Major-general Agostinho Costa diz que já estamos numa 3ª Guerra Mundial
Quanto mais o conflito na Ucrânia se prolongar no tempo, mais desgastadas ficarão as cúpulas políticas e militares russas, abrindo caminho a uma eventual mudança de regime em Moscovo. A opinião é de Agostinho Costa, especialista em operações militares, que defende ainda que “se os russos perderem a Crimeia” os dias de Putin no Kremlin estarão contados. O vice-presidente da EuroDefense-Portugal recusa ainda o regresso do Serviço Militar Obrigatório, mas mostra-se partidário de um exército comum europeu.
Levamos quase três meses de guerra na Ucrânia. A inesperada resistência ucraniana deve-se, em grande parte, ao apoio militar do Ocidente (armas, imagens satélites e formação militar) ou a Rússia tem cometido erros estratégicos?
Penso que houve uma avaliação do número de forças empenhadas nesta operação que ficou aquém do que seria necessário. Na segunda Guerra do Golfo aconteceu uma situação semelhante, mas que, apesar de tudo, não teve o mesmo impacto, porque o Estado Maior americano teria muito mais forças militares. Os russos não estariam a contar com o apoio e preparação que o Reino Unido e os Estados Unidos, em grande medida, e também o Canadá, deram às forças armadas da Ucrânia nos últimos oito anos. Ou seja, o exército que os russos estão a enfrentar agora não tem nada que ver com o de 2014.
Mas admite que houve excesso de confiança por parte de Moscovo?
Sim. O efeito surpresa na primeira semana de guerra permitiu que os russos tivessem importantes ganhos territoriais. Mas depois a sua progressão foi, de alguma forma, contida. Relativamente a Kiev, não faço a leitura que o objetivo seria conquistar a capital do país ou decapitar o poder político. É preciso não esquecer que Zelensky foi colocado no poder com o apoio dos russos. A manobra em Kiev era, fundamentalmente, para fixação de forças, o mesmo se passou relativamente a Odessa. O grande objetivo sempre foi Kherson, devido à necessidade de abastecimento de água à Península da Crimeia e, naturalmente, o Donbas.
Uma operação militar desta envergadura é pensada e planificada a que distância temporal?
Com uma grande antecedência. Pelo menos, desde 2014, quando se deu a tomada da Crimeia. Sabe-se que, nessa altura, o Estado Maior russo já queria fazer esta operação, mas o presidente Putin limitou a intervenção à Crimeia. A primeira fase da coação russa, antes de passar à ação direta e estratégica, é a demonstração. E foi isso que fizeram quando posicionaram forças em torno do território ucraniano. Henry Kissinger diz – com alguma razão – que a Rússia sem a Ucrânia é um país asiático. Mas nem toda a Crimeia interessa aos russos. Aliás, parte daquele território é uma dor de cabeça para eles.
A diretora da CIA admitiu, recentemente, que esta seria uma guerra de longa duração. Qual é a sua expetativa?
É a mesma da senhora Avril Haines. O que a diretora da CIA afirma vai ao encontro dos objetivos dos Estados Unidos para esta operação.
O que quer dizer com isso?
Na minha interpretação, o objetivo político dos Estados Unidos é, fundamentalmente, desgastar o potencial dos russos, para que eles, num futuro próximo, não entrem numa aventura militar igual a esta. E passa, também, por isolar os russos do resto do mundo. Por outras palavras, o secretário de Estado norte-americano Antony Blinken já disse algo parecido. Em última instância, o objetivo político dos americanos é a mudança de regime russo. E essa mudança só será possível se o conflito se prolongar no tempo, desgastando as cúpulas políticas e militares.
A ignição para esta guerra foi a nostalgia do império?
