O tráfico de seres humanos é um fenómeno transnacional que tem vindo a tornar-se uma preocupação que permeia as sociedades ocidentais e as instituições que as regem. Concerne essencialmente um processo de venda, compra e troca de seres humanos, em que as vítimas são tomadas como alvo de exploração. Assim, a exploração criminosa de pessoas vulneráveis é feita com o propósito máximo de obter ganhos económicos. Como tal, por muitos é considerada uma forma moderna de escravatura, sendo a causa responsável pela ruína de imensas vidas, através da constante privação da dignidade, liberdade e direitos fundamentais a estas pessoas.
Este fenómeno pode manifestar-se através de diferentes formas, entre elas a exploração sexual, nomeadamente a prostituição; a exploração laboral; a escravatura, servidão ou práticas relacionadas; a remoção de órgãos vitais; e finalmente, a exploração para criminalidade forçada, para fins como tráfico de drogas, furtos, entre outros. Nestas diferentes variações do tráfico de seres humanos, a exploração humana pode ser escondida por detrás do envolvimento das vítimas em outras atividades ilícitas e ofensas criminais, entre as quais a prostituição e a migração irregular.
Tendo em consideração que este fenómeno tem vindo a ganhar um destaque maior no âmbito das estruturas de proteção e defesa de vítimas, com particular ênfase em mulheres e crianças, a União Europeia tem-se dedicado a agir com vista à prevenção e ao combate do tráfico de seres humanos.
Como tal, o primeiro passo para conhecer esta realidade é estar consciente do perfil das vítimas e dos agressores. Deste modo, é importante ressalvar que os dados da UE indicam que mais de metade das vítimas de tráfico de seres humanos que ocorrem nas fronteiras europeias são cidadãos da UE, sendo que muitas são alvo deste crime dentro do seu próprio país. Ainda assim, tem-se vindo a verificar um aumento de vítimas com nacionalidade externa à UE nos últimos anos.
No que concerne as vítimas de tráfico de seres humanos, verificamos que os dados apontam para uma maioria de indivíduos do sexo feminino – mulheres e meninas – que são traficadas, na sua maioria, para fins de exploração sexual. A outra forma de exploração mais comumente ocorrida no seio do tráfico humano compreende fins laborais. Os dados indicam ainda que ⅕ das vítimas de tráfico humano na UE são crianças, ao passo que quase ¾ dos traficantes são indivíduos do sexo masculino, cidadãos da UE.
Considero importante referir as proporções que este tipo de crime ocupa nas sociedades europeias, ao afirmar que os dados apontam para o facto de, em alguns países da UE, os números referentes às vítimas de tráfico de seres humanos ultrapassarem as vítimas de violência doméstica. Isto é claramente um indício de que devemos estar, enquanto sociedade, conscientes e alerta perante esta situação que avassala muitas vidas, e também que este problema deveria ser tratado como uma prioridade geral de ação política.
Ação política da União Europeia
A complexidade deste fenómeno resulta num processo de tratamento sistemático do mesmo de acordo com uma interligação de áreas de política da União Europeia, passando por iniciativas de segurança, migração, justiça, igualdade, direitos fundamentais, desenvolvimento e cooperação, e ação externa, entre outros aspetos. Como tal, esta abordagem multifatorial do tráfico de seres humanos traduz-se em ligações deste fenómeno a outros tipos de crime organizado, como contrabando de migrantes, tráfico de drogas, extorsão, lavagem de dinheiro, fraude de documentos e de pagamentos, crimes de propriedades, cibercrime, entre outros.
A nível legislativo, o tráfico de seres humanos constitui uma grave violação de direitos fundamentais, proibidos pelo Artigo 5.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. É considerado também uma forma de crime organizado pelo Tratado de Funcionamento da União Europeia (Artigo 83).
Posto isto, importa aferir a ação política que a UE tem dirigido em torno desta crescente preocupação. Assim, começo por abordar a primeira diretiva anti-tráfico da UE (de 5 de abril de 2011, aplicada a 15 de abril de 2011), que constitui o ato legislativo fundamental da UE que trata o tráfico de seres humanos. Esta diretiva procura, em primeiro lugar, estabelecer regras básicas no que concerne à definição de ofensas criminais e sanções; de seguida, definir provisões comuns para fortalecer a proteção, assistência e apoio à vítima, assim como também destacando a prevenção; e por último, delinear atores-chave para lutar contra o crime de tráfico de seres humanos.
No entanto, uma nova estratégia da UE no combate ao tráfico de seres humanos foi adotada a 14 de abril de 2021, para o período compreendido entre 2021-2025. Esta propõe ações concretas para identificar e parar o tráfico nas suas fases iniciais, seguindo essencialmente uma lógica de proteção das vítimas e de apoio para capacitar as mesmas a reconstruir as suas vidas. Assim, esta iniciativa envolve uma resposta compreensiva ao crime, tendo como pilares principais a prevenção do crime, a proteção e empoderamento das vítimas e a condução dos indivíduos responsáveis por tráfico de seres humanos à justiça. É importante ainda referir que, devido ao facto de este crime ser usualmente praticado por grupos de crime organizado, a estratégia explicada acima está interligada com a estratégia da UE para combater o crime organizado.
