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5ª “Edição Europa” das Tertúlias EDJ

Introdução

Desde novembro de 2023, os Houthis, grupo rebelde originário do Iémen, atacam navios mercantes no Mar Vermelho. A instabilidade no território teve um impacto significativo no comércio mundial, levando a que os maiores armadores do mundo suspendessem as viagens no território. Estas empresas decidiram alterar a rota para o Cabo da Boa Esperança, causando atrasos entre 6 e 14 dias.

Para além disso, os preços das apólices de seguros e as sobretaxas de carga aumentaram, assim como as emissões de dióxido de carbono face à mudança para uma rota maior, que exige maior uso de combustíveis.

Devido à importância estratégica da região para o comércio mundial, o Ocidente não tardou a intervir. No dia 19 de dezembro de 2023, os EUA anunciaram a operação “Prosperity Guardian”, com o intuito de restabelecer a ordem na região. Para além dos EUA, fazem parte desta coligação o Reino Unido, a França, a Itália, a Espanha, os Países Baixos, a Noruega, a Austrália e as Seychelles. No entanto, é importante salientar que países como a Espanha, França e Itália afastaram-se devido a preocupações com a escalada do conflito no Médio Oriente. Isto, aliado com a participação da Grécia e da Dinamarca, evidencia a divisão da UE em relação à operação dos EUA.

Para terminar, é importante destacar as iniciativas europeias para a paz e segurança no Mar Vermelho. A UE tem um interesse especial devido a grande parte do seu comércio com o continente asiatico transitar nessa região. Dessa forma, em fevereiro, foi aprovada a missão Áspides com o apoio do Irão, no sentido de proteger os navios comerciais e de restabelecer a liberdade de navegação. Esta operação conta com o apoio da EUNAVFOR ATALANTA, a missão antipirataria da UE.

Neste quarto episódio desta Tertúlia, contamos com a participação da Professora Doutora Vanda Amaro Dias, da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. É doutorada em Relações Internacionais: Política Internacional e Resolução de Conflitos e mestre em Ciência Política e Relações Internacionais, com especialização em Estudos Europeus.  Tem dedicado a sua investigação aos estudos para a paz, aos estudos de segurança, à política externa, à União Europeia, à Rússia e à Europa de Leste. É subdiretora do Departamento de História, Estudos Europeus, Arqueologia e Artes da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e investigadora no Centro de Estudos Sociais.

A entrevista

1. Como a União Europeia colabora com a região para reforçar a segurança no Mar Vermelho?

A Operação ASPIDES destacou-se em fevereiro de 2024, especialmente na resolução da crise mais recente. Contudo, desde 2008, com o lançamento da Operação Atalanta, a União Europeia tem procurado afirmar-se como um ator de segurança marítima no Mar Vermelho, Golfo de Áden e noroeste do Oceano Índico. A Operação Atalanta, focada no combate à pirataria, tem sido essencial não apenas para enfrentar estas ameaças, mas também para fortalecer a credibilidade da União Europeia como um protagonista relevante na segurança marítima, tanto regional como globalmente.

Além disso, em fevereiro de 2022, o Conselho da União Europeia implementou uma presença marítima coordenada nesta região, assegurando que a UE se mantém atenta e pronta a responder, em colaboração com os seus aliados. A iniciativa European Maritime Awareness, focada no estreito de Ormuz, reforçou a capacidade de gestão das tensões entre o Irão e os Estados Unidos, antecipando possíveis impactos no comércio internacional.

É crucial destacar a capacidade da UE em oferecer soluções que os EUA não conseguem ou até agravam, através de parcerias estratégicas com países do Golfo e sinergias com atores externos, como a Índia e o Japão, para mitigar os efeitos das tensões regionais. Com a revisão da sua estratégia de segurança marítima em 2023, a UE sublinhou a necessidade de reforçar a cooperação com parceiros e concentrar esforços nas áreas de maior interesse estratégico, reconhecendo que a sua ação deve focar-se nas regiões mais próximas e relevantes para os seus interesses, ao invés de áreas mais distantes como o Pacífico Asiático.