Há uma nostalgia do império soviético e uma tentativa de o reconstruir por outras linhas. Putin disse que o fim da União Soviética «foi a maior tragédia geopolítica do século». O presidente russo não é comunista, é um nacionalista. Os russos querem afirmar-se como uma potência estratégica global, apesar de terem debilidades do ponto de vista económico. Enquanto isso, assistimos a uma disputa hegemónica entre o bloco ocidental (Estados Unidos) e a China, um país em ascensão. E o espaço de confrontação entre estes dois blocos é a Europa.
Mas os russos ambicionam alargar o seu território?
O problema da Ucrânia é a base de Sebastopol, localizada na Crimeia. O impulso russo para a Ucrânia é esse, para assegurar o acesso ao Mar Negro e ao Mediterrâneo. Terreno já têm os russos para dar e vender. Há uns séculos até venderam o Alasca aos americanos. O Donbas, no fundo, é o corredor para a Crimeia, e Kherson, como aqui já expliquei, é fulcral por causa da água. O ocidente interessa pouco. Na parte ocidental da Ucrânia aquela gente é polaca! Foi por isso que os portugueses mandaram para lá a imagem de Nossa Senhora de Fátima.
A ameaça nuclear do presidente Putin e do ministro dos Negócios Estrangeiros, Lavrov é para levar a sério?
Foi um “bluff” no momento em que a ameaça foi feita. Os russos têm três patamares de coação estratégica: a demonstração de guerra híbrida (quando dispuseram as forças militares em volta da Ucrânia, ao mesmo tempo que usavam a propaganda e lançavam ciberataques); o emprego da força, que se traduz numa guerra aberta em conflito local. Na doutrina deste patamar não há guerra nuclear. O nível seguinte acontece se a NATO entrar no conflito. Emergem as guerras nucleares táticas em objetivos militares. O patamar seguinte é o da guerra total, com o uso de armas intercontinentais. Neste caso, os Estados Unidos já estariam envolvidos. Finalmente, temos ainda a fase da retaliação, em que se dá a resposta ao ataque do ocidente. Em suma, se a guerra passar para fora da Ucrânia, passamos para outro patamar. Não é por isso de estranhar que os americanos tratem este conflito com pinças, para o circunscrever ao território ucraniano.
Se o conflito alastrar para outros territórios será o prelúdio de uma Terceira Guerra Mundial?
Nós já estamos numa Terceira Guerra Mundial. Nos vários níveis de emprego da conflitualidade e ação estratégica estamos em guerra declarada no plano económico, no plano diplomático e no plano comunicacional. No plano militar há um apoio declarado do ocidente aos ucranianos. Só não estamos é a combater no terreno.
Nas suas intervenções no espaço mediático, destaca sempre aquilo a que chama «a guerra das perceções», ao nível da propaganda e da contrainformação. Antes de ser presidente, Zelensky foi ator e tem grande experiência de televisão, fazendo mensagens diárias. Quem tem levado a melhor na guerra da comunicação?
A guerra decide-se cada vez mais na comunicação e, particularmente, na forma de comunicar. A guerra mudou e a maioria dos militares não percebeu que a guerra mudou. Já não é a comunicação que segue a manobra militar, mas a manobra militar é que segue a comunicação. Estamos numa guerra híbrida, que é, fundamentalmente, dirigida paras as vontades e para conquistar a guerra das perceções. Veja o caso da resistência de Azovstal, que só se mantém por causa da problemática das perceções e pela campanha e narrativa informacional, uma vez que não tem qualquer valor militar. Outro caso: o presidente da Câmara de Mariupol continua a intitular-se como tal, quando esta localidade já é dominada pelos russos há cerca de um mês.
Nesta lógica de narrativas mais ou menos fabricadas, o facto de Zelensky falar e aparecer todos os dias é um trunfo?
O presidente ucraniano tem uma máquina enorme de comunicação e pode-se dizer que a Ucrânia está a ganhar esta guerra.
