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Academicamente conhecida por “crime-terror nexus”, a relação entre o crime organizado e o terrorismo remonta à década de 1980 com a emergência dos cartéis de droga de Pablo Escobar, na Colômbia, o que impulsionou o debate sobre o “narco-terrorismo”. Este nexus é estudado pelo menos desde os inícios da década de 1990, sendo possível identificar diversos modelos explicativos sobre a sua relação. O Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) destaca quatro modelos teóricos, dos quais salientamos três principais tipos de relação: a interação entre crime organizado e terrorismo ocorre (a) quando os grupos terroristas e grupos criminosos formam uma aliança; (b) quando ambos se apropriam do modus operandi de cada um, sem qualquer vínculo estabelecido (apropriação); ou (c) quando ambos cooperam na prossecução dos objetivos de cada um e se fundem num único grupo (fusão). Para o Instituto Inter-regional de Pesquisa das Nações Unidas para o Crime e a Justiça (UNICRI), a relação entre o crime organizado e o terrorismo é complexa, não só pela natureza dinâmica de ambos os fenómenos, mas também pela falta de consenso sobre os conceitos. Os grupos distinguem-se pelos objetivos distintos. A Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional indica que o “grupo criminoso organizado” tem “a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício económico ou outro benefício material”. Por oposição, de acordo com a Diretiva 2017/541 (UE), um “grupo terrorista” visa “desestabilizar gravemente ou destruir as estruturas políticas, constitucionais, económicas ou sociais fundamentais de um país”.

Este artigo aborda, de forma sintética, dois tópicos. Primeiro, analisa a ideia da apropriação na perspetiva dos grupos terroristas. Segundo, analisa a relação entre o crime organizado e o terrorismo na União Europeia.

O crime organizado e o terrorismo: a apropriação do modus operandi

Existem diversas atividades criminosas associadas aos grupos terroristas, tais como o tráfico de droga e de armas, a falsificação de documentos, o tráfico humano, ou até a exploração de recursos naturais. Os grupos terroristas recorrem a estas atividades para financiar os seus objetivos, tais como o planeamento e a preparação de ataques terroristas (construção de bombas, compra de armamento, etc.), ou para a manutenção das estruturas de comunicação e de propaganda. Como refere o ISCR (2016): “put simply, access to criminal skills makes it easier for terrorists to ‘stay under the radar’”.

Tráfico de droga. O tráfico de droga é uma das atividades mais procuradas e rentáveis em termos de financiamento para o terrorismo. Vários são os grupos terroristas, sobretudo de matriz jihadista, que recorrem à indústria dos narcóticos, nomeadamente ao tráfico de cocaína e heroína. Segundo a United States Drug Enforcement Administration (DEA) (2020), só o tráfico de heroína financia 37% de todas as organizações terroristas no mundo”. Os Talibã, a al-Qaeda para o Magrebe Islâmico (AQMI), o al-Shabaab ou o Boko Haram têm sido conotados com a venda ilícita deste tipo de substâncias. Dois exemplos. Segundo as autoridades espanholas, noticia o NYT, os atentados de Madrid de 2004, executados por membros com ligações à al-Qaeda, foram financiados pelas vendas de haxixe e ecstasy. Em 2006, Khan Mohammed, talibã, considerado pelo Departamento de Justiça norte-americana como um “jihadista violento e um traficante de narcóticos”, tentou utilizar os fundos das vendas de heroína e ópio para comprar foguetes e realizar um ataque contra um aeródromo da NATO em Jalalabad, no Afeganistão.

Tráfico de armas. Nem todos os ataques terroristas implicam o uso de armas de fogo e os grupos terroristas têm procurado, cada vez mais, métodos alternativos para perpetrar ataques, nomeadamente através do uso de facas ou de veículos. Porém, as armas de fogo continuam a ser um instrumento importante. Por exemplo, nos ataques terroristas de Paris em novembro de 2015, que vitimaram 130 pessoas e feriram 368, os terroristas dispararam sobre a população com armas Kalashnikov (AK-47) e descobriu-se também que algumas armas tradicionalmente usadas no cinema (fire blanks) foram reconvertidas.

A relação entre o crime organizado e o terrorismo na União Europeia

Destacam-se três notas sobre a relação entre o crime organizado e o terrorismo na União Europeia.

