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Texto redigido em 07.06.2020 para publicação na Revista Segurança e Defesa, enquadrado na análise da resposta à crise pandémica COVID-19.

1. Preâmbulo

Portugal a Europa e o mundo, enfrentam uma situação de emergência sanitária sem precedentes no tempo de vida da atual geração de decisores políticos, a quem cabe promover as medidas necessárias para mitigar os riscos, minimizar os danos e fortalecer a resiliência das sociedades de modo a que uma crise sanitária não assuma proporções alarmantes nos planos económico, social e de segurança. Não obstante os efeitos do vírus SARS-CoV2 se façam sentir em todos estes domínios, importa, no entanto, manter o seu impacto em patamares mínimos, especialmente no tocante à perda de vidas e ao regular funcionamento do sistema nacional de saúde (SNS).

A etimologia da palavra crise faz alusão a um “momento de decisão, de mudança súbita” como se se estivesse perante uma encruzilhada. Tem origem nos domínios da medicina, relativamente à evolução de uma doença em que crise representa um momento decisivo para a cura ou para a morte[1]. O conceito de crise generalizou-se a todos os campos, com particular enfoque para os da economia e da segurança.

Neste último, insere-se no espectro das operações ocupando uma posição intermédia entre as situações de paz e de conflito. O conceito de gestão de crises vulgarizou-se nos léxicos securitário e das relações internacionais. A título de exemplo, a Estratégia Global da União Europeia de 2016, refere logo no seu início “We live in times of existential crisis, within and beyond the European Union.” Por seu turno, o Conceito Estratégico de Defesa Nacional faz reiteradas alusões à situação de crise económica e financeira internacional que marcou as circunstâncias da sua elaboração e aprovação em 2013, tendo em conta que se estava então em plena crise das dívidas soberanas despoletada pelo colapso do banco Lehman Brothers e pela implosão do subprime, em 2008.

De então para cá, a UE confrontou-se com crises de outra natureza, mas não menos importantes e marcantes, como a do terrorismo de matriz jihadista que teve o seu ponto inicial no ataque ao jornal Charlie Hebdo, ocorrido em 7 de janeiro de 2015 em Paris e nos que se lhe seguiram um pouco por toda a Europa, criando uma situação de comoção e alarme social generalizados, obrigando a um esforço internacional coordenado para a sua prevenção no plano interno e o combate logo a partir da fonte. Com a queda dos últimos bastiões do Daesh na região da Síria e do Iraque, em particular depois da tomada da sua capital (Raqqa) em 2017, não obstante persistam em diversas áreas geográficas células e santuários do autodesignado estado islâmico, a sua capacidade para conduzir ações diretas contra o que designa por “inimigo distante” ficou seriamente reduzida.

No período entre a crise económica do subprime e a crise pandémica do Covid-19 foi igualmente patente a crise dos refugiados/migrantes, emergindo praticamente em simultâneo com a do terrorismo jihadista e, em certa medida, como efeito de segunda ordem da instabilidade política e social vivida na margem Sul do Mediterrâneo, na sequência das designadas “primaveras árabes”. A crise dos refugiados da Síria, a partir de 2015, exponenciou as pressões migratórias que já eram patentes em consequência da explosão demográfica no Sul global, da depredação das condições ambientais e dos conflitos larvares que se arrastam em áreas geográficas como o Sahel, a região dos grandes lagos e o Próximo-Oriente.

Todas requereram processos de decisão e gestão de crises, tendo como protagonistas os Estados que estiveram no “olho do furacão” em cada uma delas. Apresentaram um caráter assimétrico que acarretou medidas de ordem política e operacional no sentido da sua resolução e minimização dos seus impactos. Ficaram bem impressas na memória dos cidadãos os efeitos dos bailouts em Portugal e na Grécia, as medidas de exceção no quadro do contraterrorismo decretadas em França, no Reino Unido e na Bélgica e a saga da revisão do regulamento de Dublin sobre as regras de asilo na EU, que se revelaram desadequadas para fazer face à pressão migratória sobre a sua fronteira externa.

