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Rússia e Turquia: uma relação que muito pode indicar

Ao observarmos estes países vemos desde logo a importância desta relação, nem que seja apenas devido ao legado histórico de ambos estados. Enquanto a Rússia dos nossos dias carrega o legado não só do império russo mas também da União Soviética que o sucedeu, a Turquia moderna surge da desintegração do império otomano na primeira metade do século XX.

 Ambos países carregam consigo a história de civilizações correspondentes aos impérios mencionados, que não só influenciaram os percursos históricos um do outro, mas também das civilizações que os rodeavam. Tal como os recorrentes conflitos militares demonstram, ambas civilizações (turca e eslava-ortodoxa) apresentam uma longa história baseada na competição pois a expansão da influência de uma, normalmente, resultava na diminuição da outra – um jogo de soma 0 que naturalmente influencia as ligações destas potências com entidades terceiras (as potências europeias por exemplo). A história representada na identidade dos povos russo e turco, só por si, demonstra a importância das relações entre ambos estados. Certamente, duas potências históricas  euroasiáticas.

Contudo, desde a queda da União Soviética em 1991 a Rússia e a Turquia demonstravam uma relação construtiva apoiada numa crescente integração económica.[1] Ainda assim, questões geopolíticas regionais estiveram sempre presentes, tal como a pertença da Turquia na NATO e o inicial apoio de lado contrários na Guerra Civil na Síria. Posto isto, quando, em 2015, as forças armadas turcas decidiram abater o jato de combate russo Sukhoi Su-24 nos arredores da fronteira turco-síria[2], assistimos a um episódio marcante na evolução da relação em análise. A reação russa assentou no aplicar de extremas sanções económicas e colocou em risco as ligações diplomáticas entre ambos estados e o subsequente pedido de desculpas por parte do Presidente Erdoğan marcou o início daquela que tem sido denominada como a reaproximação estratégica entre a Rússia e a Turquia.

Esta reaproximação apresenta, certamente, um carácter multifacetado quer seja do ponto de vista económico, diplomático e securitário, apresentando vários efeitos geopolíticos.

Neste contexto, a relação geoestratégica Turquia-Rússia pode ser analisada através de pilares de cooperação (economia política e necessidades diplomáticas, proximidade entre líderes) e de competição (cenários geopolíticos comuns).

As ligações económicas entre ambos países assentam no contexto de interdependência económica assimétrica. Em 2019, por um lado, a Rússia foi o segundo parceiro económico principal da Turquia (logo após a União Europeia). Por outro lado, a República Islâmica apresentava-se como o quinto agente mais importante para a economia russa. Enquanto se pode argumentar que tal desequilíbrio pode não ser o suficiente para justificar de forma clara uma situação de assimetria, deve-se manter em mente que o episódio do abatimento turco do jato de combate russo demonstrou a desigualdade referida – enquanto a Rússia conseguiu ainda vender o seu gás natural à Turquia, as exportações turcas à Rússia foram bloqueadas. Entre 2015 e 2016, tais exportações recuaram cerca de 48% enquanto o seu inverso demonstrou uma queda de apenas 26%. Tendo esta situação resultado no diminuir do PIB turco por cerca de 1%[3], o impacto das sanções pode ilustrar a dependência da economia turca em relação às exportações russas.[4] Vem isto sugerir que a necessidade do reparo das ligações económicas foi um fator significativo que levou o Presidente turco Erdogan a emitir o pedido de desculpas.[5]

Adicionalmente, um outro aspeto importante na economia política entre ambos estados reside na geoconomia dos recursos energéticos. Devido à sua localização estratégica, a Turquia ambiciona tornar-se num corredor de transporte energético entre a Ásia Central e a Europa, principalmente através de recursos como gás natural e petróleo. Adicionalmente, devido aos padrões de inimizade entre a Federação Russa e a República Popular da Ucrânia, nota-se o interesse comum em tirar partido da ambição turca referida. Sendo assim, mantendo em mente o facto de a Rússia ser o principal fornecedor de recursos energéticos à Turquia, estão presentes as principais motivações para a realização de projetos conjuntos como os oleodutos BlueStream e TurkStream. Enquanto a Rússia consegue não depender da Ucrânia para o transporte de recursos para o mercado europeu, a Turquia avança em direção a um dos seus objetivos estratégicos a longo prazo.