Este esforço concertado reflete a ambição da União Europeia de se posicionar como um provedor global de segurança marítima, agindo em parceria, mas também destacando-se como um ator indispensável na gestão de crises internacionais.

2. Como a Europa pode ajudar a promover soluções de longo prazo para os conflitos no Iémen e no Corno de África, que afetam diretamente o Mar Vermelho?

Os conflitos na região têm raízes históricas e identitárias profundas, muitas vezes ligadas ao legado colonial e à formação da pós-colonialidade. A União Europeia contribui para a resolução destes conflitos de duas formas principais. Primeiro, através de missões e operações destinadas a mitigar inseguranças e fatores de instabilidade. Segundo, reforçando parcerias estratégicas com agentes locais, tanto estatais como organizações regionais, que têm maior proximidade e capacidade de intervenção.

Um exemplo é a colaboração com as Nações Unidas, onde todas as missões da UE são enquadradas pelas resoluções do Conselho de Segurança. Além disso, a UE trabalha com organizações regionais como o Conselho de Cooperação do Golfo e a União Africana para fomentar o diálogo entre os atores envolvidos.

Paralelamente, a União Europeia tem procurado capacitar e ajudar as comunidades afetadas, promovendo o fortalecimento da sociedade civil para que possam abordar as causas profundas dos conflitos. Em situações extremas, como no Iémen, onde a ONU declarou uma das piores crises humanitárias atuais, a ajuda humanitária é crucial, incluindo o fornecimento de alimentos, medicamentos e outros recursos essenciais. No entanto, também é vital promover a resiliência económica destes países, o que requer repensar as regras do comércio internacional e a redistribuição dos benefícios da economia global, um ponto onde a UE ainda precisa de avançar mais.

3. Que implicações a presença dos Houthi no Iémen tem para a estabilidade de países vizinhos e como isso influencia a segurança no Mar Vermelho?

Esta questão é fundamental, pois tendemos a focar-nos nos eventos imediatos, como as atividades terroristas dos Houthis no Mar Vermelho, tratando-os como a causa principal dos problemas no Iémen. No entanto, restringir o debate a este grupo específico não faz justiça à complexidade da situação. O conflito no Iémen e a ascensão dos Houthis são, na verdade, reflexos de dinâmicas mais profundas, ligadas tanto ao legado da colonização e descolonização como ao contexto mais vasto das tensões no Médio Oriente.

Os Houthis, um grupo xiita que emergiu no norte do Iémen nos anos 1990, com laços ideológicos e políticos com o Irão e uma postura antiamericana, têm uma longa história de oposição ao regime dominante no país. Esta oposição culminou numa guerra civil prolongada, com uma intervenção regional liderada pela Arábia Saudita. No entanto, o recente aumento da visibilidade dos Houthis não resulta exclusivamente deste conflito interno. As suas ações têm sido amplificadas pela guerra entre Israel e Palestina, que ofereceu uma oportunidade para que o grupo se afirmasse no cenário regional. Este caso ilustra como as tensões no Médio Oriente geram repercussões colaterais em outras áreas, exacerbando conflitos locais.

O Iémen, atualmente considerado um “Estado falhado”, enfrenta uma guerra permanente e uma divisão profunda, sem qualquer solução à vista. A intervenção saudita, hesitante em adotar medidas mais enérgicas devido ao risco de retaliação iraniana, perpetua este estado de insegurança, agravando a instabilidade regional. No entanto, a verdadeira resolução deste conflito passa por uma abordagem mais abrangente, que vá além do Iémen e aborde as tensões mais amplas no Médio Oriente, em particular a questão palestiniana e o direito à autodeterminação.

A revitalização do processo de paz no Médio Oriente, iniciado nos anos 1990, é crucial para enfrentar não apenas os conflitos específicos, mas também as causas estruturais que alimentam a instabilidade na região. A falta de uma visão a longo prazo, que promova o diálogo e a integração regional, compromete qualquer tentativa de estabilização. Além disso, crises vizinhas, como a recente escalada de violência no Sudão, agravam ainda mais o cenário de segurança e dificultam a criação de um ambiente propício ao diálogo.