No seu conjunto estas crises adensaram a polarização entre os Estados do Norte e do Sul, do Leste e do Oeste da União Europeia e poderá dizer-se que terão sido um catalisador para a primeira baixa na sua estrutura – o Brexit. Acresce um aspeto comum em todas estas crises, que é o facto de as suas causas não terem sido completamente eliminadas, não se podendo colocar de parte a possibilidade de recidivas. No caso da atual pandemia Covid-19, algumas análises prognosticam mesmo uma segunda vaga no próximo outono.

No entanto, esta crise apresenta um aspeto diferenciador em relação às anteriores. Dado o seu caráter simétrico atingir de forma indiferenciada os vários Estados, colocando-os assim em circunstâncias semelhantes perante os seus efeitos, permite pouco espaço para narrativas moralizantes, por regra inquinadas por preconceitos de superioridade, por vezes acrescidas mesmo de laivos de alguma crueldade. Como é frequentemente referido, o vírus SARS-CoV2 apresenta um comportamento democrático não diferenciando o universo de propagação.

A par destas crises de âmbito global merece também realce o facto de o nosso país em particular e a região do Sul da Europa em geral, serem regularmente flageladas por grandes incêndios rurais com consequências dramáticas. Os de 2017, com um trágico balanço tanto em número de vítimas mortais (pelo menos 116 no somatório do fogo de Pedrógão Grande e dos incêndios de outubro na região Centro), como pelos extensos danos patrimoniais e ambientais que lhes estiveram associados. foram o epílogo de um conjunto de circunstâncias meteorológicas que exponenciam os fatores de risco para a ocorrência de fenómenos extremos desta natureza.

A conjugação explosiva das condições do clima, ordenamento do território, tipo de exploração florestal e de alguns comportamentos sociais, colocam o nosso país numa situação de risco agravado em cada período estival, exponenciado por períodos de menor pluviosidade e também por uma localização geográfica especialmente vulnerável aos fenómenos associados às alterações climáticas.

2. Impacto da Crise do Covid-19 no Ambiente de Segurança

Em jeito de balanço dos impactos da pandemia do Covid-19 e das repercussões que poderá ter nos diferentes níveis e setores da sociedade, ainda que pareça estar longe do seu fim, equaciona-se de seguida em que medida esta crise poderá afetar o ambiente de segurança e quem poderá estar a capitalizar vantagens da sua gestão.

No plano geopolítico a China parece surgir como o grande ganhador, preenchendo o vazio de liderança internacional deixado por outros atores convertidos à lógica soberanista, reforçando a afirmação do eixo oriental do espaço euroasiático para onde o centro de gravidade global se tem vindo a deslocar. Salvaguardadas as especificidades do país, é inegável que o modelo de atuação da China a par da solidariedade e eficácia demonstradas no suprimento de material sanitário à escala global, conferiram-lhe um acréscimo de soft power. A iniciativa one belt one road passou a ter também uma dimensão sanitária.

As palavras de Adelino Maltez de que a soberania se vê na contingência, mais do nunca parecem fazer sentido para uma União Europeia submersa em querelas sobre as modalidades para a recuperação económica da crise e com um registo pouco abonatório no plano da solidariedade demonstrada para com os Estados mais afetados pela pandemia. Será fatal para uma EU, que está na primeira linha da gestão de crises no quadro internacional, se não for capaz de encontrar um consenso para ultrapassar os resquícios de uma crise sanitária no interior do espaço comunitário.

Perante o apagamento do Conselho de Segurança das Nações Unidas, a inoperância do G20 e a ausência de outas organizações multilaterais de quem seria expectável alguma intervenção, o Estado-nação volta a afirmar-se como o centro do poder e a instância efetiva de recurso em situação de crise. É expressivo os arautos do “menos Estado – melhor Estado”, que se têm empenhado em esvaziá-lo e desmantelá-lo, fazerem agora parte do coro dos que exigem uma maior intervenção central.

Se a crise do multilateralismo era já um dado assente, como efeito emergente do novo período de competição estratégica entre potências assente na lógica do “America First” da administração Trump, a retirada do apoio dos EUA à OMS em plena crise pandémica, é o epílogo da mudança estratégica dos EUA no sentido da abdicação do seu papel de liderança internacional. Contrasta com a lucidez do Papa Francisco no apelo à solidariedade universal, por via do cessar-fogo e levantamento das sansões impostas a países martirizados por guerras, demonstrando que nas relações internacionais ainda existe espaço para a ética e valores.