A indumentária militar de cor verde que o presidente ucraniano veste tornou-se uma referência…
Os pormenores fazem toda a diferença. Até os dirigentes políticos que visitam Kiev para se encontrarem com Zelenksy já prescindem do fato e da gravata. O presidente ucraniano está a ser, certamente, muito bem assessorado pelos britânicos, que são exímios nesta matéria. O capital de simpatia em relação aos ucranianos é de tal forma, que até ganharam o Festival da Eurovisão, graças ao voto popular. E não é por acaso que há a perceção mais ou menos generalizada de que os russos estão a perder esta guerra. Na verdade, não é bem assim, mas a perceção é essa.
Já disse que se Putin for humilhado, o regime de Moscovo cai. O que é ser «humilhado»?
Uma humilhação é perder esta guerra. Se os russos perderem a Crimeia é o fim do regime de Putin. Esta é uma guerra total para os ucranianos, porque está em jogo o seu Estado e o seu país. Para os russos esta é uma guerra local. Putin dorme todos os dias na sua cama do Kremlin e come as refeições sempre à mesma hora. O mesmo não se passa na Ucrânia.
Mas a informação na Rússia é controlada, para deixar a opinião pública na ignorância…
Por culpa nossa. De uma forma ingénua, a União Europeia fechou dois canais de propaganda russos, mas que praticamente ninguém via, no caso, a Russia Today (RT) e a Sputnik, e demos aos russos a oportunidade de encerrarem a Sky News, a Euronews, a CNN Internacional, etc. Neste momento, a população russa só vê o que Putin quer.
Foi observador militar da ONU durante o conflito da ex-Jugoslávia, em 1992/93. Se se prolongar no tempo, poderemos ter igual ou maior número de fatalidades (100 mil mortos) e destruição do que o conflito nos Balcãs, há 30 anos?
É uma possibilidade. Tanto o conflito na Ucrânia como o dos Balcãs têm raízes muito semelhantes. A Ucrânia é um país imenso, mas há zonas que já sofreram uma grande destruição. Quando vejo imagens de Mariupol faz-me lembrar aquilo que assisti em Vukovar, na ex-Jugoslávia. Parecia Berlim destruída no final de 1945. Tudo arrasado. Esta batalha vai demorar ainda algum tempo. E as operações militares russas podem prosseguir para Odessa e, talvez, para a Transnístria, no sentido de fazerem pressão sobre a Moldávia.
Como é que vê o futuro do território ucraniano quando os russos derem por terminadas as operações militares?
Pode ser uma situação idêntica à de Chipre, em que a parte norte do território está ocupada pelos turcos e a parte sul é a parcela cipriota-grega que integra a União Europeia. Faz de conta que é um único país, mas na verdade, são dois. Caminhamos para isso.
A propósito da guerra, nas últimas semanas voltou à liça o tema do Serviço Militar Obrigatório (SMO), que acabou no nosso país em 2004. Perante a falta de efetivos nas Forças Armadas, acha que se devia repensar o regresso do SMO, ainda para mais quando se fala cada vez mais do exército comum europeu?
A guerra é um assunto demasiado sério e demasiado complexo para ser entregue a amadores. Os conflitos são cada vez mais assentes na sofisticação tecnológica. A Ucrânia não tem força aérea, mas usa “drones” de forma intensiva. No início da guerra, quando Putin soube que havia militares recrutados no SMO russo zangou-se e exigiu a presença de profissionais. Isto para dizer que o SMO pode funcionar numa perspetiva de defesa territorial. Se o país tiver, diretamente, uma ameaça ao território, então deve-se chamar a população às armas. Agora, não posso concordar que se obrigue um cidadão a frequentar durante meses ou um ano o SMO. Isso seria andar em contraciclo e não perceber os ventos da História. Contudo, entendo que se deve repensar todo o modelo de segurança (salvaguarda dos interesses nacionais além-fronteiras) e de defesa (no interior das nossas fronteiras). A segurança e a defesa devem ser vistas numa perspetiva europeia. Neste momento, a NATO é mais um fórum político, do que uma aliança militar. E a Europa é um anão estratégico. Esses interesses são definidos por Londres e Washington, quando deviam ser definidos por Bruxelas.