A Europol tem vindo a considerar o tráfico de seres humanos uma prioridade no plano de ação da União Europeia, uma vez que dados referentes a 2014 consideram que 71% das vítimas de tráfico de seres humanos são cidadãos europeus. É igualmente uma prioridade da EMPACT (European Multidisciplinary Platform Against Criminal Threats), sendo esta área de crime trabalhada com uma abordagem integrada e atenta à segurança interna da UE, contendo medidas que vão ao encontro do controlo de fronteiras, cooperação judicial, gestão de informação, treino e prevenção, entre outras.
O trabalho conduzido pela Europol procura acabar com as redes criminosas envolvidas no tráfico de seres humanos, em todas as suas formas de exploração; combater aqueles que usam ou ameaçam com violência as vítimas e as suas famílias, ou enganam as vítimas ao fingir oficializar a exploração; combater aqueles que recrutam e publicitam vítimas no meio online, entre outros.
Tráfico de seres humanos em cenário de guerra
O debate em torno do fenómeno do tráfico de seres humanos ganha particular relevância quando estamos perante um cenário conturbado de guerra ou conflito. Isto acontece porque o resultado de uma situação dessas consiste na fuga de um número significativo de pessoas, que deixam para trás as suas casas, o seu ambiente familiar e a sua comunidade de apoio. A sua realidade é substituída por um contexto de isolamento social e cultural, com falta de facilidade de acesso a recursos básicos. Este tipo de situação vulnerável contribui para que os refugiados e outras pessoas deslocadas se tornem um alvo fácil para traficantes que escolhem quem irão atacar com base na precariedade do seu estado de vida, de modo a que sejam mais suscetíveis a serem exploradas.
Isto é particularmente importante de assinalar na atualidade, tendo por base o contexto avassalador da guerra na Ucrânia, uma vez que o prolongamento desta guerra faz com que as mulheres e as crianças que fujam do seu país encontrem um risco acrescido de se tornarem vítimas de tráfico humano. Desta forma, um novo relatório da ONG La Strada International aponta particularmente para o risco iminente de tráfico humano para mulheres e crianças, pessoas a viajar sozinhas, assim como refugiados não documentados ou sem Estado, sendo mais propícios a lidar com infortúnios e a tornarem-se vítimas deste crime desumano.
De acordo com a Organização das Nações Unidas, cerca de 6 milhões de pessoas fugiram da Ucrânia desde que a guerra se despoletou, em fevereiro, sendo que 90% destes refugiados são mulheres e crianças, uma vez que os homens ficaram em solo ucraniano para lutar pelo seu país.
Os desafios do tráfico de seres humanos na era digital
Tratando-se de um fenómeno contemporâneo que preocupa as entidades internacionais, é importante ter em consideração os desafios que este fenómeno apresenta no meio digital. Têm-se verificado alterações na operação destas redes de tráfico humano devido às tecnologias de comunicação modernas, como a Internet e as plataformas de redes sociais. A tecnologia tem conseguido transformar a capacidade dos traficantes de proceder ao tráfico de seres humanos nas suas diferentes vertentes de exploração, sendo os meios tecnológicos cada vez mais recorrentes para a exploração das vítimas, passando por processos de recrutamento de vítimas.
Os traficantes conseguem modelar a sua estratégia de recrutamento com base na caracterização online das suas vítimas, existindo dois tipos de estratégia: ativo e passivo. Por um lado, o recrutamento ativo consagra uma técnica em que os traficantes publicam anúncios de emprego falsos em plataformas online, seguidos da criação de websites de agências de emprego falsas, promovidas em redes sociais de modo a se tornarem mais facilmente acessíveis para um número considerável de pessoas. Por outro lado, o recrutamento passivo é mais difícil de ser reconhecido pelas entidades policiais. Passa por uma lógica de criação de anúncios de trabalho no estrangeiro publicitados, em que os recrutadores exigem uma quantia paga pelas vítimas de modo a assegurar-lhes o seu trabalho e ajudar com procedimentos de viagem, sendo que só descobrem a verdade após aterrarem no país de destino.
É relevante apontar ainda para o principal perigo do tráfico de seres humanos na era digital assentar essencialmente no facto de a tecnologia moderna possibilitar que os traficantes consigam exercer controlo sobre a vida das suas vítimas à distância. Este controlo deixa de ser necessariamente por meio de violência ou restrição físicas, podendo acontecer por diversas formas de chantagem ou de formas virtuais de restrição e monitorização de movimento.
Gostaria de terminar esta reflexão com um apontamento acerca do facto de a situação da pandemia COVID-19 ter potencializado as formas de tráfico de seres humanos realizadas por via online, devido à maior quantidade de tempo dispensado online pela generalidade das pessoas. Como tal, existe uma maior exposição ao risco de vítimas serem contactadas pelos recrutadores. Por outro lado, é também importante notar que o fecho de estabelecimentos como clubes noturnos e centros de massagem onde ocorre a prostituição destas vítimas levou a um aumento da sua vulnerabilidade. No entanto, ao olhar para a situação numa perspetiva a longo prazo, importa referir que existe a possibilidade de uma maior incidência de tráfico de seres humanos devido à crise económica derivante da pandemia, uma vez que se prevê que existirá um maior número de pessoas em condições vulneráveis e propícias a aceitar qualquer proposta de emprego.
Os próximos anos serão, deste modo, cruciais na identificação de mecanismos e estratégias de abordagens para o combate do tráfico de seres humanos, atendendo a todas as suas especificidades e particularidades. É imperativo que as instituições da UE considerem a seriedade do problema e trabalhem na capacidade de resposta ao mesmo, para que se consigam proteger e salvar vidas.
Margarida Ferreira Malta
EuroDefense Jovem Portugal
Referências Bibliográficas
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