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No dia 14 de dezembro, o Kosovo submeteu, num ato simbólico, a sua candidatura oficial a membro da União Europeia. Essa posição diplomática kosovar, foi um marco importante para aprofundar um contexto de crise social transfronteiriça que se vive entre o país em questão e a Sérvia (Al-Jazeera, 2022).

Numa altura em que o presidente sérvio, Aleksandar Vučić, convoca o Conselho de Segurança Nacional, a União Europeia e a NATO (na imagem da missão KFOR) instam todas as partes envolventes a criar condições de paz e, em primeiro lugar, tentar não reagir agressivamente a provocações e estabilizar a paz no terreno, a situação, no terreno, define-se especialmente pelos constantes protestos da população, etnicamente sérvia, e os bloqueios de estradas (Maishman e Gregory, 2022).

A isto ainda se soma um clima de instabilidade geopolítica regional, motivada, sobretudo, pelos sentimentos sérvios anti-UE e anti-NATO.

Ora, este conjunto de acontecimentos permite percecionar uma situação de ativação de uma corrente de hostilidades que pode levar a uma guerra aberta, havendo, neste sentido, receios de que uma nova guerra entre a Sérvia e o Kosovo possa acontecer, caso estas provocações comecem a intensificar. Existe uma fórmula específica que permite fazer a análise das possibilidades e o papel destas para podermos garantir que um confronto armado aconteça, ou não. Se acontecer, uma nova guerra num contexto europeu de muita insegurança e desafios poderá levar a uma crise muito mais profunda do projeto europeu e da própria estabilidade da Ordem Liberal Internacional.

Belgrado e Pristina: um complicado perfil de relações

Como é natural, para qualquer crise que acontece, sobretudo numa região de complexas dinâmicas transnacionais, como são os Balcãs, é necessário traçar um perfil histórico das relações entre o Kosovo e a Sérvia (Diário de Notícias, 2022).

Desde 2008, ano em que o Kosovo declarou independência da Sérvia, as relações entre Pristina (cidade capital do Kosovo) e Belgrado são tensas. Em primeiro lugar, porque a Sérvia não reconhece a independência do Kosovo, criando um clima diplomático muito complicado, entre os dois países (Diário de Notícias, 2022).

Historicamente, o Kosovo difere muito da Sérvia (a nível religioso e cultural e linguístico) sendo mais aproximado com a Albânia, grande rival dos sérvios. Por esse motivo, e aproveitando a queda da Jugoslávia de Josip Brosz Tito, e a consequente Guerra dos Balcãs, o Kosovo iniciou um processo de separatismo, criado e dinamizado por Hashim Thaçi, líder do ELK (Exército de Libertação do Kosovo).

Em 1998, a insurgência albano-kosovar foi abafada através de massacres dirigidos pelo presidente sérvio Slobodan Milosevic, que deslocou cerca de 800.000 pessoas, criando uma crise humanitária de grande escala.

Em março de 1999, a NATO faz uma campanha militar de bombardeamentos aéreos de Belgrado que obrigam o exército de Milosevic a sair da região. Através da resolução 1244 da ONU, Kosovo tornou-se num protetorado internacional. Desta forma, permitindo que a NATO mantivesse uma força militar no país, com cerca de 3500 militares, para garantir a sua segurança (KFOR).

Apesar dessa declaração não ter sido reconhecida, em termos legais, pela Constituição Sérvia, o Tribunal Internacional de Justiça. Assim, o país foi reconhecido por cerca de 109 Estados (em 2014): 107 membros da ONU, 23 membros da UE, 28 membros da NATO, 3 membros do CS da ONU (França, EUA e Reino Unido). Não sendo reconhecido por: China, Rússia, Sérvia, Brasil e outros.

A formulação do Estado Kosovar passou pelo reconhecimento do seu território e população, dos quais 90% são albaneses e os restantes 10% são sérvios. Essa minoria sérvia, localizada na região do norte do Kosovo, tem sempre mantido uma posição de não aceitação do projeto político kosovar.

Neste clima de indefinição diplomática, em Setembro de 2021, o Governo Kosovar adotou uma lei que proibia a emissão e utilização de matrículas sérvias em veículos registados no Kosovo. Essa lei incentivou uma onda de protestos, por parte da minoria sérvia.