Em suma, a paz e estabilidade no Iémen — e, de forma mais ampla, no Médio Oriente — exigem uma abordagem integrada, que reconheça as interligações entre os diferentes conflitos regionais e aborde as suas causas históricas e sistémicas. Apenas através de uma visão estratégica, orientada para o longo prazo, será possível construir uma solução sustentável para esta região profundamente instável.

4. Como é que as iniciativas da Europa no Mar Vermelho estão alinhadas com as ações de outros atores internacionais, como os EUA e a ONU, na gestão desta crise?

A União Europeia tem investido fortemente em parcerias estratégicas para lidar com os desafios de segurança no Médio Oriente e na África. Estas parcerias, que envolvem uma variedade de atores, incluindo organizações regionais e internacionais, têm sido fundamentais para estabelecer canais de diálogo, negociação e cooperação. A colaboração com organizações como o Conselho de Cooperação do Golfo, a União Africana e as Nações Unidas é um exemplo de como a UE busca alinhar suas ações com as diretrizes internacionais, garantindo que suas operações respeitem os princípios do direito internacional, particularmente aqueles estabelecidos pela Carta das Nações Unidas.

Esse alinhamento é crucial, especialmente quando contrastado com a intervenção de outros atores, como os Estados Unidos. Embora os EUA frequentemente sejam vistos como agindo com base em interesses estratégicos próprios, a União Europeia tem conseguido preservar um “capital social” que lhe permite atuar de forma mais respeitosa e alinhada com os interesses das populações locais e das normas internacionais. A aproximação com as Nações Unidas tem permitido à UE não apenas contribuir para a estabilização da região, mas também facilitar a assistência humanitária, algo que foi seriamente afetado pelos conflitos no Iémen e nas áreas circundantes.

Um exemplo disso é a operação Aspides, da União Europeia, que, alinhada com a resolução 2722 do Conselho de Segurança da ONU, visa conter os ataques dos Huthis no Mar Vermelho, garantindo a liberdade de navegação e a segurança do comércio internacional. O uso da força pela UE está estritamente limitado à autodefesa, o que se diferencia da abordagem dos EUA, que implementaram a operação Prosperity Guardian e, posteriormente, Poseidon Archers, permitindo o uso de força preemptiva em territórios suspeitos. Esta diferença estratégica tem causado fricções, especialmente porque a abordagem mais agressiva dos EUA muitas vezes viola a soberania territorial dos Estados, algo que a União Europeia evita rigorosamente.

A divergência entre as abordagens europeia e americana criou uma tensão significativa, levando a maioria dos Estados-membros da UE a abandonar a colaboração com a operação americana. Países como os Países Baixos e a Dinamarca são exceções, mantendo-se aliados aos EUA devido a interesses nacionais específicos, como a proteção de suas marinhas mercantes. Ainda assim, a maior parte dos países europeus optou por apoiar a operação liderada pela UE, comprometida com a promoção da segurança internacional sem comprometer os princípios do direito internacional.

Esta distinção entre a União Europeia e os EUA reflete uma diferença fundamental de abordagem nas questões de segurança internacional: enquanto a UE privilegia uma intervenção baseada no respeito às normas internacionais e na autodefesa, os EUA adotam uma postura mais intervencionista, muitas vezes preemptiva, que pode agravar as tensões regionais.

5. Dado o papel vital do Mar Vermelho no comércio global, como a Europa pode construir uma estratégia abrangente que combine segurança, diplomacia e desenvolvimento para enfrentar as futuras crises?

A estratégia da União Europeia para garantir a segurança no Mar Vermelho, bem como em outras áreas de interesse global, vai muito além de uma simples intervenção naval. Embora as operações militares sejam uma parte essencial, é fundamental compreender que estas se articulam com uma dimensão diplomática robusta. As missões navais da UE, como a operação Áspide, não apenas asseguram a estabilidade no espaço marítimo, mas também desempenham um papel diplomático ao interagir com outros navios, promovendo a postura da União Europeia e capacitando outros atores para lidar com a situação local.

Ademais, a atuação da UE se estende através de suas parcerias estratégicas e envolvimento em fóruns internacionais, como as Nações Unidas. Através destes canais, a União Europeia não apenas segue as normas do direito internacional, mas também visa ser reconhecida como um ator relevante e confiável na construção da segurança internacional. A sua experiência na resolução de conflitos internos ao longo da história europeia serve como base para a sua contribuição em prol da estabilidade global.

Contudo, há áreas em que a UE ainda pode aprimorar sua atuação. Uma delas é o envolvimento de atores-chave na região, como a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos. Estes países, embora não se oponham diretamente às iniciativas da UE, têm sido cautelosos em se comprometer de forma mais ativa devido ao receio de retaliações por parte do Irã. Para que a gestão das tensões no Médio Oriente seja integrada e eficaz, é crucial que a União Europeia aprofunde seus esforços diplomáticos para garantir uma participação mais ativa destes países.

Outro desafio significativo é o conflito entre Israel e Palestina. A UE precisa reforçar sua defesa do direito internacional, exigindo um cessar-fogo imediato e, a longo prazo, a consagração do direito à autodeterminação do povo palestino. Sem a resolução dessas questões fundamentais, será difícil alcançar uma paz duradoura na região.

Do ponto de vista operacional, a UE está bem equipada, mas enfrenta limitações logísticas. A base da operação Áspide, situada na Grécia, apresenta desafios no que diz respeito ao reabastecimento e à manutenção de forças em situações prolongadas de conflito. Neste sentido, a UE pode aprender com a estratégia dos Estados Unidos, estabelecendo pontos de reabastecimento adicionais ou fortalecendo alianças que facilitem a logística em cenários de ataques prolongados.

Por fim, é necessário repensar a forma como a União Europeia contribui para o desenvolvimento global. A abordagem atual, que pode ser descrita como protecionista e neoliberal, perpetua assimetrias socioeconômicas em várias escalas — nacional, regional e global. Muitos dos conflitos armados são alimentados por estas desigualdades profundas. Portanto, é essencial adotar uma visão mais humanitária, cosmopolita e justa, focada na redistribuição equitativa de riqueza, de modo a atacar as causas estruturais dos conflitos e não apenas os seus sintomas.

Assim, ao adotar uma abordagem mais inclusiva e focada em soluções de longo prazo, a União Europeia poderá contribuir de maneira mais eficaz para a resolução das crises globais e para a promoção de um mundo mais estável e equilibrado.


24 de outubro de 2024

Janine Simão
EuroDefense Jovem Portugal


A Tertúlia

Poderá aceder a esta Tertúlia no seguinte link: https://open.spotify.com/episode/3J9cozQzyfh6ykvMuDFicp?si=jWpCffs1RKyVkhStetOz3Q

Referências

Conselho Europeu. “Segurança E Liberdade de Navegação No Mar Vermelho: Conselho Lança EUNAVFOR ASPIDES.” Consilium, 2024. https://www.consilium.europa.eu/pt/press/press-releases/2024/02/19/security-and-freedom-of-navigation-in-the-red-sea-council-launches-new-eu-defensive-operation/.

Dell’Anna, Alessio. “Guia Para Perceber a Crise No Mar Vermelho.” euronews, December 27, 2023. https://pt.euronews.com/2023/12/27/mar-vermelho-tudo-o-que-precisa-de-saber-sobre-a-crise-que-esta-a-por-em-perigo-o-comercio.

Jones, Mared Gwyn. “Porque é Que Há Divisão Na UE Sobre Operação Dos EUA Contra Houthis?” euronews. Euronews.com, January 2, 2024. https://pt.euronews.com/my-europe/2024/01/02/porque-e-que-ha-divisao-na-ue-sobre-operacao-dos-eua-contra-houthis.

“UE Lança a Missão Áspide Para Proteger Os Navios Do Mar Vermelho.” euronews. Euronews.com, February 19, 2024. https://pt.euronews.com/my-europe/2024/02/19/ue-lanca-a-missao-aspide-para-proteger-os-navios-do-mar-vermelho.


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