1. Perfil do terrorista. Não existe um perfil de terrorista, mas é possível identificar alguns padrões e características comuns. No âmbito do nexus em análise, sabe-se que muitos têm ligações a redes criminosas ou com o mundo do “petty crime” (ex. assaltos, roubo) e da criminalidade grave (ex. homicídios, tráfico humano). Entre 2011 e 2016, identificaram-se 79 indivíduos, classificados como “jihadistas europeus”, com antecedentes criminais. Por exemplo, Amedy Coulibaly, um dos terroristas do ataque ao supermercado em Paris (2015), tinha condenações prévias por tráfico de droga. E na Bélgica, 86% dos combatentes terroristas estrangeiros (FTF), à data de 2019, eram conhecidos pelas autoridades devido às suas atividades criminosas, como roubo e tráfico de droga.

A ligação conhecida dos terroristas dos atentados de Paris e Bruxelas à criminalidade comum, anterior à sua radicalização, coloca na ordem do dia a premência da operacionalidade entre bases de dados e do acesso dos serviços de informações à informação criminal (…)”

Diretor do SIS, Adélio Neiva da Cruz (2018)

2. Crime-terror na UE. Os relatórios TE-SAT (EU Terrorism Situation & Trend Report) e SOCTA (Serious and Organised Crime Threat Assessment) da Europol referem que os interesses dos grupos terroristas e dos grupos criminosos convergem: ambos dependem das mesmas fontes para financiamento, aquisição de armas, falsificação de documentos e recorrem às mesmas redes para recrutar potenciais membros. Ambos também exploram as redes migratórias.

“Skills and experience in crime, connections in the criminal world, or access to illicit goods and services such as weapons and fraudulent documents, make criminals attractive potential recruits for terrorist and violent extremist organisations.” “Migrant smugglers operating in the EU were in several cases suspects in terrorism investigations or had connections with terrorists and violent extremists”

TE-SAT 2022

Porém, os relatórios reiteram frequentemente que há poucas evidências no espaço da UE de uma cooperação sistemática entre grupos terroristas e grupos criminosos. Ou seja, a convergência existe, mas não é realizada de forma regular: aliás, de acordo com o SOCTA de 2021, os grupos criminosos mostram-se relutantes em cooperar com os terroristas para evitar atrair atenção das forças e serviços de segurança.

3. Grupos terroristas e criminalidade organizada. O nexus crime-terror é associado a determinados tipos de terrorismo. Por exemplo, o TE-SAT de 2021 refere que se têm verificado ligações (a) entre o terrorismo de extrema-direita e o tráfico de armas e o tráfico de droga; e (b) entre o terrorismo jihadista e o branqueamento de capitais, o tráfico humano, o tráfico de droga, e a atividades de extorsão, entre outras. O TE-SAT de 2022 salienta que os suspeitos conotados com a extrema-direita – e ocasionalmente jihadistas – têm procurado comprar armas e explosivos a redes criminosas, e alguns vêm-se envolvidos no tráfico de armas. Nas investigações sobre a extrema-direita, as forças e serviços de segurança descobriram ainda equipamento militar em 3D, usado para fabricar armas, bem como material de propaganda e manuais de instruções.

A prevenção e combate ao nexus entre crime e terrorismo requer a aposta contínua na partilha de informações entre estados-membros da UE, incluindo com países terceiros, bem como a atualização das estratégias de contraterrorismo face à evolução da ameaça. Por exemplo, Anis Amri, o perpetrador do ataque em Berlim no mercado de Natal (2016), um tunisino que se inspirou na propaganda do Daesh, utilizou 14 identidades diferentes (presumivelmente, passaportes falsificados) para enganar a segurança. Desde o 11 de setembro de 2001 a União Europeia tem desenvolvido um conjunto de medidas e instrumentos para fazer face ao terrorismo, embora a responsabilidade primordial da luta contra esta ameaça recaia sobre os estados-membros.


27 de setembro de 2022

Joana Araújo Lopes é Doutoranda em “História, Estudos de Segurança e Defesa” no Iscte. É bolseira da FCT e trabalha numa tese sobre o contraterrorismo em Portugal e Espanha, no contexto da União Europeia (2004-2020). É Mestre em Ciência Política e Relações Internacionais pela Universidade NOVA de Lisboa (2017). Trabalhou como estagiária na Embaixada Americana em Lisboa (Assuntos Consulares), no Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) (Direção-Geral de Política Externa) e no Instituto da Defesa Nacional (IDN). Os seus principais interesses de investigação incidem sobre a segurança internacional, o terrorismo, o contraterrorismo, a radicalização, o extremismo violento e a diplomacia.

https://ciencia.iscte-iul.pt/authors/joana-araujo-lopes/cv


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