De acordo com esta proibição, cerca de 6.300 sérvios do Kosovo que possuem viaturas com matrículas consideradas ilegais por Pristina deveriam ser notificados até 21 de novembro, e de seguida multados caso não cumprissem a norma exigida. Desta forma, as autoridades albanesas asseguraram que começariam a aplicar a partir daquela data uma multa de 150 euros pelo uso de matrículas sérvias, habituais entre a população sérvia do norte do território (Diário de Notícias, 2022).

Estas manifestações obrigaram o Governo de Pristina a recuar, mas não por muito tempo. Um dos pontos fundamentais que a comunidade sérvia anuncia é o não respeito, por parte de Pristina, do “Acordo de Estabilização e de Associação entre a União Europeia e o Kosovo” de 2015, especificamente, a questão da livre associação e autonomia dos municípios e dirigentes municipais representantes da população de minoria sérvia (Diário de Notícias, 2022).

Em julho de 2022 houve uma segunda tentativa que, sem sucesso, levou a uma terceira tentativa em agosto do mesmo ano. Nessa altura, já o Governo sérvio teria reagido negativamente à posição de Pristina, levando este caso a se tornar num problema internacional.

Para fazer face a esta situação, foi necessário o recurso à mediação, por parte da União Europeia, cujo resultado foi um acordo chegado em novembro de 2022.

Ora, através deste acordo, ambas as partes se comprometeram no seguinte: a Sérvia deixaria de emitir matrículas com nomes de cidades do Kosovo e o Kosovo, por sua vez, não iria iniciar o processo de obrigação legal para a transição das matrículas (Diário de Notícias, 2022).

Apesar de parecer ter a questão das matrículas resolvida, os protestos, por parte da minoria sérvia não terminaram, obrigando o Governo kosovar a reagir, reforçando o dispositivo policial presente na região (Diário de Notícias, 2022).

Não parecendo ser uma decisão controversa, esta de facto se tornou na chave para uma escalada de tensões diplomáticas com Belgrado.

Vejamos, a constituição kosovar, o “Acordo de Estabilização e de Associação entre a União Europeia e o Kosovo” de 2015 e o Acordo de Bruxelas de 2013, definem que a participação policial das Forças de Segurança do Kosovo deve seguir uma lógica de representatividade, para evitar confrontos com base étnica, assim, nas regiões de minoria sérvia, Mitrovica é o exemplo maior (trata-se da região com maior número de sérvios, no norte do país), a polícia deve ser composta por sérvios. Porém, uma onda de demissões na Polícia da região, deixou a região instável (Diário de Notícias, 2022).

Assim, em primeira instância, foram enviadas unidades policiais, representantes da KFOR, cujo mandato não permitia a entrada em confronto e a dispersão das manifestações, tornando-se, desta forma, numa missão de observação apenas.

Como os protestos não acalmavam, em Pristina foi tomada a decisão de se reforçar o dispositivo operacional, e unidades compostas por albaneses foram enviadas para o local, fazendo irromper, desta vez, protestos ainda maiores na região (como foi o caso do bloqueio das estradas que ligavam Mitrovica a Pristina), acompanhados por uma onda de protestos por toda a Sérvia, em apoio aos habitantes de Mitrovica, criando pressão sobre o Belgrado por uma reação imediata (Diário de Notícias, 2022).

Neste panorama, o presidente sérvio Aleksandar Vučić, após uma consulta com o Conselho Nacional de Segurança, fez um pedido oficial à KFOR para o envio de um contingente militar sérvio, composto por militares das Forças Armadas e de Segurança para intervir na região e estabilizar a situação. Este pedido, apesar de ter sido feito com base na Resolução 1244/1999 do Conselho de Segurança das Nações Unidas, cujo texto permite que um número anteriormente acordado de efetivos militares e policiais sérvios poderão entrar em território kosovar, no sentido de garantir a segurança da população sérvia, nas regiões onde esta se situa, foi deferido, pela KFOR (Maishman e Gregory, 2022).

Entretanto, a região de Mitrovica continua “desgovernada”, e as tensões entre os sérvios e os albaneses continuam a aumentar.

