizou um número de excursões a redes de cinco pessoas acusadas de participação em organizações criminosas, “corrupção e lavagem de dinheiro”, sendo que as buscas policiais chegaram a obter “600 mil dólares em dinheiro, para além de telefones e computadores”. Sendo que os primeiros acusados consistiram num ex-membro do Parlamento Europeu, alguns assessores parlamentares e um chefe sindical, decididos em irem ao Copa do Mundo FIFA 2022 no QATAR, veio-se a saber que não foram apenas figuras tão insignificantes (para determinados padrões) a encherem os bolsos de forma tão obscura. Na verdade, Eva Kahli, uma das vice-presidentes do Parlamento Europeu, acabou por ficar sob custódia da polícia. A estas acusações graves também não escapou uma ONG (Organização Não-Governamental) conhecida pelos seus afiliados tendencialmente direcionados para a esquerda política[3].

Comecemos por Eva Kahli. É (ou era) uma das pessoas mais poderosas das instituições europeias, antes dotada de prestígio social no seu país de origem, a Grécia, por ter sido uma famosa apresentadora de notícias. Para além disso, veio a ser uma das defensoras mais (aparentemente) convictas de Doha, tendo chegado a afirmar que o Qatar se encontra na “liderança dos direitos laborais”, depois de se ter encontrado com o ministro do trabalho desse país asiático[4]. Eva Kahli é afiliada ao partido grego de centro-esquerda Movimento Socialista Pan-helénico[5].

O parceiro de Kahli, Francesco Giorgi, também foi detido. Trabalhava enquanto conselheiro no Parlamento Europeu relativamente a assuntos relacionados ao Norte de África e ao Médio Oriente e é fundador da Fight Impunity, uma organização não-governamental que, ironicamente, tem como objetivo auto-proclamado promover “a responsabilidade como um pilar central da arquitetura da justiça internacional”[6].

O chefe sindical envolvido também nesta investigação foi Luca Visentini, o secretário-geral da Confederação Internacional do Trabalho (CIT). Na primeira metade de Dezembro do ano passado, Visentini confessou que havia recebido uma doação de pelo menos 50 mil euros da organização não-governamental Fight Impunity, fundada por Pier Antoni Panzeri, um ex-deputado que se encontra detido por acusações de corrupção. Visentini foi libertado sem acusação no dia 11 de Dezembro, tendo-lhe sido imposta a obrigação de informar as autoridades se pretendesse sair do espaço da União Europeia até Março deste ano. Visentini também afirmou que abdicaria do seu lugar de secretário-geral da CIT[7].

A evolução do comportamento da CIT relativamente ao Qatar é algo curiosa, para dizer o mínimo. Em 2013, a organização, que se refere como “a voz global dos trabalhadores”, exigiu que o Qatar não fosse o país anfitrião da Copa do Mundo devido à situação observada dos trabalhadores migrantes encarregados da construção de um novo aeroporto e de novos estádios, hotéis e estradas. Em 2015, a organização chegou mesmo a chamar o Qatar de “estado de escravos”. Contudo, em Junho de 2022, quase meio ano antes da Copa do Mundo, Sharon Burrow, a então secretária-geral da organização, apareceu num vídeo publicado pelo ministro do trabalho do Qatar, no qual elogiava as leis trabalhistas do país do Médio Oriente[8].

Pier Antonio Panzeri, já referido acima, foi detido também em Dezembro. Um mandato para a captura de Panzeri acusa-o de “intervir politicamente junto de membros que trabalham no Parlamento Europeu em benefício do Qatar e de Marrocos”. Outros membros da Fight Impunity, nomeadamente antigos assessores parlamentares, estão também a ser investigados, incluindo um que atualmente acompanha o trabalho parlamentar da deputada Marie Arena, também do grupo europeu Aliança de Socialistas e Democratas[9].

Pouco antes do primeiro jogo, parte substancial dos mesmos trabalhadores indispensáveis para a concretização do projeto bilionário da Copa do Mundo foram despejados dos seus apartamentos para fins de alojamento dos turistas ou visitantes[10]. O próprio Qatar afirmou que, em 2010, houve 37 mortes “ligadas diretamente à construção dos estádios”. Contudo, o número aproximado de 6500 é o valor mais mencionado[11]. A documentação de eventuais reformas legislativas no Qatar tem sido tarefa de trabalhadores, jornalistas, organizações de direitos humanos como a Amnistia Internacional, a Equidem e de organizações trabalhistas como a Trades Union Congress. O mesmo se passa com a contagem do número de mortes durante eventos da dimensão do Mundial da FIFA. Os valores apresentados pelo Qatar são (quase) indubitavelmente conservadores. Dados da Índia, do Bangladesh, do Nepal e do Sri Lanka revelaram que houve 5927 mortes de trabalhadores migrantes no Qatar entre 2011 e 2020. Para além disso, dados da embaixada do Paquistão no Qatar registaram mais 824 mortes de trabalhadores paquistaneses entre 2010 e 2020. Um artigo da BBC apresenta 6500 como o valor aproximado no número verdadeiro de mortes de trabalhadores migrantes, isto é, o valor mais citado[12].