Sobre o grau de mudança que a crise do SARS-CoV2 poderá impor no plano soceital, o espectro para especulação é amplo, desde as perspetivas de um total retorno à normalidade até aos prognósticos de um mundo novo. Salvaguardadas as especificidades desta crise, o contexto atual ter-nos-á dado uma imagem sobre um futuro que equacionávamos apenas possível no plano de utopia, com: mais tempo livre; consumo restrito ao essencial; rendimento universal garantido; transportes públicos gratuitos; menos acidentes rodoviários; menor criminalidade; melhor ambiente.

Mas mais do que equacionar cenários, fará sentido analisar tendências e identificar os paradigmas que poderão resultar abalados da atual conjuntura. Enumeram-se de seguida alguns, sem a preocupação de os elencar por ordem de importância ou probabilidade:

  • A resposta à pandemia de Covid-19 é um teste à capacidade de a comunidade internacional encontrar respostas para os desafios globais, para além de uma prova à credibilidade das organizações multilaterais. Permite antever a reação às crises que se seguirão, nomeadamente no âmbito do processo das alterações climáticas.
  • Qualquer que venha a ser o grau da provável desglobalização que o contexto geopolítico, exponenciado pela pandemia do Covid-19, nos venha a conduzir, continuará a ser imperativa a coordenação da gestão dos bens públicos globais, que, entre outros, englobam: a manutenção da paz e da segurança interna­cionais (que hoje pressupõe a luta antiterrorista); a estabilidade do sistema financeiro; a liberdade de navegação nos mares; o controlo de pandemias; o controlo da poluição e do aquecimento global; a liberdade de acesso ao espaço e, mais recentemente; a liberdade de circulação na inter­net e a cibersegurança[2]; bem como a definição de estratégias para enfrentar as ameaças e riscos comuns (o terrorismo, a criminalidade organizada transnacional, o cibercrime, a explosão demográfica, as pandemias, alterações climáticas, etc.). Daqui se deduz que a realidade do mundo atual é demasiado complexa e interdependente para a reedição de isolacionismos tout court;
  • A saúde é uma questão de segurança e, como tal, deve ser assumida como uma responsabilidade do Estado, em linha com os seus fins-últimos, subsumidos na garantia da segurança, do progresso e bem-estar dos cidadãos, por esta ordem de prioridade;
  • A ciência voltou a ser sinónimo de esperança, com relevo para a medicina, a farmácia e a investigação científica;
  • A não ser que à semelhança da epidemia de SARS-CoV de 2003 o vírus simplesmente desapareça ao fim de algum tempo, teremos que nos habituar a coabitar com o SARS-CoV2 até que seja descoberta uma vacina, desenvolvido um fármaco ou atingida a imunidade grupal, o que em todos os casos apresenta um elemento comum – vai requerer tempo;
  • No plano geopolítico a pandemia de Covid-19 acentuou clivagens e marca definitivamente a divisão entre um bloco euroasiático assertivo em ascensão e o abandono da liderança por parte do Ocidente, num processo a que a Conferência de Munique de 2020 rotulou de Westernlessness (desocidentalização);
  • Evidenciou o anacronismo que tem presidido aos critérios dos investimentos de segurança, patente na discrepância entre o hardware securitário disponível e a vulnerabilidade geral em matéria de equipamento sanitário, evidenciando distopias nas análises estratégicas, em particular no tocante à avaliação de riscos;
  • Sistemas que constituem a base da capacidade de projeção de poder, apresentam-se desadequadas para enfrentar ameaças à segurança como a que o mundo se defronta presentemente;
  • O desenvolvimento tecnológico irá acarretar uma revisão estrutural da segurança. O risco de insolvência estratégica do dispositivo militar da única potência global, que perdeu a supremacia no plano tecnológico, é uma evidência perante o desenvolvimento dos mísseis hipersónicos;
  • As contradições que estiveram na génese da crise económica de 2008 e que persistem no essencial, associadas aos efeitos da pandemia em curso e do quadro de recessão económica que se anuncia, poderão ser um cocktail perfeito para o colapso de um modelo económico assente no que David Graeber designa por bullshitization[3] do trabalho;
  • Citando Manuel Alegre, “todas as grandes catástrofes trazem ruturas culturais”, em particular quando passíveis de serem catalisadoras de fenómenos que exponenciem os seus efeitos. À guerra do Peloponeso (431 a.C. – 404 a.C.) associou-se uma epidemia, provavelmente de tifo, que conduziu à decadência de Atenas. A peste negra de 1348 é considerada como um impulsionador do Renascimento. À peste bubónica de Londres, em 1665, sucedeu-se o grande incêndio de 1666. A gripe espanhola, de 1918, exponenciou as consequências da Primeira Guerra Mundial seguindo-se uma sucessão de eventos que marcaram a história contemporânea;
  • Os indicadores de instabilidade estão patentes no fenómeno dos Gilets Jaunes em França, no levantamento popular no Chile e um pouco por toda o mundo, num claro indicador de que o neoliberalismo poderá estar a aproximar-se do colapso;
  • A explosão social nos EUA despoletada pela indignação causada pela morte do afroamericano George Floyd foi certamente exacerbada pelas tensões sociais que o Covid-19 ajudou a acentuar, por via do desemprego galopante, carências sociais estruturantes e um quadro epidemiológico que vai a caminho de dois milhões de infetados e que já superou os cem mil óbitos. Também é patente a desadequação do estilo da atual liderança política para o propósito de inspirar confiança para o restabelecimento da ordem e tranquilidade públicas;
  • Os riscos de entrarmos num ciclo de retração civilizacional, à semelhança dos anos trinta do século passado parecem reais, se atendermos à onda de ascensão de regimes iliberais, alguns de matriz protofascista, que tem marcado o início deste século. Subscreve-se o entendimento de Shlomo Ben-Ami que enfrentamos presentemente três perigosas tendências: desglobalização; unilateralismo; e afirmação de um capitalismo de vigilância e matriz autoritária;
  • Os protecionismos e excecionalíssimos, associados à crise do multilateralismo, em última análise poderão potenciar situações favoráveis a uma confrontação bélica no quadro internacional, tendo o sudeste asiático como palco;
  • Neste início do século XXI a primeira linha do combate será, no plano ético, a defesa da dignidade Humana. No plano interno assiste-se, a pretexto da exaltação de valores tradicionais, a uma ofensiva contra os direitos das mulheres, da autodeterminação sexual e da tolerância para com a diferença, promovida por movimentos ultramontanos e reacionários.