Outro fator que torna esta situação mais complicada de se resolver, é a Guerra na Ucrânia. Desde que a guerra começou, os sentimentos anti-NATO, pró-russos e pró-jugoslavos foram aumentando, dando cada vez mais projeção aos setores mais conservadores e ultranacionalistas, na Sérvia, o que começou a fazer cada vez mais pressão sobre o Governo sérvio, sobretudo Aleksandar Vučić, também nacionalista, para uma resposta robusta e concreta à situação kosovar. Esta pressão interna, possivelmente também alimentada pela própria Rússia, pode ser um dos principais entraves à resolução desta crise (TLDR News EU, 2022).

Quais são os riscos de uma nova guerra?

Atendendo ao complexo ambiente em que está a crise diplomática entre o Kosovo e a Sérvia, pode-se falar da possibilidade da guerra. Caso se torne numa realidade, uma nova guerra nos Balcãs irá criar um caos político, numa região cuja paz está a ser mantida a todo o custo pela União Europeia e a NATO. A acontecer, a diplomacia securitária da União Europeia será questionada e terá repercussões em todo o processo de integração europeu, podendo, não só atrasá-lo, mas, em primeiro lugar, colocá-lo numa crise de identidade.

Os aspetos teóricos que nos permitem tratar esta situação, ou seja, o risco latente de uma guerra acontecer, estão presentes na estrutura fundamental do Poder Global.

A ideia da Globalização, tal como Kaldor (2012) defende, está fortemente conectada a três formulações sociais, políticas e económicas, nas quais se constatam as culturas sociais, a esfera económica, e internacionalização da governança.

No que toca à questão social, postulada através das culturas, Kaldor (2013) aponta para uma dupla evolução cultural. Na sua primeira fase, havia uma difusão dupla de cultura, a «high culture», consolidada na religião, e as «low cultures», trespassadas de forma oral, formulando a ideia de «Culturas Horizontais». No entanto, esta divisão foi quebrada com o surgimento de uma «Cultura Vertical», fruto de uma nova geração de intelectuais, que espalhavam a sua ideia em jornais e peças de literatura secular. Porém, com a globalização, a formulação verticalizada da cultura foi contestada, criando uma cultura transnacional, que se espalha pelas Culturas de Massa (Kaldor, 201: 71-72). No entanto, como critica Kaldor (2012), o surgimento desta classe transnacional acaba sempre por excluir uma grande parte da população, a que não tem acesso às «Culturas de Massa», e isso é pretexto para haver divergências.

Desta forma, a manutenção das «Culturas de Massa» influencia a esfera económica, que, fruto do processo de globalização, mudou o paradigma técnico-económico no qual a ordem de produção e de distribuição são influenciadas pela procura internacional. Desta forma, há uma estandardização dos produtos, criando economias de escala, que nem sempre respeitam a diferenciação relativa ao local (Kaldor, 2012: 72).

Por fim, conectado à internacionalização da governança está o facto, de que, com a globalização, surgiu uma reforçada cooperação entre os diferentes departamentos governativos dos Estados, o que foi fortalecido pelo crescimento de atores transnacionais informais, as ONG’s (Organizações Não-Governamentais). Estas não tem grande poder sobre o Estado, no entanto, conseguem agir num domínio transnacional, onde alguns Estados apresentam dificuldades (Kaldor, 2012: 73).

Consequentemente à Globalização, está a enunciação de Políticas Identitárias, que, conforme definidas por Kaldor (2012) tendem a ser exclusivas e “fragmentativas”. Isto acontece, porque são geradas minorias, o que envolve discriminação, ou até o expulso da população. Esta estrutura evolui consoante o processo de desintegração de Estados outrora autoritários.

Uma guerra que surge de um panorama de Políticas Identitárias, que incendeiam as minorias a rejeitar políticas nacionais, tem um contexto destrutivo estrutural, porque são conflitos globalizados, e envolvem Estados descentralizados ou, até mesmo, fragmentados. Por sua vez, esta fragmentação deve-se a dois importantes fatores, de acordo com Kaldor (2012).

Por um lado, uma conjugação de atores privados e estatais, e mistos até, leva à ascensão de uma multiplicidade de atores, difíceis de controlar e, por isso mesmo, é impossibilidade de garantir a sua convergência.

Por sua vez, e já relacionado com a multiplicidade de atores num conflito, estão os padrões de combate, praticados pelos mesmos. As táticas de combate atuais, são fortemente influenciadas pelas guerras de guerrilha e da insurgência, beneficiando o controlo político do inimigo em vez do territorial (Kaldor, 2012: 96 e 97).