Do ponto de vista diplomático, além da histórica tensão entre a Rússia e várias entidades políticas ocidentais, percebe-se que a proximidade política entre a República Islâmica e essas mesmas entidades tem, do mesmo modo, apresentado sinais de desarmonia nos últimos anos. Enquanto a desilusão com o processo de adesão à União Europeia se faz sentir à flor da pele da liderança turca, o apoio americano a grupos armados Curdos no combate ao Estado Islâmico na Guerra Civil na Síria vem chocar com princípios vitais da cultura securitária do país, uma vez que são, os Curdos, entendidos como a principal ameaça ao território. Adicionalmente, o falhado golpe de estado de 2016 na Turquia, que levou ao asilo político de Fethullah Gulen em território americano, tem resultado no forte sentimento de ceticismo em relação ao gigante ocidental, uma vez que Gulen é, pelas autoridades turcas, acusado de ter orquestrado o episódio. Assim, a Turquia tem vindo a apresentar-se como um país isolado no palco internacional, e a reaproximação estratégica com a Rússia tem vindo a preencher um vazio diplomático.[6]

Da perspetiva da Federação Russa, melhores relações com Ankara contribuem para a projeção de poder e de influência não só na Síria mas também na própria região do Médio Oriente. Adicionalmente, mantendo em mente o contexto de divergência política entre a Turquia e as entidades ocidentais, o fortalecimento de relações por parte da liderança russa é também visto como uma forma de fomentar desacordos geopolíticos, principalmente no contexto da NATO devido ao seu aspeto militar – a compra so sistema russo de mísseis , o S-400, é amplamente interpretado até hoje como o culminar desta situação.

Por outras palavras, a reaproximação permite, do ponto de vista russo, a projeção de poder no espaço pós-soviético e o avanço na competição geopolítica com as potências ocidentais. Do ponto de vista turco, esta reaproximação demonstra a como a Turquia pode beneficiar da sua localização pivotal, exercendo pressão sobre as potências ocidentais e possibilitando uma maior margem de manobra diplomática.

Ainda assim, tanto historicamente como nos dias de hoje, a Turquia e a Rússia continuam a ser potências regionais com cenários geopolíticos comuns, onde os seus interesses podem colidir. Cenários como o equilíbrio de poder no Mar Negro, nas Guerras Civis na Síria e na Líbia, na Ucrania no Sul do Caucaso, ou mesmo na Ásia Central ex-soviética (devido às ligações culturais demonstradas através da Turcofonia), têm o potencial de aprofundar ou desagregar esta relação, dependendo da resolução e dos efeitos de cada um.

Contudo, um grande fator que sublinha a importância estratégica que ambas potências percepcionam de forma mútua é, certamente, a relação entre os seus líderes – Presidentes Vladimir Putin e Recep Tayyip Erdoğan. Esta ligação apresenta o potencial da gestão dos referidos cenários em direção ao proveito mútuo de ambas as lideranças. Serve de exemplo o cessar-fogo de 2020 sobre o conflito pelo Nagorno-Karabakh que conta com a participação das autoridades turcas, apesar de ter sido redigido apenas por diplomatas russos, arménios e azeris. Enquanto se pode argumentar que a forte ligação Turquia – Azerbaijão conseguiria salvaguardar os interesses turcos no conflito, percebe-se que a negociação do referido cessar-fogo foi em grande medida influenciada pelo apoio mútuo da conexão Putin – Erdoğan[7].

A crise do jato de combate resultou numa mudança do status quo na região, uma vez que, em última instância, demonstrou como as tensas relações com o ocidente podem gerar um novo eixo geopolítico, apesar das suas reservas. Tal como foi indicado pelo Ministro das Relações Exteriores da Rússia Sergey Lavrov, enquanto a Turquia nunca foi um aliado estratégico, esta “é uma parceria de natureza estratégica”[8].

Esta relação é certamente significativa para a segurança no continente europeu. A inclusão da Turquia na NATO em 1952 demonstra a importância estratégica que a República Islâmica tem para a formação e manutenção da ordem liberal, ainda que tal entendimento assente em aspetos meramente geopolíticos. Na reaproximação estratégica encontramos as consequências da decadência ocidental no palco internacional, encontramos a urgência espelhada na necessidade do consenso geral europeu sobre o significado prático de uma União Europeia mais geopolítica, e encontramos também um fator motivador para a necessidade de autonomia estratégica da Europa e para o desenvolvimento concreto de uma indústria de defesa comum. Olhando para a tendência histórica da prevalência de padrões de inimizade entre a rússia e as potências ocidentais, a volatilidade política inerente à República da Turquia, e a localização estratégica do país islamico, pode-se argumentar que a relação em análise não está isenta de influência sobre várias temáticas, principalmente nos contextos do cenários estratégicos que gravemente influenciam a vida no continente Europeu. Esta é uma relação que gera mais perguntas que respostas. Contudo, tanto as perguntas como as possíveis respostas são determinantes para o futuro do continente europeu.


29 de maio de 2021

Emmanuel Carneiro
Colaborador da EuroDefense Jovem-Portugal


Bibliografia

Ekinci, Didem. 2017. Turkish Foreign Policy. 1st ed. [Cham]: Palgrave Macmillan, Springer International Publishing AG, Switzerland.

“Foreign Minister Sergey Lavrov’S Interview With Radio Stations Sputnik, Komsomolskaya Pravda And Govorit Moskva, Moscow, October 14, 2020”. 2020. Mid.Ru. https://www.mid.ru/ru/press_service/minister_speeches/-/asset_publisher/7OvQR5KJWVmR/content/id/4381977?p_p_id=101_INSTANCE_7OvQR5KJWVmR&_101_INSTANCE_7OvQR5KJWVmR_languageId=en_GB.

“Putin And Erdogan Have Formed A Brotherhood Of Hard Power”. 2021. https://www.economist.com/europe/2021/02/23/putin-and-erdogan-have-formed-a-brotherhood-of-hard-power.

Russell, Martin. 2021. Russia–Turkey Relations: A Fine Line Between Competition And Cooperation. Ebook. https://www.europarl.europa.eu/RegData/etudes/BRIE/2021/679090/EPRS_BRI(2021)679090_EN.pdf.

“Russia And Turkey In The Black Sea And The South Caucasus”. 2018. Crisis Group. https://www.crisisgroup.org/europe-central-asia/western-europemediterranean/turkey/250-russia-and-turkey-black-sea-and-south-caucasus.

“Turkey’s Downing Of Russian Warplane – What We Know”. 2015. BBC News. https://www.bbc.com/news/world-middle-east-34912581.


[1] Ekinci, Didem. 2017. Turkish Foreign Policy. Página 151.

[2] BBC News. Turkey’s Downing Of Russian Warplane – What We Know. 2015.

[3] Russell, Martin. 2021. Russia–Turkey Relations: A Fine Line Between Competition And Cooperation. Páginas, 2-3.

[4] International Crisis Group. Russia And Turkey In The Black Sea And The South Caucasus. 2018.

[5] Russell, 2021. Russia–Turkey Relations. Página 3.

[6] Russell, 2021. Russia–Turkey Relations. Página 3.

[7] The Economist. Putin And Erdogan Have Formed A Brotherhood Of Hard Power. 2021.

[8] Mid.Ru. Foreign Minister Sergey Lavrov’S Interview With Radio Stations Sputnik, Komsomolskaya Pravda And Govorit Moskva. 2020.

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