3. Desafios da Pandemia Covid-19

Num espaço de pouco mais de uma década vivenciamos quatro grandes crises, tomando consciência de um crescimento exponencial dos domínios da segurança, outrora remetidos à dualidade entre defesa das fronteiras e ordem pública, numa clara divisão do trabalho entre militares e polícias. A complexificação das relações sociais ou, pelo menos, a perceção de que as interpretações analíticas já não são satisfatórias para a compreensão dos fenómenos sociais, está na base do conceito de segurança humana adotado pelas Nações Unidas em 1994, inspirado nas ideias de Barry Buzan e da escola de Copenhaga. É agora acrescido de um novo paradigma – o dos fenómenos macrosecuritários, assim designados por terem impacto em todos os setores da sociedade (Político, Militar, Económico, Social e Ambiental) e serem passíveis de causar efeitos a todos os níveis, do Internacional ao dos Estados e mesmo das pessoas[4].

Aos exemplos da ameaça nuclear e do terrorismo apontados por Buzan, parece fazer sentido acrescentar-se outros de idêntica relevância e dimensão nos planos aduzidos, nomeadamente: as alterações climáticas; a Inteligência Artificial; a que acresce agora a pandemia do Covid-19. Todos eles são exemplos de realidades securitárias presentes em permanência e que afetam todos os setores da sociedade. O primeiro marcou o período da Guerra Fria e do equilíbrio do terror subsumido na sigla MAD (mutual assured destruction), o segundo inspirou quase duas décadas de guerra global de contraterrorismo liderada pelos EUA. As alterações climáticas e a Inteligência Artificial fazem parte da panóplia de incertezas e temores que inspiram narrativas de que estaremos a entrar numa nova era axial e a aproximar-nos do Apocalipse. A última que constitui a centralidade das preocupações atuais, pelo grau de incerteza que lhe está associado, representa um catalisador de temores sobre probabilidade de novas vagas pandémicas, exacerbando as angústias e condicionando a racionalidade que o momento recomenda.

Mais do que a exceção, a situação inédita de crises permanentes e simultâneas que vivemos parece ter passado a ser a regra – o novo normal, a que urge adaptarmo-nos no plano sistémico, sob pena de estarmos a abdicar do papel de sujeitos do nosso próprio destino. Corremos o risco de ser objeto de estratégias alheias, conduzidos pelas decisões de terceiros e ultrapassados pelos acontecimentos. Porque a natureza tem horror ao vazio, considera-se que a alternativa a uma estratégia para fazer face às crises que se irão suceder, não pode passar pela externalização de domínios essenciais para a segurança e bem-estar dos cidadãos, nem dar por adquiridas as circunstâncias do bom relacionamento institucional que a conjuntura atual permite.

Primeiro que tudo, importa efetuar a reflexão holística que há muito se impõe no sistema de segurança nacional, de modo a determinar as medidas necessárias no âmbito das funções dos respetivos intervenientes, efetuar os ajustamentos necessários no plano estrutural e, sobretudo, no quadro dos processos, que nos permitam dar respostas adequadas às contingências do futuro para que, parafraseando Marx, a história não se repita, primeiro como tragédia e depois como farsa.

Em síntese, num momento em que a prazo se irá proceder à revisão do Conceito Estratégico de Defesa Nacional, parece razoável que tal exercício, no plano reconhecidamente virtuoso e necessário da Defesa e Segurança, até por via das obrigações do nosso país perante a Aliança Atlântica, seja acompanhado, num âmbito mais alargado, por uma revisitação da coerência estrutural e eficiência operacional do sistema de segurança nacional, com especial ênfase para os níveis político e político-estratégico. É aí que, no plano da decisão e da definição de estratégias, faz efetivamente falta promover mudanças que confiram ao sistema de segurança nacional o caráter sistémico e adequado aos desafios do presente.

Acautela-se ainda a atrição associada à recorrente tendência para centrar as reformas do Estado nos planos operacional e tático, fomentadores de resistência e acrimónia, onde os desempenhos se têm mostrado suficientemente adequados aos desafios do ambiente da segurança.

4. Racionalizar Estruturas e aferir Processos

Citando um General inglês sobre a sua experiência na implementação da SFOR (Stabilisation Force in Bosnia and Herzegovina) em 1996, no âmbito da intervenção da NATO naquela antiga república da ex-Jugoslávia, para pôr fim ao trágico conflito que conduziu à desagregação daquele país, “o relacionamento pessoal ajuda a alcançar a eficácia, mas é a exceção, pelo que a organização é fundamental”. Condicionar o sucesso a fatores aleatórios da estabilidade emocional dos decisores, ou escamoteá-lo no requisito da cooperação institucional, é omitir o facto de que não basta a simplicidade de um normativo para ultrapassar a complexidade dos fenómenos sociais da atualidade, em particular dos que se processam em quadros de crise ou conflito.

A sua complexidade, característica que decorre da interdependência entre as diferentes variáveis, é frequentemente resultado da utilização de interpretações analíticas, desadequadas do caráter sistémico dos fenómenos sociais. Recomenda a adoção de uma abordagem holística, onde o sistema seja entendido nas suas diferentes componentes (função, estrutura, processo) atentos às alterações no contexto. Uma abordagem sistémica conduz-nos a um entendimento da Segurança Nacional como um sistema de sistemas, onde todos contribuam para os fins-últimos do Estado anteriormente referidos (a segurança, prosperidade e bem-estar dos cidadãos, por esta ordem de prioridade). Por outro lado, garante uma perspetiva abrangente, integrada e liberta dos espartilhos da interdisciplinaridade.

A estratégia estabelece os métodos (ways) para emprego dos meios (means) necessários, com vista à prossecução de determinados objetivos (ends). Os meios compreendem as estruturas e os métodos fazem alusão aos processos, dependendo o sucesso da estratégia da sua articulação.

Embora seja ainda cedo para retirar conclusões sobre a forma como tem vindo a ser conduzida entre nós a resposta à crise pandémica do Covid-19, no entanto, importa avaliar os principais desafios no plano das estruturas e principalmente dos processos, de modo que em futuros contextos de crise não sejamos remetidos à gestão da contingência, obrigados a tomar decisões sobre a pressão do momento, recorrendo ao pouco eficiente método da tentativa e erro.

O tempo encarregar-se-á de clarificar em que medida os aspetos abaixo enunciados foram relevantes no desenvolvimento da pandemia do Covid-19, a saber:

  • No domínio da análise de risco impõe-se a proatividade da comunidade de informações, permitindo antever cenários como o que se veio a concretizar, garantindo o tempo necessário para o processo de decisão política, que assegure a elaboração/implementação dos planos de contingência, o acionamento das medidas de proteção e a ativação atempada dos meios de resposta. Sobretudo, que impeça situações de surpresa e permita uma perceção situacional consentânea com o nível da ameaça/risco;
  • A clarificação do nível de condução política da crise, atentos aos princípios da unidade de comando, simplicidade e economia de forças, em particular durante os períodos em que forem decretados estados de exceção, com os consequentes impactos no campo dos direitos, liberdade e garantias. Neste domínio e no caso vertente da pandemia Covid-19, é importante destrinçar claramente o nível político, o estratégico (Direção-Geral da Saúde) e os patamares operacionais;
  • O conhecimento do racional que sustentou a ponderação dos fatores de decisão, bem como os critérios para as diferentes opções políticas tomadas, assegura transparência, aumenta a coesão e inibe iniciativas à margem do canal de decisão política. Por outro lado, atesta uma estratégia autónoma delineada a partir das especificidades da situação do país, não obstante possa tomar em linha de conta as boas-práticas de outras latitudes, sem incorrer na tentação da sua mimetização.
  • A articulação das estratégias subsidiárias, encetadas por outros domínios do Estado (Defesa Nacional, Segurança Interna, Justiça, etc.), pela sua relevância no combate à pandemia são merecedoras de especial atenção, bem como de uma articulação adequada dos respetivos órgãos de coordenação (Estrutura de Monitorização do Estado de Emergência, etc.);
  • As diligências encetadas pela Presidência da República durante o período do Estado de Emergência, em particular no tocante à interface com a sociedade civil e com os principais atores na resposta à crise pandémica, atentos às competências executivas do Governo, podem constituir um multiplicador de potencial se devidamente integrados e coordenados com o executivo;
  • No plano das perceções, uma política de comunicação centrada na informação, em detrimento da simples exploração das emoções, que procure desenvolver a literacia no campo da análise de riscos e fortalecer o pensamento estatístico dos cidadãos, ajuda a apaziguar angústias, evitando a profusão do medo e da irracionalidade.   

Não obstante existam diversas estratégias gerais, orientadas sectorialmente para as várias áreas do Estado (Conceito Estratégico de Segurança Nacional, Estratégia Nacional para uma Proteção Civil Preventiva, Estratégia Nacional Segurança Ciberespaço 2019-2023, etc.), Portugal não dispõe ainda de uma estratégia de segurança nacional devidamente aprovada e delineada, que enumere as entidades e os órgãos responsáveis pela gestão de crises e que estabeleça claramente as respetivas competências e responsabilidades. Sobretudo que assegure no plano político o acompanhamento das situações de crise, coordene a elaboração dos planos de contingência para fazer face a crises potenciais ou emergentes, assegure a fusão da informação pertinente sobre a respetiva evolução, apoie o patamar político no processo de decisão e articulação entre os vários atores, que garanta um apoio de staff que permita aliviar a pressão sobre o patamar de decisão política, robustecendo o seu desempenho.

Neste sentido, apresenta-se difícil efetuar um diagnóstico claro do processo de gestão da crise provocada em Portugal pelo vírus SARS-CoV2, que vá além da descrição cronológica das deliberações que foram sendo tomadas pelo executivo e acompanhadas por iniciativas de vária ordem pelos diferentes órgãos e estruturas do Estado.

No nível tático, o SNS afirmou-se como a mais importante conquista da Democracia, superando as vicissitudes que são do conhecimento geral e atestando o elevado sentido de serviço público dos seus profissionais. Nos planos estratégico e operacional as estruturas do Ministério da Saúde e, em particular, da Direção-Geral da Saúde como leading agency, primaram pela condução serena das operações, sendo capazes de lidar bem com os fatores de incerteza da crise, transmitindo confiança. Já no nível Político, não obstante o clima de cooperação institucional que foi possível estabelecer em todos os quadrantes, com especial ênfase para o sentido de Estado do líder da oposição, permitindo espaço de manobra ao executivo para poder tomar as medidas necessárias, as lacunas acima aduzidas decorrentes da ausência de uma estratégia de segurança nacional, bem como da estrutura que lhe está subjacente, adensaram o nevoeiro sobre algumas decisões, promoveram ações de eficácia questionável, deram espaço a iniciativas de pendor essencialmente mediático, suscitaram uma acrimónia ainda não resolvida entre Forças Armadas e Forças de Segurança e transmitiram alguma perceção de fulanização da liderança da crise.

5. Conclusões

Augura-se que não se concretizem os receios de recidivas e que a crise pandémica do Covid-19 prossiga a sua progressiva curva de redução, tanto em Portugal como na UE e no resto do mundo. Importa preparar o day after, não apenas nos planos onde os seus efeitos causaram maior impacto, conduzindo o mais rapidamente possível à recuperação da normalidade, mas também através das ações necessárias para fortalecer a resiliência da sociedade e a capacidade do Estado para fazer face às próximas crises, qualquer que seja a sua natureza.

Como primeira recomendação sugere-se a elaboração de um relatório da crise pandémica Covid-19 com a respetiva cronologia, decisões, medidas adotadas nos diferentes níveis e domínios, vulnerabilidades identificadas, falhas e recomendações para o futuro, que possa servir como uma espécie de vade-mécum de lições aprendidas, guião e base de trabalho para a elaboração de um plano de emergência em situações semelhantes no futuro, mesmo que dentro de um século. Trata-se de um exercício que se impõe, no mínimo como legado para as gerações futuras, não obstante a periodicidade deste tipo de ocorrências aparente vir a ser mais frequente.

A doutrina estratégica confere os instrumentos intelectuais necessários para equacionar as medidas que se impõem no domínio das políticas públicas destinadas a dotar Portugal dos instrumentos necessários para que circunstâncias de crise sejam enfrentadas com os mecanismos e adequados. O ponto inicial passa pela definição de uma estratégia de segurança nacional que enquadre, num todo coerente, as estruturas do Sistema de Segurança Nacional, aferindo as respetivas funções e definindo os processos com vista a fazer face a novos contextos de crise. Trata-se de colmatar uma lacuna há muito identificada, algo que parece incompreensível para um país com um registo notável de participação na gestão de crises nas mais diversas geografias.

Se tivéssemos que definir à partida os centros de gravidade estratégica e operacional para a gestão da crise provocada pelo vírus SARS-CoV2, o primeiro teria naturalmente de ser a população e o segundo o SNS. A partir daí não teria sido difícil ao nível político estabelecer o estado final desejado e os objetivos estratégicos. Por seu turno, os níveis estratégico e operacional estariam em melhores condições para efetuar o desenho de operações, onde se insiram de forma coerente as ações a encetar, de modo a produzirem os efeitos necessários, que criem as condições desejáveis, que permitam atingir os objetivos estabelecidos, com vista a alcançar o estado final desejado. Ficaríamos certamente a saber com mais clareza para onde vamos e como lá poderemos chegar.


22 de setembro de 2020

Agostinho Costa
Vice-Presidente da Direção


(Artigo publicado na Revista Segurança e Defesa N. 40 – Edição de setembro de 2020)

[1] Fonte: Dicionário Eletrônico Houaiss, consultado em https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/a-etimologia-da-palavra-crise/28974

[2] Estratégia de Segurança Nacional – Portugal Horizonte 2030, pag. 114.

[3] Um bullshit job é uma forma de emprego de tal maneira absurda, desnecessária, ou perniciosa, ao ponto do próprio empregado não conseguir encontrar justificação para a sua existência. Ver David Graeber, Bullshit Jobs – The rise of pointless work and what we can do about it. pag. 3

[4] Barry Buzan, Security According to Buzan: A Comprehensive Security Analysis, 8.

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