Algo concreto que se pode concluir, é o grau de destruição estrutural que uma guerra na região pode causar, não só por causa dos fatores teóricos de uma guerra baseada em sentimentos étnicos, mas também, associado a um contexto global da Guerra na Ucrânia. Por outras palavras, o ressurgimento de uma paz duradoura, será um processo de grande dificuldade. Sobretudo, apontando que haverá uma multiplicidade de atores externos, de entre os quais, se destaca a Rússia, cuja postura de agressividade face à NATO e à UE, procurará explorar este possível conflito.

Como evitar a guerra?

Há, no estudo da Estratégia e das Ciências Militares, um conceito que procura explicar as opções existentes de cada um dos atores participantes de um jogo. Trata-se da Teoria do Jogo.

Ora, este conjunto de teoremas, aplicados à área em questão, tentam explicar e/ou encontrar as melhores decisões que podem ser tomadas, num cenário (ou jogo) em que o resultado das decisões de um, depende diretamente das decisões que o outro ator for tomando à medida que o cenário se desenrola. Uma guerra, e, sobretudo, os passos que a antecedem, são os casos de estudo mais impactantes para esta área (Baliga e Sjöström, 2012).

A Teoria do Jogo tem no seu âmbito o conceito da “Armadilha de Hobbes”, cuja premissa base se prende à presença de uma corrente de medo entre duas fações, que leva uma delas a lançar um ataque preventivo sobre a outra, evitando ser atacada.

Devido à natureza conflituosa entre as duas partes, e temendo o perigo iminente de guerra, ambas as partes vão procurar camuflar os seus verdadeiros objetivos, acudindo ao incentivo natural de enganar o seu potencial adversário (Baliga e Sjöström, 2012).

Porém, para evitar que esta sequência aconteça, e desmantele a própria credibilidade do constante contacto diplomático, o papel da União Europeia deve ser central, não só como moderador, mas também, e principalmente, enquanto um ater definidor da agenda diplomática e das “regras do jogo”, mantendo-as adequadas às duas partes e ao contexto no terreno. Através desta estratégia, poder-se-á garantir que Belgrado e Pristina mantenham um constante canal aberto e, desta forma, não possam contemplar a guerra como uma possibilidade, sequer teórica, de poder resolver os seus problemas.


16 de janeiro de 2023

Vitaliy Venislavskyy
EuroDefense Jovem Portugal


Bibliografia

Al Jazeera. (2022) “Kosovo Officially Applies for EU Membership in Symbolic Act.” www.aljazeera.com, 14 Dec. 2022, www.aljazeera.com/news/2022/12/14/kosovo-officially-applies-for-eu-membership-in-symbolic-act. Accessed 21 Dec. 2022.

Baliga, S., & Sjöström, T. (2012). The Hobbesian Trap in The Oxford Handbook of the Economics of Peace and Conflict.

Baliga, Sandeep, and Tomas Sjöström, (2012) “The Hobbesian Trap”, in Michelle R. Garfinkel, and Stergios Skaperdas (eds), The Oxford Handbook of the Economics of Peace and Conflict, Oxford Handbooks (2012; online edn, Oxford Academic, 21 Nov. 2012).

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Diário de Notícias. (2022) “Sérvia Receia Que Situação No Kosovo Esteja ″à Beira de Um Conflito Armado″.” www.dn.pt, 19 Dec. 2022, www.dn.pt/internacional/servia-receia-que-situacao-no-kosovo-esteja-a-beira-de-um-conflito-armado-15514475.html. Accessed 21 Dec. 2022.

Kaldor, Mary (2012), New & Old Wars: Organized Violence in a Global Era, Polity Press.

Maishman, Elsa, and James Gregory. (2022) “Serbian Leader Holds Security Talks over Kosovo Unrest.” BBC News, 11 Dec. 2022, www.bbc.com/news/world-europe-63936840. Accessed 21 Dec. 2022.

TLDR News EU. (2022) “Violence in Kosovo: Will Serbia Send in the Army?” www.youtube.com, 15 Dec. 2022, www.youtube.com/watch?v=HX1zBD9c7fM. Accessed 22 Dec. 2022.


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