Faz então sentido um exército comum europeu?
Sim. Tenho a certeza que um território vasto como é a União Europeia, com cerca de 450 milhões de habitantes, consegue confortavelmente ter 500 mil militares profissionais nas suas fileiras. E isso não implicaria extinguir as Forças Armadas portuguesas, que continuariam a existir para a defesa dos nossos interesses próprios. Cada vez mais a política comunitária prevalece sobre a política nacional. Veja o caso mais recente da lei dos metadados, que partiu de uma decisão do tribunal europeu.
É vice-presidente da direção da EuroDefense-Portugal, criada em 1998. Quais são as suas principais atribuições?
A EuroDefense-Portugal é um “think tank” (centro de estudos), uma organização não-governamental criada mediante um protocolo de cooperação estabelecido entre o Instituto da Defesa Nacional e a Associação Industrial Portuguesa. Em 19 de outubro de 2015 adquiriu o estatuto de pessoa coletiva de direito privado sem fins lucrativos, com a designação de “Associação de Estudos de Segurança e Defesa Europeia EuroDefense-Portugal”. É composta por voluntários que empregam o seu tempo no debate e discussão das questões da segurança e defesa. Apoiar e desenvolver uma cultura de segurança e defesa no nosso país, numa perspetiva europeísta, é o seu principal propósito. O atual presidente é Figueiredo Lopes, antigo ministro da Administração Interna.
Qual o papel da EuroDefense jovem?
A nossa EuroDefense Jovem é a mais dinâmica internacionalmente. É um espaço de encontro, convívio e aprendizagem, que tem cerca de 250 membros, a maioria na faixa etária dos 20/30 anos. Procura manter uma relação de proximidade com várias universidades e politécnicos de Portugal e do estrangeiro. Pretendemos, também, ter polos da EuroDefense Jovem em várias universidades. O objetivo central passa por sensibilizar a população jovem para os assuntos da segurança e defesa europeia e desenvolver um pensamento estratégico na nossa juventude, porque estes jovens serão os pensadores e os líderes do amanhã.
Cara da Notícia
Testemunha da Guerra dos Balcãs
Agostinho Costa tornou-se um rosto conhecido dos portugueses, quando passou a aparecer no espaço mediático para comentar a guerra na Ucrânia. É comentador habitual na CNN Portugal.
Ingressou na Academia Militar em 1977, tendo concluído a licenciatura em Ciências Militares, em outubro de 1982. É oriundo da Arma de Infantaria, tendo sido promovido ao atual posto em fevereiro de 2010. É mestre em Relações Internacionais pela Universidade Lusíada de Lisboa, tendo apresentado uma dissertação subordinada ao tema “Os Sérvios e a estabilidade dos Balcãs”.
Ao longo da sua carreira desempenhou várias funções em território nacional e no estrangeiro: foi observador militar da ONU durante o conflito da ex-Jugoslávia; Oficial de Operações do Estado-Maior da 3.ª Divisão Italiana/Allied Rapid Reaction Corps, em Itália; Chefe da repartição de operações do Estado-Maior da Brigada Multinacional Oeste, imediatamente após o conflito do Kosovo; como Oficial General foi Chefe do Estado-Maior da European Rapid Operational Force (EUROFOR), em Itália.
Em território nacional, com o posto de Coronel, comandou a Escola de Tropas Paraquedistas e chefiou o Gabinete de Planeamento e Programação do Instituto de Estudos Superiores Militares (atual IUM). Na Guarda Nacional Republicana, como Oficial General, desempenhou as funções de Comandante da Escola da Guarda, Comandante do Comando da Doutrina e Formação, Comandante do Comando Operacional e Segundo Comandante-Geral.
25 de maio de 2022
Agostinho Costa
Vice-Presidente da Direção
Entrevista publicada em 23 de maio de 2022 no site do revista Ensino Magazine, incluída na edição de maio de 2022: