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Causas históricas das perceções divergentes e os benefícios que trazem à política externa do Kremlin.

Introdução

A minha atenção neste ensaio será, em grande parte, para explicar por que razão a Rússia e, em especial, o regime “putinista”, são considerados uma ameaça para os estados ocidentais e da NATO.

Depois, tentarei esclarecer em que medida isso afeta tanto as relações da Rússia com estes países, como em que medida a história teve e influenciou a formação deste pensamento. Termino com a consciência de que as relações entre o Ocidente e a Rússia estão a tornar-se cada vez mais problemáticas e a atravessar uma fase de total desunião.

I.     As causas históricas que explicam esta ameaça.

Nas últimas três décadas, o sistema político russo demonstrou a sua capacidade de sobrevivência, apesar de se encontrar num avançado estado de declínio. Este é um sistema baseado num “(…) poder personalizado, a antítese de um Estado baseado no Estado de direito”, bem como numa política externa com raízes soviéticas e imperiais da Rússia.

Embora a Rússia do século XVIII se tenha caracterizado como sendo, em grande parte, como os outros países europeus, o liberalismo que estava a ter um papel cada vez mais importante no Ocidente não foi visto com bons olhos pelo czar reacionário, Nicolau I, mais concretamente quando se realizou a Revolução de dezembro de 1825, na qual era necessária a formação de um governo constitucional. Perante isto, o czar acabou por desistir de adotar as políticas iluministas da Europa Ocidental, bem como tecnologias desenvolvidas na Revolução Industrial, levando a Rússia ao isolamento total. Além disso, havia também um sentimento de dever de proteção dos povos ortodoxos fora da Rússia, conduzindo assim a uma extensão da Rússia à Crimeia, uma atitude que levou a uma guerra entre a Rússia, a Grã-Bretanha, a França e o então Império Otomano, que terminou com a sua derrota.

O czar Alexandre II, sucessor de Nicolau I, inverteu a adoção destas medidas “liberalizando a economia, proporcionando o autogoverno ao nível da aldeia, e lançando uma grande reforma judicial respeitando os ideais liberais. Após a sua morte, “a economia da Rússia desenvolveu-se rapidamente, e começou a fechar o fosso existente entre si e o Ocidente nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial e à Revolução Russa”. No entanto, a sua estrutura política continuou a reforçar-se naquilo que tinham sido as medidas implementadas por Nicolau I, levando a maus resultados.

Após a Guerra Fria, “a Rússia foi (estruturalmente) forçada a navegar em reformas democráticas e de mercado enquanto geria a dissolução do Império Soviético”, mas esta não foi a principal razão que levou à mudança de regime, mas sim – as ações de Mikhail Gorbachev – o então presidente da URSS. Entre elas estava a implementação do glasnost juntamente com a perestroika — abertura política — e uma “liberdade individual como valor universal”.

As decisões tomadas pelo seu sucessor, Boris Ieltsin, formaram um conjunto de consequências – como a tentativa de deposição comunista contra Gorbachev em 1991 e a Crise Constitucional de 1993 – que acabaram por minar consideravelmente a possível implementação de um regime democrático na Rússia, abrindo a porta a um iminente restabelecimento da autocracia.

Em dezembro de 1991, a União Soviética entrou em colapso e a Rússia tornou-se oficialmente uma democracia pela primeira vez na sua história. Para os EUA e para a Europa, este evento foi o ponto que faltava para a Rússia se libertar do comunismo em que viveu durante décadas.

No entanto, este sentimento rapidamente se desmoronou, uma vez que alguns movimentos políticos e sociais tomaram decisões que “primeiro a empurraram para a democracia e depois para a autocracia” tendo acontecido “um dos retrocessos mais consequentes entre a terceira e quarta vagas de democratização”. Podemos dizer que este ambiente pós-Guerra Fria juntamente com o “fim da ideologia e linhas normativas difusas, criou a arena ideal para o jogo da Rússia de enganar e fingir”. Hoje, o regime adotou um autoritarismo feroz com o principal objetivo de ser o maior adversário do Ocidente e da NATO, no entanto, isso nem sempre foi assim, uma vez que após a queda da União Soviética, a Rússia adotou um “jogo de fantasia liberal”, para que pudesse prolongar a sua vida, “primeiro, propondo-se a ‘conter’ essa civilização liberal e depois imitando a essa civilização, o que prova que o próprio potencial de durabilidade dos sistemas é ligeiro”.

II.      Política externa do Kremlin para o Ocidente: benefícios?

Depois de 2010, a Rússia passou por um período de mudança de estratégia em relação ao seu comportamento, tanto em termos de política interna como externa. De facto, os principais setores que foram mais afetados foram a sua mudança constitucional, a pandemia coronavírus e a queda dos preços do petróleo.

Em primeiro lugar, esta nova abordagem abandonou a ideia básica de que a Rússia deveria investir no seu desenvolvimento económico, comercial e político, a fim de crescer como país e como uma superpotência. Moscovo adotou uma política muito mais baseada na ideia de que este poder viria através do enfraquecimento dos seus inimigos geopolíticos – como os EUA, a Europa, bem como os membros da NATO – “e muito menos sobre uma auto-melhoria”.

Para levar a cabo esta nova estratégia de ação, Moscovo começou a investir muito mais na disseminação da desinformação através das redes sociais e meios de comunicação social, bem como na divulgação da propaganda governamental, “apoiando e financiando todo o tipo de partidos políticos de extrema-esquerda e direita (…) simplesmente em apoio ao incentivo aocaos político”. O objetivo é afastar os países, económica e diplomaticamente, – como a Hungria e a Turquia – do Ocidente e da NATO, para que possam ficar do lado da Rússia, enfraquecendo assim o mundo ocidental. Mas estes não são os únicos países em que Moscovo tem vindo a utilizar esta nova estratégia. Um deles, possível candidato à integração na União Europeia, é a Sérvia, que “anunciou a abertura de um gabinete de ligação militar russo no seu Ministério da Defesa”. Também a República Centro-Africana tem recebido ajuda militar russa que “fornece mercenários e um conselheiro de segurança de topo ao Presidente do país”. A Líbia, a Síria, os países do Golfo, o Egito, Israel e membros da Parceria Oriental, têm igualmente recebido apoio por parte do Kremlin.

É importante compreender por que razão a Rússia optou por adotar esta forma de lidar com o Ocidente e a NATO, através da análise da política externa implementada pelo seu Presidente – Vladimir Putin – baseada em três pontos-chave. A primeira ideia a manter é que a Rússia está a levar a cabo uma “revolução conservadora no seu país”, que pode ter consequências no seu comportamento em matéria de política externa, e que poderá adotar uma mentalidade vingativa que afetará a ordem internacional, se isto ajudar a salvaguardar o seu status quo interno. Para o conseguir, e para que a contenção do Ocidente se realize com sucesso, o Kremlin pode vir a realizar a construção “de uma Internacional Anti-Ocidental” – semelhante ao que fez durante a ditadura do Proletariado com a criação da Internacional Comunista.

Decisivamente, o ponto mais importante a ter em conta da política externa do Kremlin é que assume que os seus interesses são mais bem retratados e só podem atingir os objetivos desejados através de um Ocidente fragmentado. Da seguinte forma, “a Rússia pressionará para abandonar a ordem internacional pós-guerra fria, liberal e baseada em regras … em favor de uma ordem pós-ocidental … com China, Rússia e EUA dividindo o mundo em esferas de influência”.

Uma coisa é certa, o Kremlin tem vindo a abdicar da sua política interna, que já não é forte e estável, em benefício da sua política externa e da sua vontade de ‘derrotar’ o Ocidente

– “onde a sua liderança tem subordinado os recursos e a economia do país, a política externa e objetivos militares em grandes partes do mundo”. É verdade que tem desempenhado um papel melhor a este respeito do que a URSS, no entanto, “tem vindo a expandir-se demasiado e a uma taxa bastante rápida”.

O principal objetivo traçado por Vladimir Putin é denegrir os países do Ocidente, bem como a NATO, mas principalmente a democracia ocidental, para que não ganhe popularidade entre os cidadãos russos em detrimento do regime defendido por Putin. Esta preocupação deve- se ao facto de existir um “trauma relacionado com a queda da União Soviética e as consequências que trouxe para a Rússia, juntamente com uma narrativa de queixas sobre a forma como os EUA e o Ocidente reagiram”, mas também porque há insegurança sobre os países do Ocidente e da China, promovida pela instabilidade política e económica que caracteriza a Rússia como um país, que acaba por “levar à agressão externa para manter esse inimigo percebido afastado e proteger a sua sistema limitando a penetração de ideias e valores ocidentais que poderiam provocar desafios ao regime”.

A Rússia sempre pensou e continua a pensar que a política externa que adotou tem sido bastante boa. No entanto, embora Moscovo tenha recebido resultados positivos da sua ação, isto não impediu o Ocidente de responder da mesma forma. No final, é nomeado como sendo “uma cleptocracia autoritária estagnada liderada por um presidente-para-vida que iniciou uma guerra contra os seus vizinhos, assassina opositores dentro e fora da Rússia, interfere nas eleições americanas e europeias, e geralmente parece agir como um spoiler anti-EUA cada oportunidade”.

III.       A Rússia e o Ocidente: Quais são as melhores opções para ambos?

Após a queda da União Soviética em 1991, o principal objetivo dos EUA e da UE era ajudar a Rússia a desenvolver-se a nível económico e político, dando-lhe tudo o que precisava para se tornar um ator político forte, com até “uma parceria para a modernização”.

No entanto, na última década – desde o fim da “guerra na Geórgia em 2008 e do ‘reset’ obama-Clinton de 2009”, – a Rússia tem estado no centro da agenda política do Ocidente, e o debate entre a Europa e os Estados Unidos da América tem-se centrado na da questão saber se é realmente digno de resumir as relações.

No entanto, a invasão e anexação da Crimeia pela Rússia em 2014 pôs fim a esta estratégia de ajuda do Ocidente, eficaz através da introdução de sanções à Rússia pelos EUA e pela UE – como o isolamento diplomático. Estas sanções acabam por conduzir, embora sem querer, a um enfraquecimento da Rússia que se viu sem meios de desenvolver economicamente e sem dinheiro para investir em materiais militares e seus aliados.

Após este acontecimento, as relações entre o Ocidente e o Kremlin ficaram muito comprometidas e ambos os blocos, ao tentarem enfraquecer-se mutuamente, acabaram por ter o efeito de auto-enfraquecimento – que se concretizou com a ascensão dos movimentos populistas na Europa e nos EUA, que “tem feito enormes estragos na credibilidade e na capacidade de política externa do Ocidente.

Quando Joe Biden foi nomeado novo presidente dos Estados Unidos da América, a Rússia voltou a ser tema de conversa entre os EUA e os seus aliados europeus sobre a forma como devem lidar com este país. O que se pode ver é que se a Rússia não mostrar que também está disposta a cooperar com o Ocidente, ou que está numa posição de tal fragilidade que a sua única opção é virar-se para o este – algo muito, pelo menos improvável por enquanto – a sua estratégia de ‘enfraquecimento mútuo’ continuará, durante a Administração de Biden e muito provavelmente mais além.

Do ponto de vista ocidental, todos os compromissos e tentativas de reconectar as ligações com a Rússia não trouxeram grandes vantagens. Tiveram lugar “múltiplas ofertas de reset, o congelamento dos alargamentos à Ucrânia e à Geórgia à NATO, o repúdio de décadas de ‘intervenções humanitárias’ como guia da política, e o abrandamento das políticas de promoção dos direitos humanos sob a presidência de Obama e Trump não melhoraram as relações com a Rússia”.

As relações entre a Rússia e a Europa não são, de facto, as melhores, mas as suas relações com os Estados Unidos da América – durante as administrações de Clinton, Bush, Obama, Trump e agora Biden – podem ser consideradas mais problemáticas e semelhantes às relações de ambos os países durante os últimos anos da União Soviética, liderada por Brezhnev, e o primeiro mandato da administração Reagan nos EUA.

O Kremlin, do outro lado, “espera que o Ocidente conceda à Rússia uma mão livre na ‘sua’ metade da Europa, e que olhe para o outro lado quando procurar privar os seus antigos vizinhos – e os seus próprios cidadãos – do direito de traçarem o seu próprio futuro”. Isto não ajuda numa possível conversa entre estes dois blocos políticos.

Além disso, a Rússia de Putin continua e continuará até ao final do seu mandato (que terminará em 2036), focando-se, como a URSS, no uso da força e coação para fazer prevalecer os seus interesses nas suas relações com os seus vizinhos, e apresentar o Ocidente como uma força política hostil. Este discurso instigado pela Rússia é a razão exata que levou à degradação da relação EUA/Ocidente-Rússia, e não exatamente aos erros políticos e estratégicos cometidos por estas duas potências políticas em relação à Rússia.

Moscovo tem a possibilidade de mudar de abordagem, uma vez que esta mudança de paradigma não era inevitável — “Uma Rússia menos autoritária em casa, mais construtiva no exterior, e menos hostil ao Ocidente e aos seus valores, não é de forma alguma inevitável (…) e é possível”.

Desta forma, o Ocidente precisa de estar preparado para a possibilidade de uma nova Rússia emergir no futuro, sempre com a ideia de que “se os ucranianos e os bielorrussos estão prontos a arriscar as suas vidas em nome da democracia e da justiça em casa, então parece estranho argumentar que os russos são, e sempre serão, felizes a viver sob o um poder autoritário”.

Conclusão

No fim de contas, há que considerar que a Rússia está atualmente numa posição em que a sua política externa tem dificultado em grande parte a possibilidade de diálogo e de boas relações diplomáticas com os países membros do Ocidente e da NATO.

Por um lado, porque tem vindo a patrocinar cada vez mais a ascensão do populismo – como na Bielorrússia, na Turquia e na Hungria. Por outro lado, a Rússia tem usado ciberataques como forma de agir de dentro para fora, tendo acesso à informação que usa a seu favor, como aconteceu durante as eleições de 2020 nos EUA, nas quais se soube que a Rússia interferiu, durante o período de campanha e no processo eleitoral, para que Donald Trump voltasse a ser eleito presidente dos Estados Unidos. Além disso, a revisão constitucional iniciada por Putin em janeiro de 2020, levou a uma enorme descida dos preços do petróleo, a par da crise provocada pela pandemia Covid-19. Finalmente, tem havido alguma convergência geoestratégica e geopolítica com a China, a superpotência emergente do século XXI. Tudo isto teve um enorme impacto em duas das mais importantes esferas políticas – “legitimidade e soberania, com o Kremlin a sofrer danos em ambas as acusações”.

Como diz o ex-Presidente da URSS Mikhail Gorbachev no seu mais recente livro – What Is On Stake Now: My Appeal for Freedom and Peace – é necessário para “(…) os líderes políticos do Ocidente reconhecer que restabelecer a confiança entre a Rússia e o Ocidente requer a coragem de uma verdadeira liderança e um compromisso com um diálogo e compreensão genuínos de ambos os lados”.


12 de abril de 2022

Catarina Abreu de Pinho

EuroDefense Jovem-Portugal


Bibliografia:

Popescu, Nicu. “Como a Rússia e o Ocidente tentam enfraquecer-se uns aos outros”. Conselho Europeu de Relações Exteriores. 22 de janeiro de 2021. https://ecfr.eu/article/how-russia-and-the-west-try-to-weaken-each-other/.

Shevtsova, Lilia. “O Ressurgimento Autoritário: Avançar para o Passado na Rússia”. Jornal da Democracia 26,  nº 2 (abril 2015): 22-37. https://www.journalofdemocracy.org/articles/the-authoritarian-resurgence-forward-to-the-past-in-russia/.

McFaul, Michael. “Russia’s Road to Autocracy”. Jornal da Democracia 32, nº 4 (outubro 2021): 11-26. https://www.journalofdemocracy.org/articles/russias-road-to-autocracy/.

Steil, Benn. “O confronto da Rússia com o Ocidente é sobre geografia, não ideologia”. Política Externa. 12 de fevereiro de 2019. https://foreignpolicy.com/2018/02/12/russias-clash-with-the-west-is-about-geography-not-ideology/.


NOTA:

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