Ainda para mais, o Qatar não demonstrou esforços para investigar as razões de mortes espontâneas de trabalhadores migrantes. Segundo as autoridades oficiais do Qatar, a maior parte delas são causadas por ataques cardíacos ou a “causas naturais”[13]. A exposição a um nível de calor fatal (mais do que 45ºC durante dez horas por dia), que provoca stress e tensão no sistema cardiovascular, parece ser a razão principal das mortes destes trabalhadores durante os meses de Primavera e de Verão[14].

Costumamos referir-nos ao desporto como uma ferramenta isenta de controvérsia e com duas utilidades tradicionais: solidificar a reputação e imagem de um país e unir as nações, nomeadamente através da organização de eventos desportivos. Raramente é por acaso que os países investem massivamente na preparação dos seus atletas para participarem em eventos de maior envergadura. É fácil perceber o prestígio e o estatuto originários da assunção por parte de um país como hospedeiro de eventos desportivos como o Mundial de Futebol, daí que se trate de uma iniciativa muito competitiva. Assim, o Qatar, enquanto anfitrião de eventos desportivos desta dimensão, já obteve resultados significativos nas suas pretensões em se tornar num país atrativo[15].

As suspeitas e alegações de compra de votos dirigidas ao Qatar não são escassas no contexto das buscas de oportunidades (aproveitadas) de o país ser anfitrião de eventos desportivos: os 15º Jogos Asiáticos em 2006 e a Copa Mundial em 2022, por exemplo. O direito obtido de ser anfitrião da Copa Mundial de 2022 reforçou muito a imagem e a reputação do Qatar no Médio Oriente e entre muçulmanos em redor do mundo, o que resulta num aumento significativo deste país a nível de atratividade e, por sua vez, de influência no Médio Oriente e no mundo muçulmano. Aquando do estatuto de anfitrião, estes países exibem uma representação de riqueza cultural e de hospitalidade que contribui para a qualificação da imagem desses mesmos países. Para além da cultura, outra forma de utilização do desporto enquanto soft power é a realização de negócios de patrocínio com futebolistas e equipas prestigiadas e a aquisição de clubes de futebol. Por exemplo, em 2011, o Qatar comprou o clube Paris Saint-German. Trata-se de uma “diplomacia de futebol”, isto é, a utilização de recursos financeiros para investir intensamente em clubes ou projetos de tipos populares de desporto populares, como o futebol[16].

Em jeito de conclusão, a eficácia da “diplomacia das cenouras” tem sido evidente na política externa do Qatar. Alguns de nós que se revelam mais sensíveis à forma como o Qatar tem lidado com os trabalhadores migrantes, a proteção das minorias e o contributo deste estado para a instabilidade no Médio Oriente deve interessar-se pelo estudo dos desafios ao soft power do Qatar, assunto que pode ocupar as páginas de outro artigo. Entretanto, podemos recordar-nos de que deputados que recebem salários  correspondentes a quase 14 mil euros mensais, incluindo um subsídio de despesas, mais cerca de 5 mil euros anuais para despesas de deslocação e mais de 300 euros por cada dia de frequência em reuniões no Parlamento Europeu aparentam ter necessidades financeiras e conseguem ser subornados por um pequeno país no Médio Oriente em troca de celebrações de “reformas laborais” do mesmo, não obstante existirem praticamente só evidências de se tratar de um estado de escravos[17].


1 de março de 2023

Lourenço Pinto Ribeiro
EuroDefense Jovem Portugal


[1] Antwi-Boateng, Osman (2013). The rise of Qatar as a soft power and the challenges. European Scientific Journal. Dezembro de 2013, vol. 2, 39-51, pág. 39

[2] Ibidem

[3] https://www.politico.eu/article/eva-kaili-doha-panzeri-qatargate-what-just-happened-at-the-european-parliament/

[4] Ibidem

[5] https://www.lifo.gr/longstories/hard-facts-life-and-political-carreer-eva-kaili-very-beginning

[6] https://www.politico.eu/article/eva-kaili-doha-panzeri-qatargate-what-just-happened-at-the-european-parliament/

[7] https://www.politico.eu/article/qatar-corruption-scandal-trade-union-boss-luca-visentini-admits-taking-up-to-50k-euros-in-cash-from-panzeri-ngo-fight-impunity/

[8] https://novaramedia.com/2022/11/24/how-a-trade-union-leader-became-qatars-biggest-fan/

[9] https://www.politico.eu/article/eva-kaili-doha-panzeri-qatargate-what-just-happened-at-the-european-parliament/

[10] Ibidem

[11] https://www.euronews.com/my-europe/2022/11/24/fifa-should-compensate-victims-of-world-cup-preparations-meps-say

[12] https://www.theguardian.com/global-development/2021/feb/23/revealed-migrant-worker-deaths-qatar-fifa-world-cup-2022

[13] https://www.theguardian.com/global-development/2019/oct/07/sudden-deaths-of-hundreds-of-migrant-workers-in-qatar-not-investigated

[14] Ibidem

[15] Antwi-Boateng, Osman (2013). The rise of Qatar as a soft power and the challenges. European Scientific Journal. Dezembro de 2013, vol. 2, 39-51, pág. 45

[16] Ibidem, pág. 46

[17] https://www.gulf-insider.com/europe-at-the-mercy-of-qatar/


NOTA:

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